FAMÍLIA E REDES SOCIAIS: LIGAÇÕES FORTES NA PRODUÇÃO DE BEM-ESTAR Sílvia Portugal FAMÍLIA E REDES SOCIAIS: LIGAÇÕES FORTES NA PRODUÇÃO DE BEM-ESTAR AUTORA Sílvia Portugal EDITOR EDIÇÕES ALMEDINA, S.A. Rua Fernandes Tomás, nºs 76, 78, 80 3000-167 Coimbra Tel.: 239 851 904 · Fax: 239 851 901 www.almedina.net · [email protected] DESIGN DE CAPA FBA. Dezembro, 2013 Os dados e as opiniões inseridos na presente publicação são da exclusiva responsabilidade do(s) seu(s) autor(es). Toda a reprodução desta obra, por fotocópia ou outro qualquer processo, sem prévia autorização escrita do Editor, é ilícita e passível de procedimento judicial contra o infractor. ______________________________________________________ BIBLIOTECA NACIONAL DE PORTUGAL - CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO PORTUGAL, Sílvia Famílias e redes sociais : ligações fortes na produção de bem-estar ISBN 978-972-40-5471-1 CDU 316 ÍNDICE INTRODUÇÃO CAPÍTULO 1 – A FAMÍLIA E A DÁDIVA Introdução 1.1. A família 1.2. A dádiva CAPÍTULO 2 – AS REDES SOCIAIS Introdução 2.1. O conceito de rede 2.2. Um novo paradigma? 2.3. As redes como capital social 2.4. Para uma operacionalização do conceito de rede social CAPÍTULO 3 – A(S) HISTÓRIA(S) DA(S) FAMÍLIA(S) Introdução 3.1. Histórias de pesquisa 3.2. Quem contou a sua história 3.3. Histórias de amor: o namoro e o casamento 3.4. Histórias de cuidados: os filhos 3.5. Histórias novas com enredos antigos CAPÍTULO 4 – AS COISAS E OS MODOS (I): O EMPREGO Introdução 4.1. O primeiro emprego 4.2. As trajetórias 4.3. O sobretrabalho CAPÍTULO 5 – AS COISAS E OS MODOS (II): A CASA, O CARRO E O RESTO Introdução 5.1. Ter uma casa 5.2. Montar uma casa 5.3. Manter uma casa 5.4. E o carro CAPÍTULO 6 – AS COISAS E OS MODOS (III): CRIAR E CUIDAR Introdução 6.1. A saúde 6.2. As crianças 6.3. Os idosos 6.4. O trabalho doméstico CAPÍTULO 7 – AS PESSOAS Introdução 7.1. Os nós 7.2. Os laços 7.3. As redes 7.4. Quanto valem as pessoas? As redes como capital social CAPÍTULO 8 – AS NORMAS Introdução 8.1. Reciprocidade, mas... 8.2. Obrigação, mas... 8.3. Igualdade, mas... 8.4. Autonomia, mas... 8.5. As normas e os problemas CONCLUSÃO REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS INTRODUÇÃO No momento em que escrevo este livro, Portugal encontra-se mergulhado numa profunda crise económica, financeira, política e social. Esta realidade tornou urgente a publicação adiada de uma investigação que realizei no início da década passada e que deu lugar a uma tese de doutoramento, concluída em 2006. A pesquisa interrogava-se sobre o papel da família e das redes sociais na produção de bem-estar, revelando um modelo de proteção social fortemente assente nas solidariedades familiares e nas transferências intergeracionais. Na conclusão da dissertação – intitulada “Novas Famílias, Modos Antigos” – interrogava-me sobre a dialética entre continuidade e mudança no nosso país. Na altura, tudo parecia estar em mudança e permanecer, simultaneamente. Neste momento, tudo parece estar em profunda transformação e todos os alicerces parecem abalados. As atuais políticas económicas e sociais colocam em causa o modelo de palimpsesto, em que novo e antigo, tradicional e moderno, se conjugavam, configurando formas de proteção social com especificidades que as distinguem no contexto europeu. O desemprego elevado e persistente, o aumento das desigualdades no rendimento, o crescimento da pobreza, a redução dos benefícios sociais conduzem, simultaneamente, a um aumento do nível e da heterogeneidade do risco social e a uma erosão das redes sociais que dele protegem a população. O que pretendo com esta publicação é apresentar as características de um modelo que provou as suas virtualidades até ao momento, mas cuja resiliência é, hoje, profundamente desafiada. A análise que desenvolvo pretende ser mais um contributo para o debate acerca da relação entre o social e o político, entre o Estado e a sociedade civil em Portugal (Hespanha, 2001; Hespanha e Carapinheiro, 2001; Santos, 1993a e 2011), procurando uma sociologia das relações entre público e privado. Em 2005, no volume Sociedade, Paisagens e Cidades de uma obra sobre a Geografia de Portugal, Teresa Barata Salgueiro e João Ferrão destacavam o “turbilhão de mudanças” que o país experimentou nas últimas décadas (Salgueiro e Ferrão, 2005: 13). Uma leitura dos dados extensivos e das análises apresentadas na obra permitia identificar alguns elementos desse “turbilhão”: um acelerado processo de modernização, com resultados complexos ao nível territorial; uma convergência com os padrões europeus, embora com distâncias significativas em domínios essenciais do bem-estar e da qualidade de vida; uma elevada heterogeneidade dos processos de mudança e das estruturas sociais, económicas e culturais, coexistindo, lado a lado, traços de modernidade, pré-modernidade e pós-modernidade. As análises em diferentes áreas revelam uma sociedade em rápida transformação, mas em que “a força do passado no presente” se faz sentir com intensidade em múltiplos domínios (André, 2005: 141). Um desses domínios é, certamente, o das relações familiares. Os indicadores demográficos são, talvez, os que melhor espelham a rapidez da mudança e a aproximação do país aos modelos europeus. A transição demográfica portuguesa foi tardia, mas o seu ritmo vertiginoso (Almeida et al., 2002 e 2004; Bandeira, 1996; Ferrão, 2005). No entanto, a convergência dos padrões demográficos na Europa está longe de corresponder a uma homogeneização das formas de viver a família e em família, nos diferentes países. Se existem alguns traços que definem o “modelo familiar europeu”, eles podem ser sintetizados pela definição durkheimiana da família relacional “centrada nas pessoas, mais do que nas coisas”. Contudo, este modelo, construído sobre a informação estatística, é sobretudo “teórico” e tem concretizações muito diversas no interior da Europa (Commaille e Singly, 1997: 20). Como mostra o trabalho de François de Singly (2003), a família tem hoje que permitir conciliar a vida em comum com a liberdade e identidade pessoais, respeitando a autonomia individual dos seus membros. Uma parte das divergências entre os países europeus parece passar pela adesão à norma do individualismo, mais forte nos países do Norte do que do Sul (Commaille e Singly, 1997). As diferenças não se justificam, no entanto, por um “atraso” do Sul, mas sim por configurações específicas ligadas à organização da vida familiar, às relações sociais de sexo, ao papel da família na construção do bem-estar individual e coletivo. Em Portugal, o apego aos valores familistas e a centralidade da família na proteção social são notórios. Se estas características resultam, em parte, de uma herança pesada do passado, a sua persistência no presente desafia-nos a (re)pensar o lugar da família nas novas reconfigurações do social e do político. Se, hoje, a “questão familiar” passa (ou melhor, volta) a estar no centro da “questão social” (Déchaux, 1996), ela tem, também, que ser reformulada devido aos novos contextos sociopolíticos: o desemprego, a precariedade, a exclusão, a retração do Estado-Providência. As insuficiências do Estado-Providência português e a especificidade do seu desenvolvimento no contexto das sociedades europeias são conhecidas. Quer do ponto de vista quantitativo, quer do ponto de vista qualitativo, ou seja, quer se pense no montante de gastos públicos em políticas sociais, quer no âmbito da aplicação dessas políticas, o nosso Estado-Providência sempre apresentou diferenças significativas relativamente aos países industrializados do resto da Europa (Mozzicafreddo, 1992 e 1997; Santos, 1990, 1993; Santos e Ferreira, 2001). São estas diferenças que levaram Boaventura de Sousa Santos a caracterizá-lo como um semi-Estado-Providência (Santos, 1993a: 44), cujo défice providencial é parcialmente compensado pela atuação de uma sociedade rica em relações de comunidade, interconhecimento e entreajuda. Afirma o autor que “em Portugal um Estado-Providência fraco coexiste com uma sociedade-providência forte” (Santos, 1993a: 46). Apesar de nunca ter atingido os níveis de cobertura social dos países centrais, Portugal tem, no entanto, desde há vários anos, adotado algumas das medidas restritivas que caracterizam a evolução do Estado-Providência nesses países (Hespanha, 1999): a privatização dos serviços sociais do Estado; a gestão privada dos serviços públicos; a devolução à sociedade civil (ou “desinstitucionalização”) da proteção social estatal; a corresponsabilização dos cidadãos nas despesas sociais; a revitalização dos sistemas de apoio da sociedade civil. É “como se Portugal estivesse a passar por uma crise do Estado-Providência, sem nunca o ter tido” (Santos, 1993a: 45). transferência para a sociedade civil de parte das obrigações estatais não é nova e tem sido vista como uma solução para os problemas que o Estado- Providência atravessa. Este processo tem, por um lado, criado novos tipos de solidariedade, de base comunitária, mas enquadrados pelo Estado, e por outro lado, reconfigurado os tradicionais laços de entreajuda (Hespanha, 1995). As novas articulações entre Estado-Providência e sociedade-providência têm levado os autores a recodificarem elementos que até agora eram considerados resíduos pré-modernos como características pós-modernas (Hespanha, 1995; Santos, 1993a). Deste modo é, hoje, fundamental refletir sobre o lugar da família na construção do bem-estar individual e coletivo. É este o objetivo que me proponho. A investigação que serve de base a este texto parte do princípio, enunciado por João Arriscado Nunes, de que “na sociedade portuguesa, a família, o espaço doméstico e o mundo das solidariedades primárias ocupam um lugar central enquanto formas privilegiadas de realização do laço político, de processos de associação e de dissociação através dos quais se constrói a relação entre o particular e o geral” (Nunes, 1992a: 304). A hipótese orientadora defende a centralidade da família na produção de bem-estar: por um lado, devido ao quadro deficitário que as políticas públicas apresentam; por outro lado, devido à persistência das solidariedades primárias nas representações e nas práticas relativas à proteção social e à provisão de recursos. A reflexão aqui apresentada sustenta-se, fundamentalmente, na investigação empírica desenvolvida no âmbito da minha tese de doutoramento1. A pesquisa tinha como objeto os modos de acesso aos recursos de bem-estar de jovens famílias com dupla inserção no mercado de trabalho, cujos cônjuges tinham idades compreendidas entre os 25 e os 34 anos. Optei, assim, por centrar a análise na fase inicial do ciclo de vida familiar, procurando um tempo de (re)organização de recursos materiais e afetivos, para testar o papel das redes sociais e da família. O presente texto apresenta uma versão sintética dos resultados desta pesquisa, para desenvolver uma análise em torno de três objetivos: em primeiro lugar, uma avaliação do papel efetivo que as redes sociais desempenham, caracterizando a sua morfologia e modos de ação no acesso a diferentes tipos de recursos; em segundo lugar, uma análise das formas de articulação entre solidariedades públicas e privadas; e, em terceiro lugar, uma discussão das potencialidades e constrangimentos das solidariedades familiares face a outras esferas de produção de bem-estar.