Powered by TCPDF (www.tcpdf.org) Contracapas: não foram poucos os que se deixaram seduzir por monstos e criaturas fantásticas: Plínio, o Velho; Alexandre, o Grande; Aristóteles; Santo Agostinho; Isidoro de Sevilha; Marco Pólo; Gesner; Theodor de Bry; Rabelais; Bosch; Dante Alighieri; Jorge Luis Borges; Câmara Cascudo. Testemunos eloqüentes de mentalidades e visões de mundo, os monstros acompanham a humanidade há séculos – e pode-se dizer que chegam até mesmo a fazer parte dela. Esquecidos por Deus, história das criaturas fabulosas, é também uma história da humanidade, sob um dos seus aspectos mais poderosos: a imaginação. ESQUECIDOS POR DEUS Este livro pode ser lido como uma história das representações alegóricas dos medos e desejos da humanidade. Pode ser entendido também como um relato saboroso da errância das criaturas fantásticas por este mundo. Mas a leitura sugere que se trata, acima de tudo, de uma chave original e eficiente para compreender OS mecanismos de herança do imaginário ao longo da história. Mary Del Priore nasceu em 1952, no Rio de Janeiro, e é professora de história do Brasil na Universidade de São Paulo. É autora de diversos livros, entre eles História das mulheres no Brasil (Contexto/Editora da UNESP, prémio jabuti 1998) e História das crianças no Brasil (Contexto, 1999). Para a Companhia das Letras, organizou a edição crítica de Monstros e monstrengos do Brasil, de Afonso d’Escragnolle-Taunay (1998). ESQUECIDOS POR DEUS MARY DEL PRIORE Esquecidos por Deus Monstros no mundo europeu e ibero-americano (séculos XVI-XVIII) COMPANHIA DAS LETRAS Copyright © zooo by Mary Dei Priore Capa Ettore Bottini sobre detalhes de gravuras de Theodor de Bry (séc. XVI-XVII) Índice remissivo Maria Claudia Carvalho Mattos Preparação Isabel Jorge Cury Revisão Carlos Alberto Inada Carmen S. da Costa Ana Maria Barbosa Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cli’) (Câmara Brasileira do Livro, si’, Brasil) Del Priore, Mary Para os meus três monstrinhos adorados: Pedro Augusto, Paulo Fernando e Isabel Esquecidos por Deus : monstros no mundo europeu e ibero-americano uma história dos monstros do Velho e do Novo Mundo (séculos XVI-XVIII) / Mary Del Priore. — São Paulo Companhia das Letras, zooo. Bibliografia. ISBN 85-7164-992-8 i. Literatura fantástica — História e crítica 2. Monstros 1. Título. li. Título: Monstros no mundo europeu e Ibero- americano: uma história dos monstros do Velho e do Novo Mundo (séculos XVI – XVIII) 00-1035 CISD-39&45 Índices para catálogo sistemático: 1. Monstros: Folclore 398.45 2. Seres fantásticos: Folclore 398.45 [20001 Todos os direitos desta edição reservados à EDITORA SCHWARCZ LTDA. Rua Bandeira Paulista 702 Cj. 32 04532-002 — São Paulo — SP Telefone (11) 3846-0801 Fax(11) 3846-0814 e-mail: [email protected] Índice I. Introdução 11 ii. Monstros: o espelho das trevas no Ocidente medieval 17 iii. A ambígua vitória da razão e as armadilhas da natureza 39 iv. No reino, sem limites, do insólito 61 v. Monstros e maravilhas no Brasil colonial 77 vi. As diabólicas criaturas da noite: vampiros, lobisomens e outros abantesmas 102 vii. Conclusão 123 Pequeno anexo 127 Notas 129 Índice remissivo 141 Agradecimentos Sou profundamente grata ao cNPq; sem a bolsa de auxílio à pesquisa integrada teria sido impossível o estudo bibliográfico que resultou neste livro. Agradeço, igualmente, às bibliotecárias da Fundação Calouste Gulbenkian Paris pelo paciente e caloroso auxílio prestado nas consultas que ali realizei sobre os monstros na literatura de cordel setecentista. Meus pedidos, muitas vezes apressados, foram sempre atendidos com extrema gentileza. Tenho também uma dívida intelectual com Luís da Câmara Cascudo, cujo centenário de nascimento se celebrou em 1998. Suas deliciosas histórias sobre monstros e afins alimentaram minhas próprias histórias e aquelas que contei aos meus monstrinhos. 9 i. Introdução O tempo presente é mais monstruoso do que natural. François Belleforest (1570) Imaginemos a cena: o uivo distante de lobos, no vale escuro e no silêncio da noite, O luar trêmulo e a vaga imagem de fantasmas. Mulheres com cabelos desgrenhados e o pavoroso cerco de trevas, sombras e temores. Rasgando a escuridão espectral, um grito: “Monstro, dá-me a minha criança!” É o uivo angustiado de um dos personagens de Bram Stocker, em Drácula, que se ouve. O clássico da literatura de terror interroga ao historiador: de onde as sociedades extraem a matéria para seus sonhos? O simples prazer de sentir medo explicaria a presença de representações monstruosas na literatura e na arte ocidentais? As monstruosidades terão sido sempre as mesmas? E os homens comportaram-se habitualmente da mesma maneira em face de animais e homens compósitos, assombrações da imaginação humana, que parecem ter sido esquecidos por Deus? Esquecidos por Deus mas normalmente presentes, pois a 11 humanidade nunca deixou de amar os monstros. E hoje mais do que nunca. A cultura contemporânea acabou por torná-los familiares, trazendo-os para nosso cotidiano e privacidade. A manifestação mais evidente desse interesse é o desenvolvimento de uma enorme curiosidade em relação a pintores, movimentos artísticos ou épocas em que se criaram monstros. Há cada vez mais livros e exposições consagradas aos “fazedores de horrores” como Bosch, Brueghel, Hans Baldung, Peter Huys, Arcimboldo, Ensor, Füssli e outros. Descobrem-se antecessores do surrealismo, como Charles- Germain de Saint Aubin, pintor de borboletas com corpos semi- humanos. A grande imprensa, o cinema, a televisão, a publicidade, as histórias em quadrinhos, mecanismos elaboradores de novas formas de conhecimento, deram espaço aos monstros, industrializando imagens e sonhos fantásticos. Neles, as estátuas se animam, homens e animais gigantescos invadem o cotidiano, os mortos revivem, os vampiros se multiplicam, seres híbridos ou pré-históricos escapam de suas reservas naturais, do fundo do mar, de selvas sombrias. Monstros resultam da radiação atômica ou chegam de outros planetas. Outros, em vez de provocar angústia, provocam o riso, encontrando lugar tanto nos pesadelos de nossa sociedade como em suas brincadeiras. O riso não lhes é mais fatal, como o amanhecer é fatal à noite, aos vampiros e aos fantasmas.’ Examinado superficialmente, o fenômeno poderia ser descartado como mero escapismo. No entanto, numa era que se caracteriza pela ciência e pela tecnologia, é impressionante constatar o fascínio pelos símbolos e motivos monstruosos, que trazem de volta a noção de um universo encantado e fantástico. Mais um dos fenômenos sintomáticos da profunda crise que se instalou no pensamento ocidental, o interesse por monstros revela quanto nossa veneranda crença no racionalismo e no mecanicismo, bem como na visão de progresso inevitável, está fragmentada. Para agravar esse dilema, sobreveio a escalada tecnológica, que parece reduzir ainda mais o significado do indivíduo.2 Homens são substituídos por telas de computador e máquinas. Eis por que monstros, como bem diz José Gil,3 existem não para nos mostrar o que não somos, mas o que poderíamos ser, pois vivemos tempos em que não sabemos mais distinguir com nitidez o contorno de nossa identidade em meio a diferentes pontos de referência, que antes devolviam uma imagem estável de nós mesmos. É como se acima deste mundo, onde se afirma a revanche da carne e da natureza, houvesse outro menos familiar: o reino dos monstros. Imaginemos outra cena: vivemos num ambiente aparentemente claro, sólido, tranqüilizador. Vemo-nos, então, diante de um ser estranho, assustador, inexplicável. Conhecemos, assim, o singular frisson provocado pelo conflito entre o real e o possível. É preciso crer no inacreditável. O monstro, personagem fantástico, é o homem que abandonou a humanidade para encontrar- se com a fera. Só participamos de sua existência pelo horror que ele nos inspira. A diferença entre nosso olhar sobre os monstros e aquele de nossos antepassados é que hoje sabemos que a narrativa sobre o monstruoso não passa — quiçá, para muitos — de fantasia: trata-se de uma simples história. O leitor de outrora conhecia um estado de alma ambíguo diante do monstro que a mentalidade moderna fez aparentemente desaparecer. Por um lado, ele se perguntava se a história era mesmo verdadeira. Ele aplicava de modo rudimentar as regras da crítica histórica: uma narrativa verdadeira era relatada por uma testemunha digna de fé e estava de acordo com as tradições ancestrais e as crenças religiosas? Se a resposta fosse positiva, o monstro, de fato, existia. Divididos entre o desejo de adesão à verdade e a sedução do imaginário, nossos antepassados muito provavelmente acreditavam em monstros, para gozar do medo que a narrativa sobre essas 12 13 criaturas fantásticas oferecia, e que o narrador dessas histórias também se oferecia.4 O passeio para o qual o convido, leitor, embora não tenha nenhuma pretensão teórica, é representativo da importância do tema da teratologia e de como sua função na sociedade variou através dos tempos. Nele não exponho teses complexas, atendo- me simplesmente a costurar, com gosto, uma sucessão de imagens a algumas questões, num quase inventário cronológico. Só. Contrariando a tradição que exige do historiador uma relação fria entre pesquisa e problemática, resolvi me dar prazer, deleitando-me com um assunto que embalou o sono dos meus filhos durante anos. Já disse alguém que o prazer do historiador deve ser um dos motores de sua pesquisa, e que uma relação de simpatia — mesmo de gulodice ou de jubilação — com o objeto de suas indagações serve, sobretudo, para fazê-lo entender melhor os homens e a sociedade sobre a qual trabalha.5 Não me utilizei, no texto, de fontes primárias nem de documentos originais. Graças, contudo, à abundante produção historiográfica estrangeira, pude visitar, ainda que de forma esquemática, duzentos anos de fascinantes monstruosidades, que me permitiram resgatar do fundo cultural europeu, dos séculos xvi ao XVIII, algumas estruturas mentais por meio das quais se concebiam os monstros e sua diferença. O importante é, no entanto, perceber que as imagens literárias ou artísticas recolhidas, além de sobreviverem no interior de determinados sistemas de pensamento, sempre resumiram as tendências de certas correntes de idéias, estabelecendo a continuidade de uma tradição. Escrito com prazer — o mesmo que, espero, terá o leitor em lê- lo —, este livro não se propõe a pensar a teratologia como um dos mitos edênicos, ausentes ou presentes, no universo mental luso-brasileiro, fazendo eco a preocupações inauguradas por Sérgio Buarque de Holanda em Visão do Paraíso.6 Não se trata aqui de interpretar a presença de monstros na dispersa porém ampla documentação que vai do século XVI ao XVIII como “mito”, pois para nossos antepassados os monstros não eram uma representação, e sim um fato. Não eram mistério, mas concretude. Sua materialidade, para nós hoje uma quimera, um sonho, fazia parte daquele senso do possível ou do saber empírico posto em prática por marinheiros e colonos no período das navegações ultramarinas. 7 Diante dessa questão, nossas interpretações esposam a da historiografia francesa, que vem examinando homens e idéias, na era moderna, como seres que se debatiam em meio a um universo sem limites, onde tudo estava por conhecer, onde tudo era enigma e problema. Como bem diz Lucien Fèbvre,8 havia “excesso de plantas, de animais, de corpos minerais, de doenças, de tudo. O possível não se distinguia do impossível” Os cronistas e viajantes afirmavam, mão sobre o coração, ser verdade o que diziam. Em nome de sua experiência pessoal? Raramente. Com freqüência, em nome da experiência de outrem, de alguém digno de fé, de quem se ouvira uma história “de verdade” sobre monstros e monstrengos. Vivia- se num mundo de “mais ou menos” de ouvir dizer. Do ouvir dizer que restará solidamente encravado mesmo entre os homens doutos e sábios, ou entre os navegantes empíricos que foram os portugueses, até o dia em que os primeiros fisiologistas começaram a construir o edifício de uma ciência fundada na observação e na experiência, dando início à prudente marcha do conhecido em direção ao desconhecido.9 A história de monstros e outros esquecidos de Deus obriga a um percurso mais longo na matéria histórica em busca do que teria inspirado a pluma de tantos fazedores de monstros no mundo luso-americano. Tais autores nos convidam a voltar ao passado para entender o que se conhecia sobre os monstros na Europa, na mesma época em que os cronistas coloniais os encontravam por toda parte. 14 15 Passeio por um universo insólito e ao mesmo tempo cotidiano, passeio pelas “marcas de nossos medos”,10 essa história dos monstros esforça-se por penetrar e descobrir no espírito do passado o porquê de o imaginário ser tão importante, tão digno de interesse e de poder quanto o visível. Afinal, reflexo do tempo presente mais do que do passado, a história, como diz Pierre Chaunu,” tem por missão fornecer à nossa memória, à nossa cultura, à nossa inteligência, os alimentos de que elas necessitam para viver; o imaginário constituindo-se, sem dúvida, no pão nosso de cada dia. ii. Monstros: o espelho das trevas no Ocidente medieval A rmantícora: a mantícora é um animal que vive na Índia, possui fisionomia humana, cor de sangue, olhos amarelos, corpo de leão, cauda de escorpião e corre tão rápido que nenhum outro animal pode lhe escapar. Mais do que qualquer alimento, ela gosta de carne humana. As mantícoras se acasalam de tal maneira que ora uma fica embaixo, ora outra. Brunetto Latini, Livro do Tesouro (1263) Durante a Idade Média, quando a maior parte do mundo era considerada terra incógnita, momento em que as fronteiras do mistério ainda não tinham sido devassadas pelas novas descobertas científicas e enquanto a razão não dominava o universo, uma vida intensa fervilhava nos quatro elementos. Vindos do caos, os seres que aí se debatiam povoavam as mitologias, nutriam as superstições, agitavam os espíritos e tomavam forma graças ao pincel dos artistas e ao martelo de escultores. O universo romano que precede a Idade Média gótica era sobre- humano. Ele se desenvolvera como uma espécie de 16 17 apocalipse, sob o signo da besta, do medo e do mistério. Ele era também especulação, geometria e números. Foram os raciocínios e cálculos mais rígidos então desenvolvidos que suscitaram os mais desabridos transbordamentos da imaginação. Todos os prodígios e monstros da Terra reuniram-se em seu úbere. E isso porque foi nesse período que o Oriente transmitiu ao Ocidente uma série de ornamentos abstratos e um bestiário fantástico que ele assimilou e integrou a seus sistemas culturais.1 A arte, com sua decoração exuberante, seus monstros, sua fauna, sua humanidade que parece pertencer menos à natureza que a algum reino inventado e às regiões da imaginação sem limites, instalou-se numa arquitetura de admirável estabilidade.2 O mundo gótico irá, em compensação, buscar as proporções e as medidas humanas. Na arte e na literatura, a fisionomia da vida será perquirida no entrelaçamento entre natureza e espírito. Redescoberta como imagem especular da ordem divina, a realidade expressa nas formas materiais traduzia a mais intensa espiritualidade. Mas esse mundo possuía também uma face monstruosa, presente tanto na arte como na narrativa literária.3 Ora, ao longo dos períodos romano e gótico, o Ocidente medieval acreditou que nos confins da Terra viviam raças fabulosas. Viajantes europeus como Nicollo, Matteo e Marco Polo, Giovanni Pián del Carpini ou Guilherme de Rubrouck, homens que cruzaram rotas de caravana através da Ásia, ligando a China à Europa durante o século xiii, confirmavam a existência de maravilhas e bizarrias nunca dantes vistas. Pián del Carpini, por exemplo, dizia ter sido testemunha ocular de um ciclope, criatura com um só braço, mão no meio do peito e um único pé que, ao juntar as extremidades, locomovia-se como uma roda.4 Vale, contudo, lembrar que a visão trazida na bagagem por negociantes, embaixadores, missionários, artesãos e soldados que estiveram no Oriente vinha embebida no olhar que já tinham os gregos sobre a Índia. Um deles, Ctésias de Cnido (398 a. C.), médico e prisioneiro na corte de Ataxerxes ii,5 escreveu um manuscrito graças ao qual a Índia, território de prodígios, é empurrada para os confins da Terra. Ele aí consigna todas as histórias fabulosas que existiam desde Homero, povoando o país de raças fantásticas: os pigmeus, combatentes de gruas, aves com pescoço longo como o da girafa; os ciápodes, donos de um único e veloz pé que lhes servia de guarda-sol com o qual se protegiam das intempéries; os cinocéfalos, homens com cabeça de cachorro, comunicando-se por latidos por serem incapazes de usar linguagem articulada; homens peludos e sem cabeça, com olhos nos ombros, conhecidos como blêmias; homens com oito dedos e oito artelhos, cujos cabelos, brancos até os trinta anos, paradoxalmente enegreciam com o passar do tempo; homens com orelhas tão grandes que lhes caíam sobre as costas, como melenas. Quanto aos animais fabulosos, Ctésias descreve a antropófaga mantícora, com cabeça de homem, corpo de leão, cauda de escorpião e três fileiras de dentes; os grifos e os unicórnios, guardiães de montanhas de ouro; as gigantescas formigas, dotadas de pinças e capazes de voar.6 Suas Histórias do Oriente tiveram tão longa fortuna que o famoso paleontólogo francês Georges Cuvier, inspirado em Ctésias, discutiu até morrer, em 1832, se o unicórnio não passaria de uma imagem deformada do rinoceronte. Depois das campanhas de Alexandre, o Grande (326 a. C.), um geógrafo de nome Megastenes foi enviado como embaixador à corte de Chandragupta, primeiro rei da Índia, morador de Patna, cidade situada às margens do Ganges. Fragmentos de sua obra sobreviveram graças a Plínio, que serviu de referência a todos os teratólogos latinos que escreveram entre os séculos iii e xiii: Solinos, Macróbio, Marciano Capela, santo Agostinho, Isidoro de Sevilha, Tomás de Cantimpré, Vicente de Beauvais e outros. 7 No momento em que Ctésias e Megastenes escreviam, a 18 19 crença na existência de monstros estava tão disseminada que se expunham no Partenon, de Atenas, as “mandíbulas” das gigantescas formigas indianas, buscadoras de ouro. Um pouco mais tarde, Scaurus, genro de Sila (138-78 a. C.), transportava para Roma os ossos do monstro marinho que, segundo se acreditava, guardava Andrômeda. Mas vejamos como Plínio, o Velho, descrevia em 77 d. C. as monstruosas “maravilhas” avistadas na Índia por Ctésias e Megastenes:8 Próximo aos citas que vivem no Norte, não longe do lugar onde se levanta o vento Aquilon (seu antro, dizem) vivem os arimaspes, que têm como signo distintivo um único olho no meio da testa. Por causa das minas de metal, eles movem guerras incessantes aos grifos, espécie de monstros alados que, a crer nas lendas, extraem ouro das galerias; seu empenho em defendê- lo só se iguala à vontade dos arimaspes em roubá-lo [...] Os primeiros antropófagos vivem a dez dias de viagem para além do rio Boristene e bebem em crânios humanos, servindo-se de sua cabeleira como de uma toalha dobrada sobre o peito. Para além do país dos citas antropófagos, num grande vale do monte Imavus, encontra-se uma região chamada Abarimon, onde vivem homens selvagens com pés virados para trás na companhia de animais selvagens. Na Albânia nascem seres com olhos de cor indecisa, com cabelos brancos desde a infância e que enxergam melhor à noite do que de dia. Os sauromatas, enfim, a treze dias de viagem de Boristenes, só comem um dia a cada três [...] o povo dos psilas tem um poder estranho: seu corpo é naturalmente dotado de um veneno fatal cujo odor adormece as serpentes [...] além do país de Nasamons [...] existem os andróginos, que carregam seus dois sexos e fazem nas relações sexuais ora papel de mulher, ora de homem. Aristóteles acrescenta que possuem o seio direito masculino, e o esquerdo feminino [...] Megastenes inclui entre os indianos nômades uma espécie de homens a quem chama de ciritas. Têm buracos no lugar das narinas e pés flexíveis como o corpo das serpentes. Segundo ele, na extremidade oriental da Índia, na direção da nascente do Ganges, encontra-se a nação dos astomos, homens sem boca e cobertos de pêlos que se vestem com folhas; vivem apenas da respiração e do cheiro, não bebendo nem comendo; no decorrer de suas longas viagens, levam diferentes odores de raízes, de flores e de macieiras selvagens para que, caso tenham necessidade, isso não lhes falte [...] No país dos calinge, outro povo da Índia, as mulheres concebem aos cinco anos e só vivem até os oito. Ctésias [...] fala ainda de uma espécie de homens que possuem apenas uma perna e saltam com espantosa ligeireza; chamam-se a eles próprios ciápodes porque deitados de costas durante a canícula se protegem à sombra do próprio pé. São vizinhos dos trogloditas. Um pouco a ocidente destes, existem vários homens sem cabeça; têm os olhos nos ombros [...] Ctésias cita várias montanhas habitadas por homens com cabeça de cão; vestem-se com peles de animais e ladram em vez de falar; armados de garras, alimentam-se de aves e quadrúpedes que caçam; são os cinocéfalos. Mas quem foi Plínio, o Velho, pai criador de tantas histórias de monstros? Um romano, absorvido por seu trabalho militar e burocrático e decidido a escrever uma enciclopédia dos conhecimentos humanos. Trata-se, sem dúvida, de um curioso personagem originário de Como, nascido na classe dos cavaleiros, amigo do imperador Vespasiano, oficial de cavalaria na Germânia, procurador de finanças na Espanha e autor de 37 volumes escritos em latim, nos quais cita outros 146 autores latinos e 327 não latinos. A edição princeps de sua História