ESCRITOS DE GUSTAVO CORÇÃO A presente obra é sem fins lucrativos. Todos os escritos foram recolhidos do site Permanência. Todos os direitos reservados. . Editora Recordar. O. P. L. Ao mestre Gustavo Corção. SUMÁRIO Escritos de Gustavo Corção Sumário Crônicas "Sou amigo de estrelas" A Ariano Suassuna A cosmovisão da lagartixa A semana do gari Ainda as comunicações com Brasília Alguém mentiu Antigamente calavam-se… As comunicações do presidente Eisenhower Castelo Branco Centenário de Mozart Detalhes da Ressurreição Disparates e contradições do tempo Encontros com Oswald de Andrade G.K.Chesterton Lembrança de Bernanos O malogro de um jovem químico O viúvo viu a ave Os meninos se matam Os ofícios alheios e o meu Reminiscências astronômicas Rostos, roupas e paramentos Um amigo de verdade Um dia após o outro Wolfgang Amadeus Mozart Literatura Sobre Lições de Abismo História A guerra civil espanhola Estamos no século XX Falsificações da História O alcázar de Toledo O mito de Guernica Política A Crise da Democracia Método de Escolha dos Chefes Filosofia A imortalidade Contra o Evolucionismo dos evolucionistas Cristianismo e humanismo Existirá a matéria? Implicações do Evolucionismo Tudo é pó Pensamento A civilização do prazer A esperada renovação A pátria A vocação da mulher A voz dos Papas canonizados Anarquismo e progressismo Ano novo? Como se inventa De profundis Do cientificismo às sociétés de pensée Exegese de um lugar comum Informação e formação Introdução a um livro Liberais e conservadores Meditações sobre a ruína do mundo Mísera sorte! Estranha condição. Mundo, mundo... O centenário de Freud O homem e a natureza O jogo esquerda-direita O método de escolha dos chefes O mundo perverso O padre e a menina O pessimismo de Freud O progresso e Chesterton O valor da vida Os indiferentes Os trinta risos do moribundo Para não ser doido... Suicídio e martírio Um aspecto do freudismo Um velho leigo interroga... Família e moral A casa A volta para casa Amor, casamento, divórcio As virtudes militares Concepção romântica e realista do amor Fora da realidade O casamento e a moral segundo Bertrand Russell O problema do lazer O quarto mandamento Quem pensa não casa Espiritualidade A fecundidade dos santos e a esterilidade de nossas obras A irrepreensível Providência Comunitarismo em lugar da Comunhão dos Santos Considerações sobre o Amor Próprio Deus marcou encontro conosco Natal No Sangue O dogma da Assunção Outubro Preceito e amor Regina sine labe originali concepta Rue du Bac Santa Teresinha Um estudo sobre o monaquismo Vem e segue-Me Virgo Singularis Apologética A Igreja é dona da verdade Pode-se transigir em religião? Teologia A criação A esperança A Igreja do Céu As duas vontades Ciência e Fé O medo e o santo temor de Deus O mundo, a carne e o diabo: cruéis inimigos da Igreja e da alma Curso de Religião INTRODUÇÃO 1. PRIMEIRAS MOTIVAÇÕES 2. POSIÇÃO DO HOMEM 3. CIÊNCIA E SABEDORIA 4. A SAGRADA DOUTRINA 5. VANTAGENS DA CONEXÃO DOUTRINAL CAPÍTULO I - CREIO... 1. A PALAVRA CHAVE 2. CERTEZAS E INCERTEZAS 3. A FÉ HUMANA. 4. A FÉ DIVINA 5. TUDO OU NADA 6. FÉ SOBRENATURAL CAPÍTULO II - ... EM DEUS PAI TODO PODEROSO 1. O INSTINTO DE DEUS 2. A EXISTÊNCIA DE DEUS 3. AS CINCO VIAS 4. A FORÇA DE PERSUASÃO DAS CINCO VIAS 5. OS ARGUMENTOS MORAIS E PSICOLÓGICOS. 6. EXPERIÊNCIAS DA ALMA 7. NATUREZA E ATRIBUTOS DE DEUS Vida dos Santos Catarina de Sena Estudo sobre Santa Catarina de Sena I — O AMOR E O ODIO. II — DIFICULDADES III — FISIONOMIA IV — O COLÓQUIO DAS CRUZES V — IO VOGLIO VI — O DESPREZO E O ZELO PELAS CRIATURAS Liturgia A mesa e a cruz A primeira missa A Semana Santa E o mundo? Marcos da eternidade No limiar da Semana Santa O descobrimento da Santa Cruz O espantalho O espírito de Quaresma Páscoa Quinta-feira Santa Quinta-feira Santa! Ressurreição Ressuscitou! Se Ele não tivesse vindo Tempos de Páscoa Vaticano II A necessidade de explicar tudo Dom Marcel Lefebvre fala O valor do Concílio Vaticano II Missa Nova e Reforma Litúrgica A reforma litúrgica Ainda reformas Valerá a pena? Crise da Igreja "Novo Pentecostes" A "igreja viva" A Comunhão na mão A descoberta da Outra A revelação do homem Dois e dois são quatro Há ou não há demolição? Humanitarismo de bastardos Livrai-nos Deus de nossos inimigos O esvaziamento católico Padre Antonio Pregação subliminal Tribulações de um velho militante Tudo é cinza Um testemunho precioso Polêmicas e Disputas A desfiguração do Natal Crítica à crítica da civilização científica Desagravo L'amor che muove il sole e l’altre stelle Mauriac e seus críticos CRÔNICAS "Sou amigo de estrelas" Foi num pára-choque de caminhão que li ontem estas palavras líricas. Entusiasmado, respondi com meus botões: — Também eu! Também eu! E num arroubo de saudades, sentime com cinco anos de idade, num jardim da Glória, entre outros meninos. Seria noite de janeiro e o céu resplandecia. Comecei então a dizer aos outros meninos os nomes das estrelas maiores: Aldebarã, Belatrix, Rigel, Archenar... Meu saber astronômico vinha das lições do poeta Emílio Kemp, que jantava em nossa casa todas as noites que se indispunha com a mulher. Dizia que vinha respirar um pouco, e às vezes ficava conversando conosco e falando de todas as coisas. Estava eu no jardim, a transmitir meu saber, quando ouvi um riso de homem e me senti levantado pelos braços a não sei quantos metros de altura. Eram dois oficiais de Marinha, e o que me levantava, com voz zombeteira, perguntou-me: “Quantas estrelas tem o céu?”. Escarlate, não soube responder. Até hoje me volta a cena, a voz, e a pergunta divertida. Por quê? Parece-me que estava a me gabar do que sabia e do que não sabia, mas o amor pelas estrelas era puro e verdadeiro. Aos dez anos sonhei possuir uma Astronomia Popular, de Flammarion, que vira em casa de um jornalista amigo de meus pais. Ninguém sabia meu segredo. Nesse tempo eram magérrimas as vacas: meu pai adoecera gravemente; uma noite minha mãe chegou muito tarde e, vendo-me na cama acordado, ajoelhou-se junto de mim e disseme chorando: — Estamos agora sozinhos... eu com vocês... no mundo. E passamos a viver uma gloriosa pobreza que até hoje ilumina todas as lembranças de minha infância. Como realizar as núpcias astronômicas com que sonhava? Juntava jornais de toda a vizinhança e vendia-os na venda de “seu” Cardoso. Tostão por tostão, em três anos ou mais consegui a soma fabulosa de trinta mil réis que mamãe guardava. Não havia nessa época de nossa história a inflação que roeria meus tostões e destruiria meu sonho. Mas era tempo de exame quando consegui o total, e nesses dias, lá em casa, tudo ficava suspenso: — Mamãe, onde está a tesoura de unhas? — Depois do exame. — Mamãe, onde está o “Tico-Tico”? — Depois do exame. A Astronomia Popular ficou também para depois do exame; mas então aconteceu um milagre, hoje incompreensível. Nesse meio tempo aprendera eu o francês, e a edição original de Flammarion custava a terça parte da tradução portuguesa. Por isso, depois do exame, quando cheguei em casa, num deslumbramento indescritível, vi diante de mim, em vez de um só, três grossos volumes: Astronomie Populaire, Étoiles du Ciel, Terres du Ciel. Creio que nunca senti na vida felicidade igual. Durante três ou quatro dias passei horas perdidas no fundo do quintal, sem consegui ler, sem ao menos folhear metodicamente um só dos três livros. Largava um e tomava outro. Anos depois passei a desejar ardentemente uma luneta astronômica. Já ganhava uma libra por mês, ensinando matemática a alunos vadios. Mas não consegui mais encontrar em mim aquela força da infância. Perdi-me em outras direções, troquei as estrelas do céu pelas estrelas da terra. Foi muito mais tarde, já perto dos quarenta anos, que comprei a luneta astronômica. Estava de viagem pela Europa, quando em Berlim, numa tarde, dobrando uma esquina, vejo numa vitrina uma pequena luneta astronômica plantada em seu tripé a me fitar com seu grande olho aberto para o infinito. Veio-me uma rajada de infância, e então eu me senti na obrigação de comprar aquela luneta e dá-la de presente ao bom menino que em vão sonhara com ela nos dias de sua infância. Achei que ele merecia; mas logo depois, ai de mim, em vão procurei onde estava o menino que queria sondar os abismos da noite. O leitor, que receio estar enfadado, com estas reminiscências, aqui perguntará por que diacho não estudei eu a astronomia? Estudei. Estudei, sim senhor. Não sei se o papel dará para contar essa história. Prefiro, antes disso, contar a visita que fiz ao Observatório, com meus pais e o bom poeta Emílio Kemp. Voltemos aos dez anos de idade. Estamos num terraço onde, contra a noite escura e transluminosa, avultava o perfil regular e solene da cúpula. Em certo momento minha família ficou a um canto, e na outra extremidade do terraço eu via dois astrônomos conversando. O mais velho gesticulava e falava com vivacidade. Imaginei que estivessem a comentar a beleza das nebulosas espirais ou estrelas duplas, e aproximei-me tremendo de emoção, com receio de não entender bem aquela língua dos anjos. E quando cheguei perto, sem ser percebido, ouvi o astrônomo dizer ao outro com voz ácida e cortante: — Ele me pagará o que fez. Eu não esqueço. Hei de urinar em sua sepultura! Recuei apavorado, e sentime profundamente infeliz como se assistisse a uma inexplicável e súbita apostasia de todos os sacerdotes de uma religião fabulosa. É claro que sentia tudo isto com outras palavras. Creio que decepcionei meus pais e o bom poeta que procurava o brilho de meus olhos. Naquele momento, as estrelas do céu perderam o interesse para mim, porque eu estava não somente magoado, como também intrigado com a descoberta bizarra, fantástica que acabava de fazer. Os astrônomos eram uns pobres homens feridos, que se indispunham uns com os outros, como o bom poeta se indispunha com a mulher. Lembro-me bem. Essa idéia de que os homens se indispunham uns com os outros esteve naquela noite, e nos dias seguintes, a me perseguir como obsessão. E foi por isso que a minha felicidade astronômica ficou toldada, e não pude apreciar devidamente os anéis de Saturno. Entre mim e o singular planeta se interpunha a figura machucada de um astrônomo que prometia urinar na sepultura de outro astrônomo. Mas não foi este episódio que me afastou da astronomia. Foi antes a necessidade de não morrer de fome, como de outra vez, se Deus quiser, lhes contarei. (04/05/1968, republicado em "A Tempo e Contratempo", Editora Permanência) A Ariano Suassuna Tivemos quarta-feira passada na PERMANÊNCIA1, numa sala repleta, que quiséramos mais ampla e mais repleta, uma conferência de Ariano Suassuna sobre o Romanceiro Popular do Nordeste. Depois de uma sábia apresentação de Gladstone Chaves de Melo que esboçou um resumo da vida já bem vivida do mais jovem membro do Conselho Federal de Cultura, e uma interpretação de seu último grande livro, “A PEDRA DO REINO’ (Ed. José Olimpio, 1971), Ariano Suassuna levantou-se, digo melhor, desengoçou-se e começou por dizer que era canhestro e gago, coisas que aliás logo se viram: mas creio que ao cabo de poucos minutos todas as pessoas presentes estavam a sonhar com um mundo em que a humanidade inteira, e principalmente os escritores, fossem canhestros e gagos como Ariano Suassuna; e creio também que no mesmo breve tempo Suassuna sentiu que já ganhara o coração de toda a PERMANÊNCIA — e que a nota principal daquela grande família que o ouvia com tanta atenção e alegria é a amizade, amizade começada na terra e desabrochada no céu —, e amizade na qual já se acha solidamente inscrito o rapsodo que nos trouxe ontem a notícia da maravilhosa poesia popular que são as flores e os cardos de nosso amado e sofrido nordeste. Ariano Suassuna, numa introdução improvisada e desordenada, falou de si mesmo com graça e humildade, como só sabem fazer as almas dotadas e sofridas que têm o vivo sentimento do trágico e do ridículo da vida. Falou-nos de sua composição, de sua heteronomia, entre cujos elementos predominam o palhaço e o rei que todos somos. E aqui, para responder ao susto de uma boa senhora que me telefonara espantada de meu aviso no jornal, onde anunciava a conferência de “um comunista”, Ariano Suassuna explicou que era monarquista e que suspeitava que metade da sala o fosse sem saber, ou sem ousar confessar. Acrescentou seu horror ao marxismo que o bom povo do nordeste energicamente repeliu, como o repeliu também o bom povo camponês da Sibéria. E a demonstração, como se costuma dizer, estava na cara do homem menos pedante que em toda minha longa vida já encontrei. Nós sabemos que há duas espécies da mesma hedionda deformação do homem, manifestada no pedantismo: há o pseudo-científico e desidratado pedantismo dos marxistas, e o floreado pedantismo tão bem representado pelo professor Cândido Mendes de Almeida de que já tratamos na quinta-feira. Não logrando a síntese essencial do cômico e rei, esta casta de retórico só consegue realizar o hemisfério palhaço de nossa mísera condição. Suassuna está nos antípodas dessa raça de anões que em vão se esticam, ele é alto de pernas e de coração. Por essa e outras, receio muito pela mantença do regime (refiro-me à vetusta e quase centenária República) se aparecerem por aí muitos Suassunas, por que na verdade verdadeira somos todos nós, e não só os incorrigíveis franceses que decapitaram sua história, temos nostalgia de um reinado. Lembro-me de um bom jardineiro português, talassa, ultramontano, que plantou flores no jardim de minha infância — flores que ainda perfumam meus sonhos — e que explicava desolado à minha mãe, depois do assassinato do Rei Dom Carlos de Portugal, que a República era o começo do fim do mundo. E quando nós o cercávamos para exigir dele uma explicação mais clara, o bom súdito perene