Expressões literárias do reencantamento do mundo: Promethea de Alan Moore

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Dossiê

Expressões literárias do reencantamento do
mundo: Promethea de Alan Moore
Literary expressions of the re-enchantment of the world: Alan Moore’s Promethea

Emmanuel Ramalho de Sá Rocha1

Resumo
Esse artigo tem como temática central a relação entre literatura e religião, especificamente a
literatura das histórias em quadrinhos, também conhecidas como HQs, e o ocultismo
contemporâneo, um agente do reencantamento do mundo, sendo esse uma crítica e produto da
modernidade, o qual promove o retorno ou popularização da magia. Dessa forma, o objetivo da
pesquisa é analisar a HQ Promethea, de Alan Moore, publicada em 1999, e que aborda o ocultismo
de forma didática, assim, busca-se identificar quais são os elementos do ocultismo na obra e como
estes e a própria HQ de Moore se inserem no processo de reencantamento do mundo. Como
metodologia, o trabalho faz uso de pesquisa bibliográfica e a forma de abordagem é qualitativa em
função das características do tema estudado (crenças, valores, atitudes). O marco teórico
conceitual utilizado para fundamentar a pesquisa é a sociologia da religião. Constata-se entre os
elementos ocultistas abordados em Promethea a magia cerimonial, a astrologia, o tarô, a cabala
hermética e a goécia. E as características do reencantamento do mundo presentes na obra, entre
outras, são a revalorização dos elementos não racionais da vida, como a imaginação; o resgate de
crenças e práticas pré-modernas, como a própria magia; a racionalização e “psicologização” desta;
e uma dialética entre o conhecimento científico e o pensamento mágico.
Palavras-chave: Magia. Ocultismo. Literatura.
Abstract
This paper has as its central theme the relationship between literature and religion. Specifically the
literature of comics and contemporary occultism, an agent of the re-enchantment of the world, the
latter is a product and critique of modernity which promotes the return or popularization of magic.
Thus, this research intends to analyze Alan Moore’s comic Promethea. It was published in 1999
which addresses the occult didactically, thus, the paper seeks to identify those elements of
occultism and how they and the comic fit into the process of re-enchantment of the world. As
methodology, the work makes use of bibliographic research and the approach is qualitative based
on the characteristics of the studied subject (beliefs, values, attitudes). The theoretical and
conceptual framework used to support research is the sociology of religion. It appears among
occult elements addressed in Promethea ceremonial magic, astrology, tarot, Hermetic Qabalah and
the Goetia and the characteristics of the re-enchantment of the world in the present work, among
others, are the revaluation of non-rational elements of life such as the imagination; redemption of
pre-modern beliefs and practices, such as magic itself; rationalization and "psychologization" of
magic; and a dialectic between scientific knowledge and magical thinking.
Keywords: Magic. Occultism. Literature.

1 Possui graduação em Relações Internacionais pela Universidade de Vila Velha. Mestrando em Sociologia pela
Universidade Federal da Paraíba. Atualmente dedica-se à pesquisa de: Ecologia e Religião; Novos Movimentos
Religiosos; Magia. E-mail: [email protected]
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1 Introdução

Segundo Antonio Flávio Pierucci trabalho – a magia se apresenta de
(2003), o conceito de “desencantamento forma modificada à sociedade, com
do mundo” de Max Weber implica dois novas características, novas maneiras de
significados, a desmagificação da religião legitimação social e novos meios de
no ocidente, um empreendimento transmissão e popularização. Este último
realizado pela tradição judaico-cristã; e a aspecto ocorre, segundo Richard Jenkins
perda de sentido do mundo referente ao (2000, p. 12-13), devido à ordem
esvaziamento de significado deste e da diversa de tendências a qual o
vida realizada pela ciência moderna. reencantamento de manifesta, não só
Ambos os fenômenos fazem parte do presente nas tradicionais manifestações
fenômeno maior da racionalização do religiosas, mas também nos novos
ocidente. Contudo, alguns autores paradigmas da ciência; no hedonismo
(MOSCOVICI, 2007; PIERUCCI, 1997, consumista; na sexualidade; nas drogas;
2000; UNGER, 1991) afirmam ocorrer e no mundo encantado do
contemporaneamente a reversão do entretenimento, por meio da televisão,
processo de desencantamento, cinema, internet, jogos digitais e
denominando-se reencantamento do literatura.
mundo, porém, para outros autores E quando se trata da transmissão
(PRANDI, 1992, 1997; GUERRIERO, e popularização do reencantamento e,
2006; NEGRÃO, 2008), o desen- particularmente, da magia no mundo do
cantamento do mundo, pelo menos no entretenimento, o ocultismo – vertente
contexto religioso brasileiro, nunca da tradição esotérica ocidental que surge
ocorreu, no entanto, mesmo nesse na Europa no século XIX – se destaca.
contexto “Sabemos que o mundo não Para Christopher Partridge (2005), a
está encantado da mesma maneira que presença do ocultismo na cultura
antes” (GUERRIERO, 2006, p. 51). contemporânea por meio de filmes,
O reencantamento do mundo – ou séries de televisão, música, livros,
novo encantamento – é uma crítica e histórias em quadrinhos etc, é tão
produto da modernidade, portanto marcante que ele criou o termo
resgata elementos pré-modernos ao “ocultura” 2 , junção de ocultismo e
mesmo tempo em que absorve cultura. Exemplos de sucesso da ocultura
características da modernidade. Dessa são os livros e filmes de “Harry Potter”;
forma, no processo recente de as séries “Buffy, a caça vampiros”,
remagificação do mundo – o elemento “Sabrina, a aprendiz de feiticeira” e
do reencantamento que interessa a esse
2 No original, em inglês, occulture.
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“Sobrenatural”; a grande variedade de Dentre as obras mais renomadas
revistas infanto-juvenis sobre wicca; de cunho ocultista estão Sandman de
referências ao ocultismo em músicas de Neil Gaiman, criada em 1988 e
grupos de rock, como Black Sabbath, Hellblazer, que segue o personagem
Led Zeppelin e Raul Seixas. criado por Alan Moore na década de
Na literatura, as histórias em 1980, John Constantine, um ocultista
quadrinhos (HQs) possuem vantagem na inglês. Porém, do mesmo autor, Alan
popularização da magia ocultista, não só Moore – este um autoproclamado
pela popularidade entre os mais jovens, ocultista – destaca-se a HQ Promethea
mas principalmente pela possibilidade de pela abordagem didática e profunda de
aliar narrativa e arte gráfica. Segundo elementos ocultistas em consonância
Carlos Hollanda (2013, p. 9): com as características contemporâneas
da remagificação no reencantamento do
Mais do que atuar pura e
simplesmente como recurso de mundo.
entretenimento, as histórias em
quadrinhos são, tal qual Dessa forma, o objetivo desse
literaturas e outras mídias,
artigo é analisar a HQ Promethea de Alan
veículos de comunicação.
Expressões do imaginário Moore buscando identificar quais são os
vigente, catalisadores de
expectativas, anseios e até elementos do ocultismo e como estes e a
temores coletivos, quadrinhos
própria obra de Moore se inserem no
também podem contribuir para a
formação de crenças, tanto processo de reencantamento do mundo.
quanto o faria uma peça teatral,
um sucesso cinematográfico e Como metodologia, o trabalho faz uso de
um bom romance de um escritor
pesquisa bibliográfica e a forma de
sensível e bem articulado com
seu momento histórico. A antiga abordagem é qualitativa em função das
noção preconceituosa de que
quadrinhos seriam leituras características do tema estudado
exclusivamente infantis é
(crenças, valores, atitudes etc). O marco
confrontada com trabalhos de
alta qualidade técnica e de teórico conceitual utilizado para
profundidade temática, tanto no
âmbito humorístico quanto nos fundamentar a pesquisa é a sociologia da
gêneros considerados sérios e
religião.
dramáticos.

2 Reencantamento do mundo: o retorno da magia

De forma simples e sucinta, o notar que, no Brasil, devido a um
reencantamento do mundo pode ser processo de modernização incompleto
definido como a inversão do processo de em que não houve uma desmagificação
desencantamento, ou seja, a religiosa plena como nos países de
remagificação religiosa e a reinserção de tradição protestante, as mentalidades,
sentido no mundo. Contudo é importante pelo menos das faixas mais populares do
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país, não foram desencantadas (PRANDI, interpretada como uma série de técnicas
1992). Porém, como ocorre a partir da psicológicas para exaltar a consciência
segunda metade do século XX um individual” (HANEGRAAFF,2003, p. 371,
processo de magificação religiosa das tradução nossa).
classes mais altas e a transformação das Já como crítica, o reencantamento
práticas mágicas mesmo nas camadas do mundo se forma ao longo dos séculos
mais populares no Brasil (GUERRIERO, XIX e XX por meio de movimentos
2006; NEGRÃO, 2008; PRANDI, 1992), sociais ou culturais que questionam
além de que realmente ocorreu a perda princípios dominantes na modernidade,
de sentido unitário e público no país, por exemplo, a crença na superioridade
ainda é possível falar em da razão sobre esferas não racionais da
reencantamento no Brasil. vida, como a emoção, a imaginação e o
O reencantamento é um produto êxtase religioso. Dessa forma, esses
e crítica à modernidade. Produto, pois movimentos buscam resgatar elementos
surge na modernidade e absorve que valorizem essas esferas, a exemplo
algumas de suas características, e da própria magia.
tratando-se da remagificação religiosa, a Os movimentos que contribuem
mais importante delas é a racionalização na formação do reencantamento do
da magia, a qual, segundo Paula mundo são o romantismo, a
Montero (1994), leva à moralização da orientalização do ocidente, a
magia, sistematização da cosmologia e à contracultura, os Novos Movimentos
organização burocrática e impessoal do Religiosos (NMRs) e a segunda
culto mágico; além disso, a modernidade modernidade3. Em sua maioria, esses
também leva à urbanização e movimentos se intercalam, não há,
individualização dos praticantes de necessariamente, uma linearidade.
magia. O romantismo, que nasce no fim
Wouter Hanegraaff (2003) vê do século XVIII e se desenvolve no
essa racionalização da magia como uma século XIX, deu início à revalorização da
maneira de adaptação da mesma ao subjetividade, das emoções e do resgate
mundo que se desencantou. Um dos de valores, dos comportamentos e
efeitos dessa adaptação é que o elementos pré-modernos. É nesse
praticante de magia tende a legitimá-la período que ocorre o reaviar ocultista,
em consonância com as verdades da

ciência moderna, e uma das ciências 3 Termo aqui usado para designar o que é
comumente denominado pós-modernidade,
mais usadas para este propósito é a modernidade tardia, ultramodernidade,
modernidade líquida etc. Não é o foco dessa
psicologia, através da “psicologização” pesquisa aprofundar-se nesse debate, é
suficiente apenas reconhecer a mudança cultural
da magia em que “No nível da prática, a – seja ela uma ruptura com a modernidade ou
não – que ocorre na segunda metade do século
magia tem sido crescentemente
XX em diante no ocidente.
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como será visto adiante. O segundo elementos resgatados da pré-
grande movimento a influenciar na modernidade desde o movimento
formação do reencantamento do mundo romântico até a contracultura.
é o que Colin Campbell (1997) A respeito do campo religioso na
denominou “orientalização do ocidente”, segunda modernidade “[...] a religião
o qual traz ao campo religioso ocidental não só deixou de desaparecer” como
o paradigma religioso oriental, marcado “Vemos à nossa volta a criação de novas
pela religiosidade mística, pela formas de sensibilidade religiosa e
imanência do divino e pelo monismo, o empreendimentos espirituais. As razões
qual, também leva à maior aceitação do disso devem ser buscadas em
relativismo religioso que vê verdade em características fundamentais da
todas as religiões. modernidade tardia” (GIDDENS, 2002, p.
A orientalização do ocidente se 191). Por exemplo, Pierucci (2001, p.
intercala com a contracultura que surge 53) afirma que o ambiente de incertezas
na década de 1960, o ativismo da e riscos desse zeitgeist incentiva o
contracultura congrega diversos grupos desenvolvimento da magia, assim como
políticos, religiosos e artísticos distintos também, segundo Zygmunt Bauman
em bandeiras de luta, mas unidos no (1998), leva ao florescimento de grupos
propósito de questionar valores e religiosos fundamentalistas. Contudo, em
comportamentos dominantes no ocidente ampla oposição ao fundamentalismo
moderno, além disso, “O ativismo religioso, há também na segunda
político da década de sessenta mostrava- modernidade uma religiosidade difusa e
se com uma forte inclinação para o desinstitucionalizada, em que a
ocultismo, para a magia e para o ritual individualidade é valorizada e há
exótico” (GUERRIERO, 2009, p. 4). liberdade de transitoriedade entre
Apresentando uma religiosidade diversas crenças (GIDDENS, 2002).
que rejeita a tradição cristã de seus pais, Outra característica da nova
os jovens da contracultura aderem não religiosidade durante o ressurgimento na
só às orientais, mas também às segunda modernidade é o foco na
indígenas ou xamânicas, levando muitos experiência mais do que nos preceitos
jovens à experimentarem plantas morais. Segundo Bauman (1998, p.
enteógenas. Todos esses movimentos 223), o que antes era privilégio de
contribuem ao estabelecimento da santos, monges e místicos se
segunda modernidade. A segunda democratiza contemporaneamente, o
modernidade é o ponto de culminação da êxtase rompe a barreira do ego e invoca
crise da modernidade e, portanto, é a os poderes humanos, diferenciando-se
partir de então que realmente aparece da religião comum até a primeira
com clareza e contundência todos os
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modernidade, que celebrava a fraqueza do século XX, os NMRs já podem ser
humana. reconhecidos desde as últimas décadas
Por fim, o conjunto de novas do século XIX, e os grupos ocultistas que
religiões e espiritualidades que se surgem a partir desse período também
popularizam na segunda modernidade, estão aí incluídos. Segundo Guerriero
sejam elas em seu formato mais (2006, p. 51) “Os NMRs são diferentes
fundamentalista ou não, denomina-se possibilidades de vivência desse mundo
Novos Movimentos Religiosos (NMRs). encantado, carregado de forças invisíveis
Apesar da marcante expansão e e de manipulações mágicas”.
estruturação a partir da segunda metade

3 Ocultismo

Apesar dos inúmeros conceitos e cerimonial e meios divinatórios, como o
descrições dados ao termo ocultismo tarô (HANEGRAAF, 2006).
desde seu aparecimento em 1842, Entre as figuras influentes no
academicamente ele se refere ao desenvolvimento e popularização do
desenvolvimento do esoterismo ocidental ocultismo estão Papus, Eliphas Lévi,
no século XIX e seus desdobramentos no Helena Blavatsky, Aleister Crowley,
século XX, e “[...] compreende todas as Arthur Edward Waite, Franz Bardon,
tentativas por esoteristas a chegar a um Peter Carrol, Dion Fortune, William Wynn
acordo com um mundo desencantado ou, Westcott, Samuel L. MacGregor Mathers,
alternativamente, por pessoas, em geral, entre outros. Esses dois últimos,
a fazer sentido do esoterismo pela Westcott e Mathers, foram os fundadores
perspectiva de um mundo secular e do grupo ocultista de maior destaque e
desencantado” (HANEGREAAFF, 2006, p. influência, a Ordem Hermética da Aurora
888, tradução nossa). Dourada. Criada em 1888 na Inglaterra,
O esoterismo ocidental refere-se ela reuniu alguns dos melhores ocultistas
ao misticismo e magia praticados na da época, e foi capaz de sintetizar os
Europa durante o período do diversos e, por vezes, bastante distintos
Renascimento até os dias atuais se elementos esotéricos advindos de
expandindo por todo o ocidente, tendo tradições diferentes em um conjunto
como base filosófica e religiosa o relativamente homogêneo e coerente.
Hermetismo, a kaballah e o Contudo, o ocultista mais
neoplatonismo, e fazendo uso da influente, e também mais polêmico, a
astrologia, alquimia, magia natural e fazer parte da Aurora Dourada foi
Aleister Crowley. Crowley, após sair da
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Aurora Dourada, cria uma religião- escreve inúmeros livros sobre magia,
mágica, a Thelema; faz parte da astrologia, cabala, tarô e religião. No
fundação de duas ordens ocultistas, a entanto, a influência de Crowley
Astrum Argentum e a Ordo Templi ultrapassa o mundo ocultista, chegando
Orientis; cria, em conjunto com a artista ao mundo da música, cinema e
Frieda Harris, um dos jogos de tarô mais literatura, e dentre estes influenciados
populares no mundo, particularmente nas artes está Alan Moore, criador de
entre ocultistas, o Tarô de Thoth e Promethea.

4 Promethea de Alan Moore

A HQ Promethea foi escrita por é de particular importância para a trama,
Alan Moore, tendo como artista principal pois Moore subverte e reformula os
J.H. Williams II e como arte-finalista, medos e anseios quanto ao tema
colorista e letrista, Mick Gray, Jerome presentes na sociedade da época em sua
Cox e Todd Klein, respectivamente. Ela narrativa. E assim como em outras obras
foi lançada em 1999, nos Estados de Moore, a releitura do contexto
Unidos, em 32 revistas, pela editora histórico, em geral, é mais importante do
Wildstorm. que a figura heroica da trama
(HOLLANDA, 2013).
Entre os motes principais
podemos novamente citar a O contexto histórico de então, o
questão da imaginação, cuja
função ali seria intermediar o fim do milênio, trazia expectativas
Homem e o Cosmo. No âmbito
coletivas de fim do mundo, apocalipse,
da magia e do misticismo estão a
Magia Thelêmica, as alusões a grandes desastres naturais ou
conhecimentos de organizações
iniciáticas (Golden Dawn, O.T.O, tecnológicos, como o bug do milênio.
Astrum Argentum), como todo
Dessa forma, em Promethea, a história
seu amálgama entre heranças
helênicas que permeiam o se passa, predominantemente, em Nova
neoplatonismo, o neopitagoris-
mo, o gnosticismo e o Iorque de 1999 – uma Nova Iorque
hermetismo (HOLLANDA, 2013,
distinta, pois apresenta uma tecnologia
p. 43).
muito avançada, como carros voadores –
Promethea é marcada pela
em que presencia o apocalipse, e Moore
releitura, seja de outras HQs e
apresenta esse fenômeno de acordo com
personagens consagrados dessas;
o significado original da palavra:
ocultistas e obras ocultistas renomadas;
revelação. O fim do mundo em
ou de momentos históricos. Quanto a
Promethea não leva ao fim absoluto,
esse último, a releitura do fim do
mas ao recomeço em um novo mundo
milênio, momento de lançamento da HQ,
extrafísico após a revelação deste.
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O fim do mundo é executado pela entram em contato com suas histórias,
personagem central da obra, Promethea. pinturas, ou qualquer forma de arte ou
Promethea é uma criança, filha de um expressão da imaginação que permitam
mago egípcio que é assassinado por um uma conexão com a entidade. Ao longo
grupo de cristãos em 411 d.C. Ela da narrativa se conhece os seres
consegue fugir para o deserto e é humanos que encarnaram Promethea
resgatada pelos deuses de seu pai, o por um período e que depois da morte
egípcio Toth e seu equivalente grego vivem juntos em determinado local da
Hermes, deuses da magia, da escrita, da Immateria. No entanto, a Promethea
imaginação. Assim, Promethea passa a protagonista é a que surge em Nova
viver no mundo desses deuses e vira Iorque, em 1999, através da estudante
uma entidade da imaginação humana, Sophie Bangs.
ela própria definindo-se como “o
Sophie Bangs, jovem estudante
esplendor sagrado da imaginação”, de literatura, faz pesquisa sobre
uma figura literária que surge de
porém tão real quanto qualquer coisa da tempo em tempos a partir de
autores diferentes desde o século
realidade material. Esse mundo de
XVIII, em contos, poesias e
deuses, espíritos e realidades não físicas quadrinhos antigos. Ela acessa a
dimensão imaginária em que
é chamado na obra de Moore de habita a personagem e passa a
manifestá-la no mundo físico.
Immateria, algo equivalente a um
Sendo uma expressão dos
mundo espiritual. deuses da comunicação e da
escrita (Toth-Hermes), a
Segundo Carlos Hollanda (2013, personagem viaja por níveis
diferentes da realidade
p. 43), a Immateria, esse mundo de
(HOLLANDA, 2013, p. 62).
imaginação, mas tão real quanto o
É particularmente nessas viagens
material, retrata um princípio de todo
por diferentes realidades que a obra age
pensamento mágico, “[...] a mente
como “[...] uma espécie de aula
atuando sobre a matéria, um mundo
introdutória à Kabbalah, Magia,
não-físico permeando o físico”. Para
Astrologia, Tarot e outros temas
Hollanda, a imaginação é a principal
herméticos” (HOLLANDA, 2013, p. 56).
temática da HQ, é esta habilidade
Ela viaja, inicialmente, pois precisa
humana o elemento central da magia e
aprender a ser uma Promethea e a
dos mitos, se apresentando de forma
preparar-se para o combate contra uma
inteligível por meio dos símbolos. E por
organização cristã chamada O Templo, a
isso uma obra literária que faça uso de
qual quer destruí-la; por fim, ela viaja
imagens, como uma HQ, é tão adequada
para encontrar o espírito de Barbara
para transmitir as realidades da
Shelley, a Promethea anterior a ela, que
imaginação e dos símbolos.
morreu ao tentar salvá-la e decide se
Promethea se manifesta, ou se
reunir com seu marido falecido.
incorpora, em alguns seres humanos que
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Nas primeiras viagens, as Immateria. Nessa jornada ela encontra
Prometheas anteriores ensinam a deuses, figuras importantes do ocultismo
Sophie/Promethea atual sobre os quatro além de Crowley, como Austin Osman
elementos: fogo, água, terra e ar, Spare e Jack Parsons, e aprende lições e
através dos quatro naipes do tarô, que significados sobre cada um dos caminhos
correspondem respectivamente à bastão, e esferas.
taça, moeda e espada. Explica-se que As lições sobre ocultismo
bastão/fogo refere-se à vontade; a aprendidas por Sophie transcorrem por
taça/água refere-se às emoções, toda a obra, por exemplo, a astrologia,
compaixão; moeda/terra á existência que está inserida nos ensinamentos
física; e a espada/ar à razão. Em outra sobre os quatro elementos, tarô e
viagem à Immateria, as cobras do cabala; sobre a goécia – arte de
caduceu de Sophie/Promethea – o invocação de demônios derivada de
caduceu é sua arma mágica – a explicam grimórios do Renascimento – ao
o surgimento e desenvolvimento do combater demônios enviados pelo O
mundo e do ser humano através dos Templo para matá-la; e sobre tantrismo,
arcanos maiores do tarô, uma explicação quando ela e Jack Faust – um mago que
que mistura ciência, magia e mitologia. lhe ensina magia – transam.
Relevante notar que o tarô usado Para finalizar a obra, a 32ª revista
é o criado por Aleister Crowley, uma é uma grande sistematização bastante
presença sentida por toda a obra, seja didática das correspondências entre as
na menção a alguns de seus livros, seu 10 sephirot e 22 caminhos da árvore da
tarô, histórias de sua vida, ou quando vida com os arcanos do tarô, planetas e
ele mesmo aparece ao longo da viagem signos do zodíaco, deuses dos mais
de Sophie e Barbara pela “árvore da diversos panteões, cores, plantas,
vida” cabalística – aqui cabala hermética, pedras, perfumes e animais. Dessa
não judaica. Essa é a viagem mais longa forma, Promethea de Alan Moore “[...] é
e significativa de Sophie/Promethea. a marca da extensão no tempo de uma
Barbara, depois de morta, tenta cultura calcada em um ‘reencantamento
encontrar seu falecido marido, um do mundo’: o grande sincretismo de
escritor, e Sophie a acompanha ao longo modelos místicos, religiosos e esotéricos
dos 22 caminhos e 10 esferas – ou da segunda metade do século XIX”
sephirot – da árvore da vida, que se (HOLLANDA, 2013, p. 16). Nela encon-
apresenta como uma totalidade da tram-se diversos elementos do
Immateria e do mundo material, pois reencantamento do mundo, por
Malkuth, uma das 10 esferas, é retratada exemplo, na própria valorização da
como mundo material, enquanto todas imaginação, elemento não racional da
as outras esferas e caminhos são a vida, e no resgate a elementos
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considerados pré-moderno, como a porém, sendo o reencantamento do
magia. mundo também um produto da
Há também a rejeição ao modernidade, as características dessa se
cristianismo retratada na ordem cristã O fazem presentes. Por exemplo, “A HQ
Templo, a vilã da história, responsável expressa a dialética entre conhecimento
pela morte do pai de Promethea e que científico e o pensamento mágico-mítico”
tenta também matá-la. Por sua vez, há a (HOLLANDA, 2013, p. 59), bastante
adesão ou inclusão do paradigma perceptíveis na explicação do surgimento
religioso oriental, como o sexo tântrico e desenvolvimento do mundo através
realizado entre Sophie e Jack. Também é dos arcanos maiores do tarô, em que Big
perceptível a influência contracultural, já Bang, evolucionismo e genética se unem
que “Moore buscou inspiração não à mitologia e magia; ou quando um
apenas no esoterismo, mas no Elemental – entidade sobrenatural criada
psicodelismo e na pop art dos anos por magos – que tentou matar Sophie, é
1960-70” (HOLLANDA, 2013, p. 44). Há capturado e estudado em laboratório por
ênfase na experiência, no êxtase, típico cientistas. Em consonância com a
da religiosidade da segunda racionalização da magia, nota-se a
modernidade, como também na psicologização desta, ao se enfatizar que
transitoriedade por diferentes tradições, a magia ocorre na mente, que o mais
práticas e identidades. importante elemento do ato mágico é a
Todos esses elementos se incluem imaginação, ou quando explica-se
no processo de crítica ao deuses ou demônios como partes do
desencantamento do mundo ou, inconsciente humano.
particularmente, da modernidade,

5 Considerações finais

Assim como o conceito de em seu debate acadêmico. Contudo isso
desencantamento do mundo leva a não invalida seu uso nem sua
interpretações tão plurais, por vezes legitimidade.
vagas e contraditórias devido ao seu Também, apesar do
caráter lírico e metafórico, carregado de reencantamento do mundo ainda não ser
sugestividade (PIERUCCI, 2003), ao se uma realidade plena, pois está em
falar em reencantamento do mundo um construção e é tomada por muitos
desdobramento recente de um conceito grupos que a aderem como um
já tão cercado de fluidez ou inexatidão, é imperativo ético mais do que uma
esperado maior indefinição e incertezas realidade, o reencantamento do mundo é
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