ESTÉTICA DA CRIAÇÃO VERBAL ESTÉTICA DA CRIAÇÃO VERBAL Mikhail Bakhtin radução feita a partir do francês MARIA ERMANTINA GALVÃO G. PEREIRA MARTINS FONTES SÃO PAULO 1997 Título original: ESTET1KA SLOVESNOGO TVORTCHESTVA Copyrighf © by Edições Iskustvo”, Mascou, 1979 Copyright © Livraria Marfins Fontes Editora Ltda. São Paulo 1992, para a Presente edição 2ªedição maio de 1997 Tradução feita a partir do francês MARIA ERMANTINA GALVÃO G. PEREIRA Revisão da tradução Marina Appenzeller Revisão gráfica — Flora Maria de Campos Fernandes Sandra Rodrigues Garcia Produção gráfica Geraldo Alves Composição Ademilde L. da Silva Alexandre Augusto Nunes Capa Katia H. Terasaka SP, Dados Internacionais de Catalogaçao na Publicação (CII’) (Câmara Brasileira do Livro, Brasil) Bakhtin, Mikhail Mjkhailovitch, 1895-1975. Estética da criação verbal / Mikhail Bakhtin [tradução feita a partir do francês por Maria Emsantina Galvão G. Pereira revisão da tradução Marina Appenzellerl. — 2’ cd. —São Paulo Martins Fontes, 1997.— (Coleção Ensino Superior) Título original: Estetika slovesnogo tvortchestva. ISBN 85-336-0616-8 1. Literatura — Estética 2. Literatura — História e crítica 1. Título. II. Série. 97-1444 CDD-809 Índices para catálogo sistemático: 1. Literatura : História e crítica 809 Todos os direitos para o Brasil reservados àLivrana Maflins Fontes Editora Lkkí. Rua Conselheiro Ramalho, 330/340 01325-000 São Paulo SP Brasil Telefone 239-3677 Sumário Prefácio . O AUTOR E O HERÓI 23 1 - O problema do herói na atividade estética 25 II - A forma espacial do herói 43 1. O excedente da visão estética 43 2. A exterioridade (o aspecto físico) 47 3. A exterioridade da configuração espacial 55 4. A exterioridade do ato 61 5. O corpo interior 65 6. O corpo exterior 78 7. O todo espacial do herói. Teoria do “horizonte” e do “ambiente” 107 III - O todo temporal do herói 115 1. O herói e sua integridade na obra de arte 115 2. A relação emotivo-volitiva com a determinação interior. Problema da morte (da morte de dentro e da morte de fora) 116 3. O ritmo 126 4. A alma 146 IV - O todo significante do herói 153 1. O ato e a introspecção-confissão 153 2. A autobiografia e a biografia 164 3. O herói lírico 181 4. O caráter 186 5. O tipo 195 6. A hagiografia 198 V - O problema do autor 201 1. O problema do herói (recapitulação) 201 2. O conteúdo, a forma, o material 206 3. O contexto de valores (autor e contexto literário) 208 4. A tradição e o estilo 215 O ROMANCE DE EDUCAÇÃO NA HISTÓRIA DO REALISMO 221 1 - Para uma tipologia histórica do romance 223 1. O romance de viagem 223 2. O romance de provas 225 3. O romance biográfico 231 II - O romance de educação 235 III - O espaço e o tempo 243 OS GËNEROS DO DISCURSO 277 1 - Problemática e definição 279 II - O enunciado, unidade da comunicação verbal ... 289 O PROBLEMA DO TEXTO 327 OS ESTUDOS LITERÁRIOS HOJE 359 APONTAMENTOS 1970-1971 369 OBSERVAÇÕES SOBRE A EPISTEMOLOGIA DAS CIÊNCIAS HUMANAS 399 Índice remissivo 415 Prefácio 1 Mikhail Bakhtin (1895-1975) é uma das figuras mais fascinantes e enigmáticas da cultura européia de meados do século XX. A fascinação é facilmente compreensível: obra rica e original à qual nada pode ser comparado na produção soviética em matéria de ciências humanas. Mas a essa admiração acrescenta-se um elemento de perplexidade, pois somos inevitavelmente levados a perguntar: quem é Bakhtin, e quais são os traços distintivos de seu pensamento? Pois este tem facetas tão múltiplas que por vezes nos pomos a duvidar que se tenha originado sempre de uma única e mesma pessoa. A obra de Bakhtin chamou a atenção do público em 1963, ano em que foi reeditada sua obra sobre Dostoievski, publicada originalmente em 1929 (e que já fora notada na época), numa forma sensivelmente modificada. Mas esse livro apaixonante, Problèmes de la poétique de Dostoïevski (trad. franc., 1970), bem que já colocava problemas, se nos interrogássemos sobre sua unidade. Compõe-se, em linhas gerais, de três partes bastante autônomas: o primeiro terço é constituído da exposição e da ilustração de uma tese sobre o universo romanesco de Dostoievski, expressa em termos filosóficos e literários; o segundo, de uma exploração de alguns gêneros literários menores, os diálogos socráticos, a menipéia antiga e as produções carnavalescas medievais, que são apresentados por Bakhtin como a raiz de que descenderia Dostoievski, enfim, o terceiro terço comporta um programa de estudos estilísticos, ilustrado por análises dos romances de Dostoievski. Depois, em 1965, foi publicado um livro sobre Rabelais (trad. franc. 1970, bras., 1987), que podia passar por uma ampliação da segunda parte do livro sobre Dostoievski (ou inversa- 2 mente – o que é verdade –, esta parte podia, portanto, ser considerada como um resumo do livro sobre Rabelais), mas que tinha poucas relações com as outras duas partes: de um lado, análise temática e não mais estilística; do outro, obra histórica e descritiva, que não deixava espaço para as intuições filosóficas do Dostoïevski. Foi essa obra que chamou a atenção dos especialistas para fenômenos como a cultura popular e o carnaval. Em 1973, um lance teatral: várias fontes autorizadas (soviéticas) revelam que Bakhtin é o autor, ou em todo caso o co-autor principal, de três livros e de vários artigos, publicados sob outros nomes na URSS, no final dos anos vinte (dois desses livros existem em francês, Marxisme et philosophie du langage, 1977 [Marxismo e filosofia da linguagem, ed. bras., 1990] e Le Freudisme 1980; os artigos foram traduzidos em anexo ao meu livro Mikhaïl Bakhtine, le principe dialogique, 1981). Porém, esse enriquecimento da bibliografia bakhtiniana só podia aumentar a perplexidade dos leitores que já haviam tido dificuldade em compreender a relação entre seu Dostoievski e seu Rabelais, pois os textos dos anos vinte faziam ouvir um tom de voz ainda mais diferente: o de uma crítica violenta, de inspiração sociológica e marxista, da psicanálise, da lingüística (estrutural ou não) e da poética, tal como a praticavam os formalistas russos. Em 1975, ano de sua morte, Bakhtin publica um novo volume, Questões de literatura e de estética [ed. bras., 1990] (trad. franc. com o título Esthétique et théorie du roman, 1978), composto de estudos que datam em sua maioria dos anos trinta. Esses estudos prosseguem, de fato, as pesquisas estilísticas do Dostoievski e preparam a análise temática do Rabelais (este último, na verdade, fora terminado em 1940); logo, permitem começarmos a orientar- nos na obra de Bakhtin, pondo em evidência a passagem de uma monografia para a outra. Enfim, último fato imprevisto (até agora): em 1979, é publicado um novo volume de inéditos, preparado por seus editores; é esse livro que se encontra traduzido aqui. Comporta, no essencial, os primeiros e os últimos escritos de Bakhtin: uma grande obra anterior ao período sociológico, e notas e fragmentos datados dos últimos vinte anos de sua vida. Muitas coisas se explicam depois da publicação desta nova coletânea, mas outras, pelo contrário, se obscurecem, já que aos diferentes 3 Bakhtin que já conhecíamos, acrescenta-se mais um, fenomenólogo e talvez “existencialista… O pensamento de Bakhtin coloca um problema, não há dúvida. Não se trata de impor-lhe artificialmente uma unidade que nele não existiria; mas de torná-lo inteligível, o que é muito diferente. Para avançar um pouco nessa via, há que se voltar para a história e procurar responder a esta pergunta: como situar Bakhtin em relação à evolução das ideologias neste século XX? II Bakhtin apresenta-se, à primeira vista, como um teórico e historiador da literatura. Ora, na época em que estréia na vida intelectual russa, o primeiro plano, em matéria de pesquisa literária, está ocupado por um grupo de críticos, de lingüistas e de escritores, chamados os “formalistas” (para nós, os “formalistas russos”). Os formalistas mantêm relações incertas com o marxismo e não dominam as instituições (serão, aliás, reprimidos por isso a partir do final dos anos vinte); mas têm a vantagem do talento, e seu prestígio é incontestáve. Para estabelecer seu lugar no debate literário e estético de seu tempo, Bakhtin deve, portanto, situar-se com relação aos formalistas, o que irá fazer em duas ocasiões: primeiro, num longo artigo de 1924 (publicado pela primeira vez em Voprosy em 1975); segundo, através do livro O método formal em estudos literários (1928), cujo autor oficial é P. Medvedev. Quais são as grandes opções da estética formalista? A arte e a literatura nela se definem por não servirem a fins externos, mas por encontrarem sua justificação em si mesmas. Desse modo, o essencial não está na relação da obra com outras entidades – o mundo, ou o autor, ou os leitores –, mas na relação de seus próprios elementos constitutivos entre si. Isto leva os formalistas a prestar uma atenção constante (e muito original na época) à versificação, aos “processos” narrativos, à composição da intriga, à paródia e às outras características especificamente verbais das obras. Ora, se a descoberta e a descrição de novos fenômenos (ou de novas facetas dos antigos) é por si só ideologicamente neutra, o contexto geral dos formalistas e a sua estética pertencem a uma tradição precisa, que os formalistas herdam de seus ami- 4 gos, os poetas futuristas (Khlebnikov, Krutchennykh, Maiakovski). É verdade que estes se julgam em ruptura total com seu tempo; na realidade, entretanto, suas idéias não passam de uma versão radical da doutrina estética que então domina o pensamento europeu há mais de cem anos, doutrina esta elaborada no âmbito da filosofia idealista alemã, e mais particularmente pelos românticos de Iena. Romântica já é em sua origem a oposição global entre arte e não-arte, entre a estrela da poesia e a mornidão do discurso cotidiano (que, entre os formalistas, se encontrará na dicotomia linguagem poética-linguagem prática). Romântica também é a definição da arte como atividade a um só tempo intransitiva e superestruturada (em que a ausência de finalidade externa, dizia K. Ph. Moritz, é compensa- da por um aumento de fina/idade interna), e, portanto, da obra como um todo autônomo. Essas opções estéticas, por sua vez, estão relacionadas com grandes mutações ideológicas da época. A substituição da busca de uma transcendência pela afirmação do direito de cada indivíduo de julgar-se de acordo com seus próprios critérios concerne tanto à ética e à política quanto à estética: os tempos modernos serão marcados pelo advento do individualismo e do relativismo. Dizer que a obra é regida apenas pela coerência interna, e sem a referência a absolutos exteriores, que seus sentidos são infinitos e não hierarquizados, é também participar dessa ideologia moderna. A primeira censura que Bakhtin dirige aos formalistas é a de não saber o que estão fazendo, de não refletir sobre fundamentos teóricos e filosóficos da sua própria doutrina. Não se trata de uma falha fortuita: os formalistas compartilham esse traço com todos os positivistas, que acreditam estar praticando a ciência e buscando a verdade, esquecendo que se baseiam em pressupostos arbitrários. Bakhtin vai encarregar-se de fazer essa explicitação no lugar deles, para permitir elevar o debate: a doutrina formalista, diz ele, é uma estética do material, pois reduz os problemas da criação poética a questões de linguagem; daí a reificação de noção de “linguagem poética”, daí o interesse por “processos” de todos os tipos. Com isso, os formalistas menosprezam os outros ingredientes do ato de criação, que são o conteúdo, ou relação com o mundo, e a forma, entendida aqui como intervenção do autor, como a escolha que 5 um indivíduo singular faz entre os elementos impessoais e genéricos da linguagem. A verdadeira noção central da pesquisa estética não deve ser o material, mas a arquitetônica, ou a construção, ou a estrutura da obra, entendida como um ponto de encontro e de interação entre material, forma e conteúdo. Portanto, Bakhtin não critica a própria oposição entre arte e não-arte, entre poesia e discurso cotidiano, mas o ponto onde os formalistas procuram situá-la. “Os traços característicos do poético não pertencem à linguagem e aos seus elementos, mas somente às construções poéticas”, escreve Medvedev (p. 119; todas as referências remetem às edições originais), e acrescenta: “O objeto da poética deve ser a construção da obra literária” (p. 141). Mas o poético e o literário não são definidos de outro modo pelos formalistas: “Na criação poética, o enunciado rompeu seus laços com o objeto, tal como este existe fora do enunciado, do mesmo modo que com a ação [...]. A realidade do próprio enunciado não serve aqui a nenhuma outra realidade” (ibid., p. 172). A crítica de Bakhtin incide, portanto, sobre os formalistas, mas não sobre o âmbito da estética romântica de que são oriundos. O que ele lhes censura não é seu “formalismo” e sim seu “materialismo”; poderíamos até dizer que Bakhtin é mais formalista que eles, se tornarmos a dar à “forma” seu sentido pleno de interação e de unidade dos diferentes elementos da obra (sentido que também não está totalmente ausente entre os formalistas); é esse outro sentido que Bakhtin tenta reencontrar, introduzindo estes sinônimos valorizados: “arquitetônica” ou “construção”. O que ele critica é justamente a vertente não romântica dos formalistas: a expressão “estética do material” se aplica às mil maravilhas a um programa como o desenvolvido por Lessing no Laocoonte, onde as propriedades da pintura e da poesia são deduzidas de seus respectivos materiais. Mais além de Lessing, é a tradição aristotélica que se encontra evocada aqui, com sua descrição de “processos” desencarnados como as figuras e os tropos, a peripécia e o reconhecimento, as partes e os elementos da tragédia. O paradoxo dos formalistas (e sua originalidade) fora praticar descrições “clássicas” (aristotélicas) a partir de premissas ideológicas românticas; Bakhtin restabelece a doutrina romântica em sua pureza. Quando Goethe se debruçava sobre 6 o mesmo grupo escultural do Laocoonte, já introduzia as noções de obra, de unidade, de coerência, em vez das leis gerais da pintura e da poesia, caras a Lessing. Permanecemos no espírito de Schelling e de seus amigos quando vemos a obra de arte como a fusão do subjetivo com o objetivo, do singular com o universal, da vontade com a coerção, da forma com o conteúdo. A estética romântica valoriza a imanência, não a transcendência; logo, tem pouco interesse em elementos trans-textuais como a metáfora, ou as rimas dactílicas, ou os processos de reconhecimento. Bakhtin tem razão de censurar aos formalistas a ignorância da sua própria filosofia; mas a filosofia dele tem uma cor bem precisa: é a dos românticos. O que não é por si só uma tara, porém limita a originalidade de sua posição. Não nos apressemos, contudo, em concluir. Trata-se nesse caso de dois textos dos anos vinte e, ainda que Bakhtin nunca rompa seus vínculos com a estética romântica (em especial em sua teoria do romance), seu pensamento não se limita a isso, pelo contrário. Aliás, a própria problemática dos princípios estéticos gerais aparece antes como marginal em sua obra ou, em todo caso, como uma transição. Há outro tema que, como descobrimos agora, estava no centro de sua atenção já no início dos anos vinte, e ao qual ele não cessa de voltar até o fim da vida; um tema ao mesmo tempo particular, pois só se referia a uma única questão estética, e mais geral, porquanto ultrapassava, e de longe, a estética como tal: é o tema da relação entre o criador e os seres criados por este, ou, como diz Bakhtin, entre autor e herói. Observá-lo será ainda mais instrutivo porque aí descobriremos – e isso é raro em sua longa carreira intelectual – uma reviravolta espetacular nas idéias de Bakhtin a esse respeita A posição inicial se encontra em seu primeiro livro, recentemente descoberto (e aqui traduzido) e dedicado precisamente a essa questão. Em linhas gerais, ela consiste em dizer que uma vida encontra um sentido, e com isso se torna um ingrediente possível da construção estética, somente se é vista do exterior, como um todo; ela deve estar completamente englobada no horizonte de alguma outra pessoa; e, para a personagem, essa alguma outra pessoa é, claro, o autor: é o que Bakhtin chama a “exotopia” deste último. A criação estética é, pois, 7 um exemplo particularmente bem-sucedido de um tipo de relação humana: aquela em que uma das duas pessoas engloba inteiramente a outra e por isso mesmo a completa e a dota de sentido. Relação assimétrica de exterioridade e de superioridade, que é uma condição indispensável à criação artística: esta exige a presença de elementos “transgredientes”, como diz Bakhtin, isto é, exteriores à consciência tal como ela se pensa do interior, mas necessários à sua constituição como um todo. Assimetria a cujo respeito Bakhtin não hesita em recorrer a uma comparação eloqüente: “A divindade do artista reside em sua assimilação à exotopia superior” (Estetika, 166, o grifo é meu). Bakhtin não ignora que está descrevendo aí uma norma, e não uma realidade. Certos autores – como Dostoievski, por exemplo – esquecem essa lei estética, essa superioridade necessária do autor sobre a personagem, e dão a esta tanto peso quanto ao autor, ou, inversamente, abalam a posição do autor até torná-la semelhante à de uma personagem; de um modo ou de outro, esses autores afastados da norma põem os dois no mesmo plano, gesto que tem conseqüências catastróficas, pois não há mais, de um lado, a verdade absoluta (do autor) e, do outro, a singularidade da personagem; existem apenas posições singulares, e nenhum lugar para o absoluto. Num texto de 1929 assinado por Volochinov, ficamos sabendo que essa espécie de renúncia ao absoluto é uma característica (deplorável) da sociedade moderna: já não se ousa dizer nada com convicção; e para dissimular as incertezas, as pessoas refugiam-se nos diversos graus da citação: já não falamos senão entre aspas. Tal exigência da exotopia superior é perfeitamente “clássica”: Deus existe realmente e permanece em seu lugar, não se confunde o criador com suas criaturas, a hierarquia das consciências é inabalável, a transcendência do autor nos permite avaliar com segurança suas personagens. Mas ela não será mantida. No meio do caminho, Bakhtin deixa-se influenciar por seu contra-exemplo, Dostoievski (ou pela imagem dele que faz para si); seu primeiro livro, publicado em 1929, é consagrado a ele, e é um elogio da via anteriormente condenada. A concepção anterior, em vez de ser mantida na categoria de uma lei estética geral, torna-se a característica de um estado de espírito que Bakhtin estigmatiza com o nome de “monologis- 8 mo”; a perversão dostoievskiana, ao contrário, eleva-se como encarnação do “dialogismo” a um só tempo concepção do mundo e estilo de escrita, pelos quais Bakhtin não esconde sua preferência. Enquanto antes exigia a assimetria entre a personagem e o autor, e a superioridade do último, Bakhtin agora não se cansa de repetir: “Em suas obras [as de Dostoievski] aparece um herói cuja voz é construída da mesma maneira que se constrói a voz do autor num romance de tipo habitual” (pp. 7-8). “Agora é o herói que realiza o que o autor realizava” (p. 65). O autor não tem qualquer vantagem sobre o herói, não há nenhum excedente semântico que o distinga dele, e as duas consciências têm direitos perfeitamente iguais. “As idéias do Dostoievski-pensador, entrando em seu romance polifônico [...], entabulam um grande diálogo com as outras imagens de idéias, em um pé de perfeita igualdade” (p. 122). Para falar como Buber (Bakhtin já o faz), Dostoievski seria o primeiro a assimilar as relações entre autor e personagem às relações do tipo “eu-tu” e não mais “eu-isso”. A referência ao absoluto, e portanto à realidade, que sustentava a concepção anterior, encontra-se agora rejeitada. Bakhtin até escreve: “A representação artística da idéia só é possível quando esta é posta acima da afirmação ou da negação, sem por isso ser trazida de volta à categoria de uma simples experiência psíquica” (p. 106). O romance “monológico” conhece apenas dois casos: ou as idéias são assumidas por seu conteúdo, e então são verdadeiras ou falsas; ou são tidas por indícios da psicologia das personagens. A arte “dialógica” tem acesso a um terceiro estado, acima do verdadeiro e do falso, do bem e do mal assim como no segundo, sem que por isso se reduza a ele: cada idéia é a idéia de alguém, situa-se em relação a uma voz que a carrega e a um horizonte a que visa. No lugar do absoluto encontramos uma multiplicidade de pontos de vista: os das personagens e o do autor que lhes é assimilado; e eles não conhecem privilégios nem hierarquia. A revolução de Dostoievski, no plano estético (e ético), é comparável à de Copérnico, ou ainda à de Einstein, no plano do conhecimento do mundo físico (imagens favoritas de Bakhtin): não há mais centro, e vivemos na relatividade generalizada. Bakhtin mantém sua observação, segundo a qual em nos- 9 so mundo contemporâneo é impossível assumir uma verdade absoluta, e devemos nos contentar em citar ao invés de falar em nosso próprio nome; mas não acrescenta mais nenhuma condenação nem pesar a essa constatação: a ironia (é assim que ele chama agora esse modo de enunciação) é nossa sabedoria, e quem ousaria hoje proclamar verdades? Rejeitar a ironia é optar deliberadamente pela “tolice”, limitar-se a si mesmo, estreitar o horizonte (cf. Estetika, p. 352): é assim que procede Dostoievski em seus escritos jornalísticos. A única outra possibilidade – mas esta nem por isso nos permite encontrar o absoluto – seria colocar-se à escuta do ser, como recomenda Heidegger (ibid., p. 354). E impressionante ver a que ponto a argumentação desenvolvida por Bakhtin é paralela à formulada, quase na mesma época, por Jean-Paul Sartre. Num artigo de 1939, “M. François Mauriac et la liberté” (Situations 1, 1947), Sartre recusa qualquer prática romanesca em que o autor ocupasse uma posição privilegiada em relação às suas personagens; ele não uti- liza o termo “monológico”, mas não está longe de identificar “romance” e “dialogismo”: “O romancista não tem o direito de abandonar o campo da batalha e de [...] julgar” (p. 41), deve contentar-se em apresentar suas personagens; se julgasse, se assimilaria a Deus; ora, Deus e o romance se excluem mutualmente (é isso que Mauriac não teria compreendido): “Um romance é escrito por um homem para homens. Aos olhos de Deus, que traspassa as aparências sem nelas se deter, não há romance” (p. 57). Como Bakhtin, Sartre assimila essa revolução romanesca ao nome de Dostoievski e, como ele, compara-a com a de Einstein: “Num verdadeiro romance, assim como no mundo de Einstein, não há lugar para um observador privilegiado” (pp. 56-57). E, como ele, conclui pelo desaparecimento do absoluto: “A introdução da verdade absoluta” num romance só pode provir de um “erro técnico” (p. 47), pois o romancista “não tem o direito de formular juízos absolutos” (p. 46)1. 1. É bem curioso ver que quando, trinta anos mais tarde, Sartre toma conhecimento do livro de Bakhtin ele não reconhece seu próprio pensamento, preocupado que está em refutar o “formalismo”: “Acabei, por exemplo, de ler o livro de Bakhtin sobre Dostoievski, mas não vejo o que o novo formalismo — a semiótica — acrescenta ao antigo. No conjunto, o que censuro nessas pesquisas é que elas não levam a nada: não encerram seu objeto, são conhecimentos que se dissipam.” (Contat e Rybalka, “Un entretien avec Jean-Paul Sartre”, Le Monde de 14-5-1971.) 10 Isso não significa que Bakhtin queria que se tomasse sua posição pela de um relativista; mas não chega a explicar bem em que consiste a diferença. Gosta de comparar o pluralismo de Dostoïevski, tal como o estabelece, com o de Dente, uma vez que este faz ouvir, na simultaneidade ideal da eternidade, as vozes dos ocupantes de todas as esferas terrestres e celestes (Dostoïevski, pp. 36 e 42); Bakhtin, porém, contenta-se em anotar como um fato secundário o caráter “vertical”, isto é, hierarquizado, do universo de Dante, em oposição ao mundo “horizontal” de Dostoievski, mundo da “pura coexistência” (Voprosy, p. 308). Ora, a djferença é imensa e, se fosse verdadeira, não se vê bem em que Dostoievski e Bakhtin, que se apresenta como seu porta-voz, escapariam ao relativismo! Se fosse esta a última palavra de Bakhtin, cumpriria realmente ver nele o representante, se não da estética romântica em sua corrente principal, pelo menos da ideologia individualista e relativista que domina a época moderna. Mas as coisas são um tanto mais complexas. Ao mesmo tempo que ilustra essa ideologia, Bakhtin faz ouvir uma voz muito diferente. Entretanto, aqui, ao contrário do que se passava anteriormente, entre o livro de juventude sobre o autor e o herói e a obra sobre Dostoievski, o conflito já não é aberto, não corresponde a uma sucessão no tempo, e pode-se supor que Bakhtin estivesse consciente disso. Trata-se mais de inconsistências reveladoras no que Bakhtin acha ser uma afirmação homogênea; mas talvez seja daí que vem sua mais nova contribuição. É preciso, para encontrar este outro – terceiro! — Bakhtin, tornar a partir da interpretação que ele faz do pensamento e da posição de Dostoievski, já que estes são determinantes para as idéias do próprio Bakhtin. Depois de seu célebre discurso sobre Puchkin, em 1880, Dostoievski é interpelado por um escritor da época, Kavelin, que lhe opõe sua idéia da moralidade: age moralmente aquele que age de perfeito acordo com suas convicções. E, portanto, uma outra versão do credo relativista e individualista (cada um é seu próprio juiz), no fundo, não muito diferente daquele que Bakhtin acredita encontrar em Dostoievski. Ora, este último escreve, em seu projeto de resposta a Kavelin: “Não basta definir a moralidade pela fidelidade a suas convicções. Cumpre ainda suscitar continuamente em si a pergunta: as minhas convicções serão verdadeiras? Ora, o úni- II co meio de verificá-las é Cristo [...]. Não posso considerar como um homem moral aquele que queima os hereges, pois não reconheço vossa tese, segundo a qual a moralidade é a harmonia com as convicções íntimas. Isto é somente a honestidade [...], não a moralidade. Tenho um modelo e um ideal moral – é Cristo. Pergunto: teria ele queimado os hereges? Não. Então isso significa que queimar os hereges é um ato imoral [...] Cristo cometia erros – está provado! O mesmo sentimento ardente diz: prefiro permanecer com o erro, com Cristo, do que convosco” (Literaturnoc nasledstvo, t. 83, pp. 674 s.). Logo, Dostoievski exige realmente a existência de uma transcendência, distingue honestidade (fidelidade às convicções) de verdade. Acrescenta a isso que a verdade humana deve antes ser encarnada do que permanecer uma abstração: é o sentido da figura de Cristo; essa verdade humana, encarnada, vale até mais do que a outra, e deve ser a preferida se as duas se contradizem (os “erros” de Cristo): esta é a especificidade da verdade moral. Bakhtin conhece e cita este texto (Dostoïevski, pp. 130-131). Porém o comentário que faz sobre ele é claramente revelador de sua interpretação de Dostoievski. “Ele prefere permanecer com o erro, mas com Cristo”, escreve ele (ibid., p. 131), ou mais tarde: “A oposição entre a verdade e Cristo em Dostoievski” (Estetika, p. 355). A parcialidade dessa interpretação está próxima do contra-senso: Dostoievski não opõe a verdade e Cristo, mas identifica-os para opô-los à filosofia dos “pontos de vista” ou das “convicções”; sendo apenas secundariamente que opõe, no mundo moral, verdade encarnada à verdade impes- soal, para preferir a primeira à segunda. Contudo reconhecê-lo teria destruído a posição de Bakhtin que, num espírito muito próximo de Kavelin, afirma que “todos os heróis principais de Dostoievski são, enquanto homens de idéia, absolutamente desinteressados, na medida em que a idéia tomou realmente posse do núcleo profundo da personalidade deles” (Dostoïevski, p. 115): isso não é basear o juízo moral na fidelidade às convicções, que compartilham o assassino Raskolnikov, a prostituta Sônia, Ivan, o cúmplice do parricida e o “adolescente” que sonha em se tornar Rothschild? Nos planos de um romance abandonado, A vida de um grande pecador, Dostoievski escreve: “Mas que a idéia reinan- 12
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