René Guénon – Estudos sobre a Franco-Maçonaria e o Companheirismo – Comunidade Teúrgica Portuguesa RENÉ GUÉNON ESTUDOS SOBRE A FR ANCO-MAÇONARIA E O COMPANHEIRISMO 1 René Guénon – Estudos sobre a Franco-Maçonaria e o Companheirismo – Comunidade Teúrgica Portuguesa Études sur la Franc-Maçonnerie et le Compagnonnage (vols. I et II), René Guénon. Éditions Traditionnelles, Paris, 1964, 1965. Estudos sobre a Franco-Maçonaria e o Companheirismo. Traduzido do original francês por Vitor Manuel Adrião, Lisboa, 2014. 2 René Guénon – Estudos sobre a Franco-Maçonaria e o Companheirismo – Comunidade Teúrgica Portuguesa RENÉ GUÉNON (Dados biográficos) Nasceu em 15 de Novembro de 1886, em Blois, França, com o nome de René Jean Marie Joseph Guénon, filho do arquitecto Jaez Baptiste Guénon e de uma jovem da burguesia local, Anna Léontine Jolly. De saúde incerta porém aluno brilhante, cursou Matemáticas elementares em 1904 e, mostrando reais aptidões para esse ramo do saber universitário, alguns professores convenceram- -no a prosseguir os estudos de Matemática em Paris. Assim, em Outubro de 1904, seguiu para a capital francesa instalando-se primeiro no Quartier Latin, depois na Rua St.-Louis-en-L´Ile, n.º 51, tendo entrado no Colégio Rollin como aluno de Matemáticas especiais, curso que viria a abandonar em 1906 por problemas de saúde. É por essa altura, entre 1906 e 1909, que pela mão de amigos entra em contacto com a Escola Hermética do médico militar Gérard Encausse, com o pseudónimo de “Papus”, na qual se filia. Igualmente afilia-se na Ordem Martinista, chefiada pelo mesmo Papus, que pretendia ter como origem uma transmissão regular da antiga Ordem dos Eleitos Cohens, fundada no século XVIII por Martinets de Pasqually (ao qual, aliás, se atribui uma origem incerta – francesa, espanhola e portuguesa – no entanto garantida ser originário de uma família israel-sefardita da Península Ibérica: Las Cazas ou Das Casas). Aí alcançou o grau supremo de “Superior Incógnito” ou “Desconhecido”, passando a tomar conhecimento dos documentos da Ordem. Seguidamente, fez-se receber em duas Ramas maçónicas que tinham relações próximas com a Ordem Martinista: a Loja Simbólica Humanidad n.º 240, do Rito Nacional Espanhol, e o Capítulo e Templo “INRI”, do Rito Primitivo e Original Swendenborguiano. Neste último recebeu de Theodore Reuss, Grão-Mestre do Grande Oriente e Soberano Santuário do Império da Alemanha, o cordão de seda negra de Kadosch. Por outra parte, criou-se no Templo do Rito Misto do Direito Humano um Soberano Grande Conselho do Rito de Mênfis-Misraim para a França e suas dependências, tornando-se a Loja Humanidad Loja-Mãe desse Rito. Nele René Guénon recebeu a patente do 30.º-90.º grau. No Congresso Espiritualista e Maçónico de 1908, René Guénon esteve como secretário da mesa, mas logo o abandonou após a sessão de abertura, em confronto ideológico aberto com Papus, presidente do mesmo. No decurso do Congresso conheceu pessoalmente Fabre des Essarts, que com o pseudónimo de “Synesius” era o patriarca da Igreja Gnóstica, e solicitou-lhe a sua admissão. É admitido e em 1909 consagrado “bispo” por “Synesius”, adoptando o nome iniciático 3 René Guénon – Estudos sobre a Franco-Maçonaria e o Companheirismo – Comunidade Teúrgica Portuguesa “Palingenius” (a primeira parte deste nome grego significa “que renasce”, equivalente do significado de seu nome René, “renato”, e a segunda “génio”, por extenso: “o génio que renasce”). No interior desse grupo veio a encontrar Léon Champrenaud (Abdul-Haqq) e Albert de Pourvourville (Matgioi), que o ajudaram a fundar a revista “La Gnose” em Novembro de 1909, inicialmente como ”órgão oficial da Igreja Gnóstica Universal”, na qual Guénon publicou os seus primeiros artigos. A revista deixou de se publicar em Fevereiro de 1912. Ainda em 1908, surgiu a oportunidade de René Guénon fundar uma “Ordem do Templo” renovada, compreendendo sete graus. Essa “Ordem”, de existência efémera, esteve na origem da ruptura entre Guénon e Papus; efectivamente, esse último expulsou-o das diversas organizações sob o seu controlo. Guénon foi então admitido na Loja Tebah, dependente da Grande Loja de França, Rito Escocês Antigo e Aceite. Aí permaneceu até 1914, data em que o eclodir da I Guerra Mundial obrigou as Lojas a “adormecer”. Em Julho de 1912 casou, segundo o rito católico, com Mlle. Berthe Lory, professora primária. Nesse mesmo ano converteu-se efectivamente ao Islão, recebendo a luz ou “barakah” do Sheikh Abder Rahmân Elish El-Kebir, por intermédio de Abdul-Hâdi (nome islâmico de John Gustaf Agelii, também conhecido pelo seu nome de artista plástico, Ivan Aguéli). Dispensado do serviço militar durante a Grande Guerra, devido à sua fraca saúde, mas necessitando de enfrentar as necessidades materiais, foi obrigado a trabalhar como professor do ensino particular em diversos colégios. Em Outubro de 1917 foi nomeado professor de Filosofia em Setif, na Argélia. Este período da sua vida na Argélia, naturalmente serviu para aperfeiçoar os seus conhecimentos de língua árabe e estabelecer contacto com certos mestres e meios espirituais islâmicos. Em 1918 regressa a França e em 1919 encontra-se novamente em Paris, com a sua mulher e uma jovem sobrinha, abandonando o ensino mas preparando alguns dos muitos livros que irá publicar ao longo dos anos (Introdução Geral ao Estudo das Doutrinas Hindus, Apercepções sobre a Iniciação, O Rei do Mundo, etc., a par de várias centenas de artigos que viram a luz da edição). Em 1922 dá-se o seu encontro com Paul Chacornac, e daí em diante passa a colaborar na revista editada por esse, Le Voile d´Isis (“O Véu de Ísis”), mais tarde designada Études Traditionneles (“Estudos Tradicionais”). Em 1924 participa com Jacques Maritain e René Grousset no debate organizado pela revista Nouvelles Littéraires (“Novidades Literárias”), por ocasião do lançamento do livro de Ferdinand Ossendowski, Bêtes, Hommes et Dieux (“Bestas, Homens e Deuses”), o qual, juntamente com o anterior de Saint Yves d´Alveydre, Mission de l´Inde en Europe (“Missão da Índia na Europa”), iriam inspirá-lo a escrever o seu Le Roi du Monde (“O Rei do Mundo”), publicado em 1927. Nele aborda a temática da Agharta, aprestando-se a situá-la no plano puramente simbólico e arredando-se de representá-la no plano efectivamente real; mesmo assim, esse livro terá sido o causador directo da mudança das relações entre Guénon e alguns representantes da tradição hindu, por terem considerado as informações fornecidas nessa obra serem demasiado precisas, mesmo que indicadas como exclusivamente simbólicas, atrever- me-ia a chamar-lhes “especulativas”, em detrimento da realidade “operativa” que, reconheça-se, Guénon não quis reconhecer por motivos só seus conhecidos, um deles, quiçá, o de pretender propositadamente baralhar ou confundir tudo, ou então tão-só o baralhar-se confundindo-se completamente. Mas a verdade é que certos brahmanes e panditas (“sacerdotes e instrutores”) sobretudo do Norte da Índia, ainda assim reprovaram-no severamente. Isto por haverem coisas de que não se deve falar demasiadamente... No final de 1925 profere na Sorbonne a única conferência pública da sua vida, tendo escolhido o tema La Métaphysique Orientale (“A Metafísica Oriental”). E continuará a dar lições de Filosofia até 1929 no Cours Saint-Louis, onde estudava a sua sobrinha. Em 15 de Janeiro de 4 René Guénon – Estudos sobre a Franco-Maçonaria e o Companheirismo – Comunidade Teúrgica Portuguesa 1928 a sua mulher faleceu, e pouco depois a sua tia, Mme. Duru, tendo a sua sobrinha voltado para casa da família. René Guénon ficou só. Em 1929 conheceu Marie W. Shillito, filha do “rei” dos caminhos-de-ferro canadianos, viúva de um engenheiro egípcio, Hassan Farid Dina. Tanto ela como o marido, enquanto este foi vivo, colocaram a sua fortuna ao serviço da investigação científica e de outros tipos de investigação. Mme. Dina viria a auxiliar grandemente em que a obra dispersa já publicada de Guénon fosse comprada aos diferentes editores e centralizada numa única casa editora, que a publicaria a seguir como exclusiva: a sede da revista Le Voile d´Isis, situada no Quai Saint-Michel (“Praça São Miguel”), em Paris. Em 5 de Março de 1930, René Guénon parte para o Egipto em companhia de Mme. Dina. No Cairo, onde primeiro se instala provisoriamente e depois definitivamente, tornar-se-á o Sheik Abdel Wahed Yahia, o seu nome islâmico significando “o servidor do Único”. Inteiramente islamizado, falando árabe sem qualquer sotaque, Abdel Wahed Yahia era agora um modesto habitante do Egipto, vivendo uma vida muito simples repartida entre o estudo e a oração. Em Julho de 1934 daria mais um passo na sua integração no mundo árabe, desposando Fatma ou Fátima, filha mais velha do Sheik Mohammad Ibrahim, em cuja residência o casal passa a viver, até que em 1937 decide ir para os arredores a oeste do Cairo, instalando-se no bairro de Doki, num lugar sossegado onde ninguém os incomodava. A sua casa era uma vivenda branca, escondida pela verdura, na esquina de uma rua tranquila. Guénon chamou-lhe “Vila Fátima” e sobre a porta estava escrita a frase em árabe: “Deus é a Majestade das Majestades”. Do seu casamento com Fatma nasceram duas filhas e dois filhos: Khadija, em 1944, Leila, em 1947. Entretanto, em 1948 obtém a nacionalidade egípcia. Em 5 de Setembro de 1949 nasce o seu primeiro filho, Ahmed, enquanto o seu segundo filho, Abdel Wahed, nascerá após a sua morte, em 17 de Maio de 1951. Em Novembro de 1950 os três filhos de Guénon adoeceram ao mesmo tempo, e enquanto não se curaram ele recusou deixar-se tratar, a tal ponto que se lhe tornou impossível qualquer actividade e os seus amigos não receberam mais nenhuma carta sua. Isso valeu-lhe no mês seguinte, Dezembro, ficar gravemente doente, ficar retido no leito passando a ser assistido pelo seu médico e amigo pessoal, dr. Katz. Contudo, os seus males agravaram-se de dia para dia: tinha dificuldade em falar, pronunciando com dificuldade algumas palavras, e esboçava descontroladamente certos movimentos, sintomas degenerativos da doença de Alzheimer. Por fim, em de 7 de Janeiro de 1951, verificou-se o desenlace fatal: já não conseguia alimentar-se nem ingerir qualquer medicamento, embora mantivesse a lucidez, tendo várias vezes erguido a cabeça da almofada exclamando: El Nafass Khalass, ou seja, “a alma está saindo do corpo”. Morreu às 23 horas desse dia, sendo as suas últimas palavras: Allah, Allah. Segundo as testemunhas, o seu corpo repousava “calmamente, com o rosto muito sereno, tendo desaparecido a crispação das últimas horas”. E o seu médico não soube explicar a causa da morte, visto que nenhum órgão fora particularmente atingido – “como se a alma tivesse partido misteriosamente”. O funeral, muito simples, decorreu no dia seguinte. O corpo ficou depositado no túmulo da família de sua mulher e, de acordo com o ritual islâmico, foi envolto num lençol de linho e deitado directamente sobre a areia, com o rosto voltado para Meca. Pouco antes de morrer, Guénon havia declarado à sua mulher que desejava que o seu gabinete de trabalho fosse mantido tal como estava, prometendo “que, mesmo invisível, ele estaria aí”. 5 René Guénon – Estudos sobre a Franco-Maçonaria e o Companheirismo – Comunidade Teúrgica Portuguesa Para terminar a feitura destes curtos dados biográficos de René Guénon, devo citar as duas fontes de consulta que foram imprescindíveis à mesma: o Prefácio de António Carlos Carvalho, Um homem simples: René Guénon, ao livro deste, A Crise do Mundo Moderno (Editorial Vega, Lisboa, Outubro de 1977), e Alguns dados sobre a vida e a obra de René Guénon, por Vitor de Oliveira, tradutor do seu livro O Reino da Quantidade e os Sinais dos Tempos (Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1989). T A obra póstuma de René Guénon, Estudos sobre a Franco-Maçonaria e o Companheirismo, foi editada em dois volumes pela primeira vez em Paris em 1964 e 1965, mas que aqui, na edição portuguesa, estão reunidos num único mesmo mantendo a ordem cronológica original de 1929 a 1950, onde além dos capítulos reportando-se aos múltiplos aspectos do tema maçónico o autor faz a crítica literária de livros e artigos de revistas que o seu editor parisiense de Voile d´Ísis, depois Etudes Traditionnelles, fazia chegar a ele já residindo no Cairo. Sobressai do conjunto da obra a distinção que René Guénon faz entre Maçonaria Operativa e Maçonaria Especulativa dando a primazia e mais-valia à primeira em detrimento da segunda, e igualmente o apelo constante ao “aperfeiçoamento humano” por parte dos maçons modernos preocupados quase exclusivamente com factores externos de natureza político-social, por exemplo, do que propriamente com a apuração interna realizando a Grande Obra Maçónica, ou seja, a criação do “Homem Novo” em termos de espiritualidade verdadeira, mental, emocional e física dentro da mais estrita ortodoxia maçónica. As suas críticas literárias de autores e obras cuja maioria desapareceu entretanto com a II Grande Guerra Mundial, têm o valor de quem conheceu de perto a maioria dos supraditos e o modo como agiram e agitaram através do ocultismo e do esoterismo a sociedade do seu tempo, antevendo o autor com muita precisão que tudo isso acabaria no conflito armado que abrasou o Mundo de 1939 a 1945, descartando-se a-priori de certos movimentos esotericistas, nacionalistas e xenófobos, entretanto surgidos e que impuseram as suas políticas segregacionistas de que até hoje o Mundo, particularmente a Europa, se ressente. Estudos sobre a Franco-Maçonaria e o Companheirismo termina de um modo brusco, como se o agravamento da doença e a morte do autor o tivessem impedido de a finalizar. Sendo o livro mais “fulanizado” de toda a obra literária de René Guénon, as informações inéditas que contém são de uma preciosidade indispensável para todos os estudiosos de Franco-Maçonaria e Companheirismo e um testemunho directo do desenvolvimento e acção dos principais intervenientes do ocultismo e esoterismo na Europa desde o século XVIII até à metade do XX. As inúmeras notas pessoais do tradutor acompanhando as opiniões do autor, servem igualmente como enriquecimento da obra nos seus vários pontos aparentemente obscuros onde as mesmas aparecem com a exclusiva pretensão de os clarear. Por tudo, Estudos sobre a Franco-Maçonaria e o Companheirismo merecem ser lidos e estudados por todo que se importam com estes temas de Tradição Iniciática, afiliados ou não nessas correntes tradicionais por esta obra ser sobretudo de interesse geral. A todos desejamos boa leitura e os maiores sucessos particulares nos seus estudos e pesquisas onde esta ferramenta literária impõe-se como indispensável. Vitor Manuel Adrião 6 René Guénon – Estudos sobre a Franco-Maçonaria e o Companheirismo – Comunidade Teúrgica Portuguesa CAPÍTULO I COLÓNIA OU ESTRASBURGO? Publicado em Voile de Ísis, Janeiro 1927 O assunto foi abordado no número de Outubro de 1926 do Voile d´Isis e deve ser, parece- nos, separado em duas partes: uma de ordem histórica e outra de ordem simbólica. A divergência assinalada não alcança, em suma, mais que o primeiro desses dois aspectos; por outro lado, pode ser que a contradição não seja senão aparente: se a catedral de Estrasburgo é seguramente o centro oficial de certo rito de Companheirismo, não será igualmente a de Colónia o centro de um outro rito? E não teria havido, precisamente por essa razão, duas cartas maçónicas distintas, uma datada de Estrasburgo e outra de Colónia, o que poderia ter dado lugar a uma confusão? Isso deveria ser verificado, faltando também saber se essas duas cartas têm a mesma data ou datas diferentes!... O assunto é interessante sobretudo do ponto de vista histórico. Este não é para nós o mais importante, porém, tampouco carece de valor porque de certo modo liga-se ao próprio ponto de vista simbólico: com efeito, não foi arbitrariamente que tal ou qual lugar tenha sido escolhido como centro de organizações como aquelas que aí actuaram. Seja como for, estamos inteiramente de acordo com M. Albert Bernet, quando diz que o “ponto sensível” deve existir em todas as catedrais que tenham sido construídas segundo as regras verdadeiras da arte, e também quando declara que “ele foi aplicado sobretudo pelo ponto de vista simbólico”. A esse respeito, foi feita uma observação curiosa: Wronski afirmou que em todo o corpo há um ponto determinado que se for atingido imediatamente o corpo inteiro desagrega-se por aí mesmo, volatiza-se de certa maneira ficando dissociadas todas as suas moléculas; ele pretendia ter achado o meio de determinar pelo cálculo a posição desse centro de coesão. Não é isso, sobretudo se considerado simbolicamente como pensamos que deve fazer-se, exactamente a mesma coisa que o “ponto sensível” das catedrais? A questão, na sua forma genérica, é igualmente aquela do chamado “nó vital” existente em todo o composto, como ponto de junção dos seus elementos constitutivos. A catedral construída segundo as regras forma um verdadeiro conjunto orgânico, e por isso ela também tem um “nó vital”. O problema que se reporta a este ponto é o mesmo daquele que expressava, na Antiguidade, o famoso símbolo do “nó górdio”, mas seguramente os Maçons modernos ficariam bem surpreendidos se alguém lhes dissesse que a sua espada pode desempenhar ritualisticamente, a esse respeito, a mesma função que a de Alexandre... Pode dizer-se ainda que a solução efectiva do problema em questão liga-se ao “poder das chaves” (potestas ligandi et solvendi) entendido no seu próprio significado hermético, correspondendo à segunda fase do solve et coagula dos alquimistas. Não se deve esquecer, como assinalámos no artigo de Regnabit a que se refere M. Paul Redonnel, que Janus era entre os Romanos o deus da iniciação aos Mistérios, e era ao mesmo tempo o patrono dos Collegia fabrorum, das corporações de artesãos que prosseguiram através de toda a Idade Média e, pelo Companheirismo, até aos tempos modernos. Porém, sem dúvida são muito pouco numerosos aqueles que, hoje em dia, ainda compreendem alguma coisa do simbolismo profundo da “Loja de São João”. 7 René Guénon – Estudos sobre a Franco-Maçonaria e o Companheirismo – Comunidade Teúrgica Portuguesa CAPÍTULO II ACERCA DOS CONSTRUTORES DA IDADE MÉDIA Publicado em Voile de Ísis, Janeiro 1927 Um artigo de M. Armand Bédarride, aparecido em o Symbolisme de Maio de 1929, ao qual já fizemos alusão na nossa crónica de revistas, parece-nos susceptível de dar lugar a algumas reflexões úteis. Esse artigo, intitulado As Ideias dos nossos Precursores, concerne às corporações da Idade Média consideradas como tendo transmitido alguma coisa do seu espírito e das suas tradições à Maçonaria moderna. Desde já observamos, a esse propósito, que a distinção entre “Maçonaria Operativa” e “Maçonaria Especulativa” parece-nos dever ser tomada num sentido diferente daquele que se lhe atribui comummente. Com efeito, imagina-se frequentemente que os Maçons “operativos” não passavam de simples obreiros ou artesãos e nada mais, e que o simbolismo dos significados mais ou menos profundos não chegou senão muito tardiamente, após a introdução nas organizações corporativas de pessoas estranhas à arte de construir. Mas essa não é a opinião de M. Bédarride, que cita um grande número de exemplos, especialmente nos monumentos religiosos, de figuras cujo carácter simbólico é incontestável. Ele fala em particular das duas colunas da catedral de Wurtzbourg, “que provam, diz ele, que os Maçons construtores do século XIV praticavam um simbolismo filosófico”, o que é exacto, com a condição, evidentemente, de entendê-lo no sentido de “filosofia hermética”, e não na acepção corrente de que não passaria de filosofia profana, a qual, de resto, nunca fez o menor uso de um simbolismo qualquer. Poderiam multiplicar-se os exemplos indefinidamente!... O próprio plano das catedrais é eminentemente simbólico, como já observámos em outras ocasiões. Falta acrescentar ainda que dentre os símbolos utilizados na Idade Média, além daqueles que os Maçons modernos conservaram a lembrança mas sem entenderem o seu significado, há muitos outros de que eles não têm a menor ideia1. Faz falta, em nossa opinião, algum tipo de contrapeso da opinião corrente e considerar a “Maçonaria Especulativa” como não sendo, sob muitos aspectos, senão uma degeneração da “Maçonaria Operativa”. Esta última, com efeito, era verdadeiramente completa em sua ordem, possuindo a teoria e a prática correspondente, e a sua designação pode nesse aspecto ser entendida como uma alusão às “operações” da “arte sagrada”, onde a construção segundo as regras tradicionais era uma das aplicações. Quanto à “Maçonaria Especulativa”, que nasceu no momento em que as corporações construtivas estavam em plena decadência, o seu nome indica muito claramente que ela está confinada à “especulação” pura e simples, ou seja, a uma teoria sem realização, e decerto que é uma maneira muito estranha encarar-se isso como um “progresso”. Se nisso não tivesse havido mais que um enfraquecimento, o mal não seria tão grande como é na realidade, porém, como já dissemos em diversas ocasiões, mais que isso aconteceu um verdadeiro afastamento nos inícios do século XVIII aquando da constituição da Grande Loja de Inglaterra, que foi o ponto de partida de toda a Maçonaria moderna. De momento não insistiremos mais, porém, temos de destacar que para compreender-se verdadeiramente o espírito dos construtores da 1 Tivemos ultimamente a ocasião de assinalar, na catedral de Estrasburgo e sobre outros edifícios da Alsácia, um número vultuoso de marcas de talhadores de pedra datadas de épocas diversas, desde o século XII até ao início do século XVII. Entre essas marcas há muitas bastante curiosas e encontramos especialmente a swástika, a que M. Bédarride faz alusão, num dos torreões em flecha da catedral de Estrasburgo. 8 René Guénon – Estudos sobre a Franco-Maçonaria e o Companheirismo – Comunidade Teúrgica Portuguesa Idade Média, tais observações são inteiramente essenciais, pois de outra forma alguém poderá conceber uma ideia falsa ou no mínimo muito incompleta. Outra ideia que não é menos importante rectificar, é aquela segundo a qual o emprego das formas simbólicas teria sido imposto simplesmente por razões de prudência. Que essas razões tenham existido algumas vezes, não contestamos, porém, esse não é senão o lado mais exterior e menos interessante da questão, já o dissemos a propósito de Dante e dos “Fiéis de Amor”2 e podemos repetir no que respeita às corporações de construtores, tanto mais que terão havido laços muito estreitos entre todas essas organizações de carácter aparentemente tão diferente, mas onde todas participavam dos mesmos conhecimentos tradicionais3. Ora o simbolismo é precisamente o modo de expressão normal dos conhecimentos desta ordem, e tal é a sua verdadeira razão de ser em todos os tempos e em todos os países, inclusive nos casos onde não era necessário dissimular o que quer que fosse, e tão simplesmente por haverem coisas que, pela sua própria natureza, não podem expressar-se senão dessa forma. O equívoco cometido frequentemente a respeito, do qual encontramos até certo ponto o eco no artigo de Bédarride, parece-nos dever-se a dois motivos principais, sendo o primeiro o que geralmente se concebe bastante mal sobre o que era o Catolicismo na Idade Média. Não se deveria esquecer que assim como há um esoterismo muçulmano, também houve nessa época um esoterismo católico, queremos dizer, um esoterismo que tomava a sua base e o seu ponto de apoio nos símbolos e nos ritos da religião católica, sobrepondo-se a esta mas sem opor-se de modo algum, não sendo duvidoso que certas Ordens religiosas estivessem muito longe de ser estranhas a esse esoterismo. Se a tendência da maior parte dos católicos actuais é negar a existência destas coisas, isso prova somente que eles não estão melhor informados a respeito que o resto dos nossos contemporâneos. O segundo motivo do erro que assinalámos, é imaginar-se que o que se oculta sob os símbolos são quase exclusivamente concepções sociais ou políticas4, mas na realidade trata-se de coisa diferente disso. As concepções dessa ordem não podiam ter, aos olhos dos que possuíam certos conhecimentos, mais que uma importância muito secundária, em suma, a de uma aplicação possível dentre muitas outras. Acrescentamos mesmo que em todas as partes onde chegaram a tomar um lugar bastante destacado e a tornar-se predominantes, invariavelmente foram uma causa de degeneração e afastamento5. Foi precisamente isso o que fez perder à Maçonaria moderna a compreensão do que ela ainda conserva do antigo simbolismo e das tradições de que, apesar de todas as suas insuficiências, é preciso dizê-lo, parece ser a única herdeira no mundo ocidental actual. Se nos objectarem, como prova das preocupações sociais dos construtores, com as figuras satíricas e mais ou menos licenciosas que às vezes encontram-se nas suas obras, a resposta é muito simples: essas figuras estão sobretudo destinadas a despistar os profanos, que se detêm na aparência exterior e nunca vêem o que elas dissimulam de mais profundo. Há nisso alguma coisa que está longe de ser particular aos construtores: alguns escritores como Boccacio e Rabelais, sobretudo, mas também muitos outros, adoptaram a mesma máscara e usaram do mesmo procedimento. Deve-se acreditar que esse estratagema foi eficaz, visto que ainda nos nossos dias, sem dúvida mais do que nunca, os profanos deixam-se enredar nele. Se se quiser ir ao fundo das coisas, há que ver no simbolismo dos construtores a expressão de certas ciências tradicionais relacionadas com o que se pode, de modo geral, designar pelo nome 2 Ver o Voile d´Ísis de Fevereiro de 1929. 3 Os Companheiros do “Rito de Salomão” conservaram até aos nossos dias a lembrança da sua conexão com a Ordem do Templo. 4 Esta maneira de ver é em grande parte aquela de Aroux e de Rossetti no que respeita à interpretação de Dante, encontrando-se também em muitas passagens da História da Magia de Eliphas Lévi. 5 O exemplo de certas organizações muçulmanas, nas quais as preocupações políticas de alguma maneira sufocaram a espiritualidade original, é muito claro a este respeito. 9 René Guénon – Estudos sobre a Franco-Maçonaria e o Companheirismo – Comunidade Teúrgica Portuguesa de “Hermetismo”. Somente não se deve acreditar, posto que falamos aqui de “ciências”, tratar-se de alguma coisa comparável à ciência profana, a única conhecida por quase todos os modernos. Parece que uma assimilação desse género formou-se no espírito de M. Bédarride, que fala “da forma mutável dos conhecimentos positivos da ciência”, o que se aplica própria e exclusivamente à ciência profana, e tomando à letra várias imagens puramente simbólicas crê ter descoberto aí ideias “evolucionistas” e inclusive “transformistas”, ideias que estão em contradição absoluta com todo o fundamento tradicional. Já desenvolvemos longamente, em muitas das nossas obras, a distinção entre a ciência sagrada ou tradicional e a ciência profana, pelo que não podemos nem sonhar reproduzir aqui todas essas considerações, mas ao menos julgamos como bom mais uma vez atrair a atenção sobre esse ponto capital. Não acrescentaremos mais que algumas palavras para concluir: não é sem razão que Janus, entre os Romanos, era o deus da iniciação aos Mistérios e o deus das corporações de artesãos. Tampouco é por nada que os construtores da Idade Média conservaram as duas festas solsticiais desse mesmo Janus, tornadas com o Cristianismo na dos dois São João de Inverno e de Verão. E quando se conhece a conexão de São João com a vertente esotérica do Cristianismo, não se verá imediatamente que, sob a adaptação requerida pelas circunstâncias e pelas “leis cíclicas”, é sempre da mesma iniciação aos Mistérios que efectivamente se trata? 10
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