De Norbert Elias, as Publicações Dom Quixote editaram O Processo Civilizacional, urna das referências essenciais da sociologia e da historiografia europeias do nosso século, e A Sociedade dos Indivíduos, a que agora se junta este novo ensaio sobre o desenvolvimento social do saber: Envolvimento e Distanciamento. NORBERT ELIAS ENVOLVIMENTO E DISTANCIAMENTO Estudos sobre sociologia do conhecimento Tradução de Maria Luísa Cabaços Meliço PUBLICAÇÕES DOM QUIXOTE LISBOA 1997 Biblioteca Nacional - Catalogação na Publicação Elias, Norbert, 1897-1990 Envolvimento e distanciamento: estudos sobre sociologia do conhecimento. (Nova enciclopédia. 55) ISBN 972-20-1401-3 CDU 165 (042.3) p INDICE p PREFACIO I. Envolvimento e Distanciamento II. Os pescadores no turbilhão do Maelström III. Reflexões sobre a Grande Evolução: Dois fragmentos ENVOLVIMENTO E DISTANCIAMENTO Publicações Dom Quixote, Lda. Avenida Cintura do Porto de Lisboa Urbanização da Matinha, Lote A, 2 "C 1900 Lisboa Portugal Reservados todos os direitos de acordo com a legislação em vigor © Norbert Elias, 1983 Norbert Elias Stichting, 1990 Título original" Engagement und Distanzierung Revisão tipográfica: Francisco Paiva Boléo 1.~ edição" Outubro de 1997 Depósito Legal n.° 116 882/97 Pré-impressão: vítor manuel Impressão e acabamento" Gráfica Manuel Barbosa & Filhos, Lda. ISBN" 972-20-1401-3 PREFACIO As três principais secções que constituem esta obra encerram excertos de um trabalho de reflexão contínuo e progressivo desenvolvido pelo autor sobre um mesmo problema, nomeadamente: o problema do desenvolvimento social do saber. A forma que cada um destes ensaios assume no presente volume corresponde indubitavelmente à sua própria genealogia, da qual darei conta de modo sintético em seguida: I. A primeira parte foi originalmente publicada em língua inglesa, em 1956, sob a for- ma de artigo e intitulava-se: «Problems of Involvement and Detachment» (in: British Journal of Sociology, Ano 7, 1956, pp. 226-252). Traduzido para o neerlandês por G. van Benthem van der Bergh, foi incluído numa colectânea de ensaios do autor: Elias, N.: Sociologie en geschiedenis en andere essay's, editada por G. van Benthem van der Bergh e Jan Godschalk, Amesterdão, 1970. A mesma tradução corresponde, mais recentemente, aos capítulos 1 a 8 de um volume editado em separado: Elias, N.: Problemen van betrokkenheid en distantie, traduzido por G. van Benthem van der Bergh e B. Jonker, Amesterdão, 1982. O trabalho de tradução do texto original para o alemão iniciou-se sob a forma de uma estreita colaboração pessoal entre Norbert Elias e eu próprio, encetada no Outono de 1977. Deste modo, uma versão preliminar da tradução alemã por mim apresentada foi debatida e revista por ambos frase a frase. Até ao Outono de 1978, ao longo de uma série de encontros semanais, fomos finalizando um texto que se estende até à página 48 deste volume. Isto significa que esta importante primeira metade da tradução deve ser encarada 'Este prefácio é a transcrição do «Posfácio do Editor» da edição alemã. Por nos parecer útil o acesso prévio do leitor a explicações que envolvem a estrutura deste trabalho, transferimo-lo para o início do livro. (N. E.) 10 / ENVOLVIMENTO E DISTANCIAMENTO PREFÁCIO / I1 como o texto integral e definitivo em língua alemã. Por conseguinte, todos os desvios ou fase está patente, ainda em gestação, no texto, escrito em língua alemã, da conferência alterações em relação ao original inglês são imputáveis ao próprio autor. sobre o tema «Prozessmodelle auf mehrere Stufen» («Modelos de Processos Multi- Durante a preparação da tradução, verificou-sã que o autor sã mostrava sempre mais níveis»), proferida por N. Elias, em 18.9.1980, no Ad-hoc-Gruppe Zivilisationsprozess und interessado num desenvolvimento da sua linha de pensamento do que numa transposição Figurationssoziologie (direcção de Peter R. Gleichmann), por ocasião do 20. Deutschen pragmática das ideias contidas no artigo original. Tal tendência tornara-se, na altura em Soziologentags (XX Congresso dos Sociólogos Alemães), em Bremen, Alemanha, e cuja que o trabalho conjunto de tradução foi interrompido, demasiado avassaladora. Não concepção evidencia uma relação temporal e temática directa com o manuscrito que dava obstante, tendo em mente possibilitar a elaboração de um texto final em alemão, Norbert continuidade ao primeiro ensaio. O teor desta comunicação, aqui editada como o pri- Elias deixou totalmente ao meu critério a tradução do resto do ensaio. Assim sendo, a meiro capítulo da segunda parte, foi publicado nas (segundas) «Actas do XX Congresso partir da página 48, a formulação linguística do texto é da minha inteira responsabilidade. dos Sociólogos Alemães» («Tagungsbericht des 20. Soziologentags» in Soziologie in der Evitei apenas, de acordo com o desejo explícito do autor nesse sentido, a utilização dos Gesellschaft, ed. por W. Schulte, Bremen, 1981, pp. 764-767) e revisto e corrigido para conceitos «sistema» e «todo /parte», que já não correspondem à sua terminologia mais esta nova edição. avançada. III. A relação histórica e objectiva entre a primeira e a terceira partes da presente obra Ainda no decurso do trabalho de preparação da primeira metade do ensaio, Norbert é tão directa como a relação que une a primeira e a segunda. Os textos que integram a Elias intercalou, por várias vezes, comentários e aditamentos na versão alemã. Com o terceira parte surgiram (Outono/Inverno 1979) na sequência do esforço empreendido intuito de não perturbar o equil~rio da linha de pensamento desenvolvida no original pelo autor no sentido de desenvolver a formulação, demasiado sintética, do «modelo dos inglês, foi decidido, de comum acordo entre autor e editor, filtrar e eliminar tais altera- modelos» (cf. pp. 48 e segs.), tornando-a mais compreensível e fundamentando-a e ilus- ções, sempre que elas não sã limitassem a uma ou duas frases, da versão definitiva a ser trando-a através de exemplos. Estes dois textos - mais uma vez, escritos em alemão - cons- dada à estampa. Coube-me igualmente tal trabalho de depuração. Por outro lado, pare- tituem, no fundo, um «aditamento» do tipo acima caracterizado, e um aditamento que, ceu-me desejável não deixar simplesmente cair as passagens reformuladas (em alemão) em relação ao contexto inicial, adquiriu completa autonomia formal. pelo autor. Decidi, por isso, incluí-las, na sua essência, nos «Aditamentos 1977/78» à A terceira parte é constituída por dois textos frequentemente paralelos. Ambos são tradução. Asteriscos, inseridos no texto da primeira parte, indicam os passos do texto em textos abertos e foram, por isso, identificados com o título de «Fragmentos». Neles falta que haviam sido antes intercalados. a descrição da transição do nível de integração biológico para o nível de integração li. O segundo ensaio deste volume resulta da versão alemã de um manuscrito original- humano-social, que deveria seguir-sã - quer na escala evolucionária quer na exposição mente redigido em inglês, datado de 1980, por mim traduzido e revisto pelo autor. Nele teórico-científica- à transição do nível físico-químico para o nível biológico de inte- sã dá continuidade às ideias desenvolvidas na primeira parte da presente obra e, nomea- gração. A tencionada prossecução desta linha de pensamento deverá ser concretizada damente, na sequência do último capítulo do ensaio publicado com o título «Problems of pela leitura; o raciocínio delineado terá de ser complementado pelo próprio leitor. Involvement and Detachment» e que fora, na altura, suprimido pelo editor do British Dado que era previsível que o autor, em virtude de outros projectos de trabalho, não Journal of Sociology. Em virtude de tão estreita ligação entre a origem dos dois ensaios, viesse a retomar estes «Fragmentos» (por publicar até à data da edição alemã), tanto Norbert no original manuscrito desta segunda parte a numeração dos capítulos dava continuidade Elias quanto eu concordámos em inclui-los, sob esta forma, no presente volume. Eles clari- à do artigo supracitado. A mesma sequência numérica foi respeitada, quando da sua ficam aspectos do problema que constitui objecto de todo livro, apontando, pela primeira tradução para o neerlandês - Problemen van betrokkenheid en distancie (op. cit.) -, que vez, para o alcance total das suas implicações- aspectos esses, que não são abordados constituía, até à data da edição alemã, a única forma sob a qual esse texto fora editado. com a mesma ênfase e profusão de exemplos e argumentos em nenhum outro local. No tocante à presente edição, esta estreita relação formal foi de novo abolida, pois o Quando da edição dos dois fragmentos sobre a Grande Evolução, procedi de forma ensaio mais recente representa manifestamente uma nova fase na reflexão e um outro tipo tão cuidadosa quanto possível. Só foram omitidas as (escassas) duplicações inequívocas de formulação das ideias do seu autor. A indispensável transição e entrada nessa nova de um raciocínio, o que tornou pontualmente necessário proceder a reorganizações ínfi- 12 / ENVOLVIMENTO E DISTANCIAMENTO mas e pouco significativas nas passagens do texto correspondentes. Além disso, a pre- sente divisão em capítulos é da minha responsabilidade. Nas notas de autor, coligi- a par de formulações que já tinham o carácter de anotações na versão manuscrita original-- passagens censuradas de versões anteriores ou eliminadas por terem sido consideradas redundantes, mas que me pareceram conter algumas ideias sem representação no resto do texto. Michael Schr6ter ENVOLVIMENTO E DISTANCIAMENTO Senhora idosa: Não é preconceituoso? Autor: Madame, raramente encontrará um homem mais preconceituoso do que eu ou alguém que possa dizer a si mesmo que mantém um espírito mais aberto. Mas não será isto porque uma parte da nossa mente, aquela com que agimos, se torna preconceituosa através da experiência e, ainda assim, conservamos outra parte completamente disponível para observar e julgar? Senhora idosa: Caro senhor, não sei. Autor: Madame, eu também não e pode muito bem ser que estejamos ambos a delirar. Senhora idosa: É um termo estranho, esse, e com que nunca deparei na minha juventude. Autor: Madame, este termo utiliza-se agora para descrever qualquer inconsistência numa conversa de carácter abstracto ou até qualquer tendência ultrametafísica no discurso. Senhora idosa: Tenho de aprender a utilizar esses termos correctamente. E. Hemingway: Death in the Afternoon' 'No original, esta passagem do texto de Hemingway surge traduzida para alemão, sem referência ao tradutor. Seguindo o critério da obra, por falta de uma edição portuguesa do texto, optámos por traduzir a passagem supracitada directamente da língua inglesa (edição de bolso da Grafton Books, Londres, 1988, p. 87). Trata-se, contudo, de uma versão descontextualizada e provisória, realizada exclusiva- mente para este fim. Foram feitas algumas adaptações, que teriam naturalmente de ser repensadas quando de uma tradução integral da obra: é o caso da tradução de talking horseshit, no original inglês, por «delirar» para português. (N. T.) Não é possível afirmar em sentido absoluto que a posição de um ser humano é dis- tanciada ou envolvida (ou, se o preferirmos, «racional» ou «irracional», «objectiva» ou «subjectiva»). Só os lactentes e, de entre os adultos, só talvez os doentes mentais estão de tal modo envolvidos nos seus comportamentos e nas suas vivências que sucumbem, de imediato e sem reservas, aos seus sentimentos; e, por outro lado, também só entre os doentes mentais se encontra um distanciamento absoluto, um recuo completo dos senti- mentos em relação ao que acontece à sua volta. Regra geral, o comportamento e as vivên- cias adultos situam-se numa escala entre estes dois extremos. Consoante o estado de desenvolvimento social, assim tendem a aproximar-se mais de um ou de outro destes dois pólos; do mesmo modo, dentro de uma mesma sociedade, e correspondendo a um acrés- cimo ou a uma redução da pressão social ou psíquica, podem deslizar para um ou para outro lado. Mas a vida social dos seres humanos, tanto quanto nos é dado conhecê-la, entraria em ruptura caso os padrões de comportamento adulto avançassem demasiado quer numa quer noutra direcção. Dito de forma mais precisa: a possibilidade de uma vida colectiva organizada baseia-se na combinação do impulso de distanciamento com o impulso de envolvimento' no comportamento e pensamento humanos; impulsos esses, '«Envolvimento» e «distanciamento» correspondem a Engagement e D&tanzierung, respectivamente, no original. Sobre a tradução escolhida para Engagement («envolvimento»), cumpre esclarecer o seguinte: sendo o termo alemão de origem francesa, os termos portugueses «empenho» ou «empenhamento», dada a sua origem etimológica homóloga, poderiam ter sido escolhidos como equivalente. Optou-se por «envolvimento» porque este vocábulo possui, no nosso entender, um universo conotativo mais con- sentâneo com a utilização e significado do conceito alemão nesta obra e 110 ãmbito do pensamento do autor: aqui, a palavra «envolvimento» refere-se quer a um movimento voluntarista de empenhamento do sujeito actuante ou pensante, logo, consciente, quer a urna relação ou compromisso muitas vezes incons- ciente. A palavra «empenhamento» não abrange este segundo aspecto. No ensaio original, escrito e publicado em língua inglesa (vide «Prefácio»), o termo escolhido é «involvement». (N.7~) I - ENVOLVIMENTO E DISTANCIAMENTO / 19 18 / ENVOLVIMENTO E DISTANCIAMENTO fenómenos psíquicos; utilizados enquanto universalia correspondem, quando muito, a que se controlam mutuamente. Eles podem entrar em colisão, lutar para atingir compro- conceitos-limite. Aquilo que nos é dado observar são, em regra, os seres humanos e as missos ou hegemonias e formar coligações em que estejam presentes nas mais diversas suas manifestações - algo como tipos de discurso, de raciocínio e outras actividades, das proporções e sob as mais variadas formas - em todas as suas variantes, contudo, é a rela. quais preservamos algumas marcas quer através de um maior distanciamento quer de um ção que se estabelece entre ambos que determina o percurso do indivíduo. Ao utilizarmos maior envolvimento. Entre estes dois pólos, existe um continuum e este continuum cons- estes conceitos', referimo-nos, pois, a formas variáveis de equil~rio entre dois tipos de titui o verdadeiro problema. Será possível determinar com maior rigor a posição de ati- impulsos comportamentais e de vivência que impelem os seres humanos mais no sentido tudes e produções humanas específicas no seio deste continuum? Logo à primeira vista, do distanciamento ou do envolvimento no quadro da sua relação uns com os outros, com poderemos por exemplo dizer que, em sociedades como as nossas, o comportamento e as os objectos não-humanos da natureza e consigo mesmos (quaisquer que possam ser as vivências dos indivíduos demonstram maior grau de distanciamento e menor grau de suas outras funções). envolvimento emocional relativamente ao nível dos fenómenos e acontecimentos naturais Enquanto instrumentos de pensamento, os conceitos de «envolvimento» e de «dis- não-humanos do que em relação ao dos fenómenos humano-sociais. Poderemos destrin- tanciamento» continuariam a ser inteiramente ineficazes, se associados à ideia de duas çar, pelo menos de forma sumária, critérios aplicáveis aos diferentes graus de envolvi- tendências independentes do ser humano. Eles não se referem a dois grupos distintos de mento e de distanciamento? O que se pretende de facto dizer, o que está implícito quando se afirma que numa sociedade do tipo da nossa, com um índice de industrialização e de controlo sobre as forças da natureza relativamente elevado, essa mesma «natureza» é em ' É ainda prática dominante considerar as particularidades psíquicas e sociais dos seres humanos não só como realidades diferentes, mas também, e em última análise, como aspectos cio sujeito existentes geral percepcionada com menor envolvimento e, logo, de forma mais distanciada do que separadamente e independentes entre si. Se esta fosse a assunção tácita na origem do nosso próprio dis- a «sociedade»? Mais: sempre que actualmente se fala de diversos graus de envolvimento curso, então conceitos como «distanciado» e «envolvido», tal como aqui são utilizados, continuariarn a ser pouco claros. Preferimos estes em vez de outros, talvez mais familiares, justamente por não coin- ou de distanciamento, associa-se esta informação com demasiada facilidade e exclusiva- cidirem com os hábitos linguísticos, que se baseiam na suposição, aparentemente evidente, de que existe mente às diferenças individuais de comportamento e de vivência. Sem dúvida, o grau de uma distinção fundamental entre os aspectos psíquicos e sociais dos seres humanos. Eles não nos induzem sequer a pensar, como acontece com alguns termos científicos de uso corrente, que existem distanciamento manifestado por diferentes indivíduos de uma mesma sociedade em situa- dois grupos distintos de funções e atributos humanos, uns de carácter psíquico e outros de carácter ções idênticas pode ser muito diverso. Poder-se-á então falar, independente de tais dispa- social, que só caso a caso, durante um período de tempo limitado e com um princípio e um fim bem definidos, entram em contacto sob a forma de uma relação de causa e efeito, mas que, fora isso, existem ridades existentes numa mesma sociedade ao nível individual, de diferentes graus de separadamente. Conceitos como «envolvido» e «distanciado», «empenhado» e «imparcial» permitem exprimir o facto de as transformações sociais e psíquicas serem processos distintos, mas indissociáveis. distanciamento e envolvimento nos padrões de comportamento e de vivência de diversas Aquilo que através deles se diz sobre as relações entre um ser humano e os outros seres humanos sociedades? - sobre as relações «sociais» - não é menos válido no tocante à relação entre os seres humanos e os objectos não-humanos. Também neste caso, a nossa tradição de pensamento permite separar concep- tualmente os aspectos relacionais dos aspectos psíquicos. Na tradição filosófica, em particular, tornou- -se hábito proteger drasticamente todos os estudos sobre as relações entre o «sujeito» humano e os «objectos» da natureza não-humana de todos os perigos de contaminação oriundos dos estudos sobre os aspectos «psíquicos» do «sujeito». É preferível utilizar conceitos como «envolvido» e «distanciado» como meios de orientação, em vez de outros mais usuais que - tal como, por exemplo, os termos «sub- jectivo» e «objectivo» - simulam a existência de um antagonismo intransponível e estático entre duas entidades distintas, nomeadamente, o «sujeito» e o «objecto». Eis um pequeno exemplo do potencial de aplicação dos conceitos aqui empregados. Certo filósofo afir- mou um dia: «quando Paulo fala sobre Pedro, conta-nos mais sobre Paulo do que sobre Pedro.» Podere- mos comentar o conteúdo desta ti'ase, em termos gerais, do seguinte modo: quando Paulo fala sobre Pedro diz sempre, simultaneamente, algo sobre si mesmo. O discurso de Paulo é «envolvido», quando nele as suas características pessoais ensombram as de Pedro ou, generalizando ainda mais, quando no discurso as particularidades estruturais do sujeito que percepciona dominam as do sujeito que é per- cepcionado. Quando o discurso de Paulo passar a transmitir mais informações sobre Pedro do que sobre si próprio, o anterior ponto de equilíbrio entre os dois pólos começará a registar uma deslocação a favor do distanciamento. (N. A.) I - ENVOLVIMENTO E DISTANCIAMENTO / 21 Em comparação com épocas anteriores, a capacidade dos homens de dominarem as suas emoções relacionadas com a sua vivência da natureza, assim como a própria natureza, aumentou. O envolvimento correspondente decresceu, se é que não desapareceu por com- pleto. Mas mesmo uma abordagem científica da natureza não exige, necessariamente, o total apagamento de formas mais envolvidas ou afectivas' de abordagem. O que distingue as posições científicas das pré-científicas- ou seja, de posições menos distanciadas- é a maior ou menor intensidade e o tipo de ligações que se estabelecem entre as tendências para o distanciamento e para o envolvimento. Tal como os outros seres humanos, também os cientistas do ramo das ciências natu- rais se deixam de certo modo conduzir pelos seus desejos e inclinações pessoais no âmbito da sua actividade profissional; com bastante frequência até, são influenciados pelos interesses específicos dos grupos a que pertencem. Podem ter em vista as exigên- A maneira como cada um dos membros de um grupo vivencia o que quer que possa cias da sua própria carreira, É possível que acalentem expectativas no sentido de os resul- afectar os seus sentidos e o significado que atribui às suas percepções estão dependentes tados das suas investigações virem a coincidir com teorias por eles antes defendidas, ou do padrão de saber e, assim sendo, do nível de conceptualização atingido pela sociedade com as pretensões e os ideais de grupos com os quais se identificam. Porém, no domínio a que pertence no decurso do desenvolvimento histórico. Embora, em sociedades como das ciências da natureza, estas tendências para o envolvimento desempenham, quando as nossas, o grau de distanciamento subjacente à percepção e ao manuseamento das inter- muito, um papel importante na organização geral do estudo ou, por exemplo, na escolha conexões entre os fenómenos naturais não-humanos possa variar de indivíduo para indi- do próprio tema; na maior parte dos casos, são, contudo, mantidas dentro dos limites por víduo e de situação para situação, os conceitos comuns, dos quais se servem todos os meio de procedimentos institucionalizados de controlo, que exercem uma forte pressão homens para se relacionarem entre si- termos como «relâmpago», «árvore» e «lobo», ou sobre o investigador individualmente, a fim de o levarem a subordinar tais propensões como «electricidade», «organismo», «causa» e «natureza» -, corporizam um grau de dis- para o envolvimento ao esforço de concentração sobre (como se costuma dizer) «a coisa tanciamento consideravelmente elevado e partilhado por todos os membros adultos de em si», ou seja, a uma abordagem distanciada do seu trabalho. Em tais casos, problemas uma sociedade. O mesmo é válido, por exemplo, no tocante à vivência, socialmente adqui- de curto prazo de carácter pessoal ou social constituem um estímulo para o estudo de rida, da natureza considerada enquanto «paisagem» ou como algo «belo». A amplitude questões de outra índole, de problemas científicos, já não directamente relacionados com de variação da posição de distanciamento no plano individual é, por outras palavras, bali- zada pelos padrões sociais de distanciamento. São estes padrões sociais que encontraram pessoas ou grupos específicos. Os primeiros, estritamente circunscritos a uma dada expressão nas formas específicas de o Homem pensar e falar acerca da natureza, bem época, fornecem apenas a força propulsora; os últimos, os problemas científicos, suscita- como no seu já longamente institucionalizado aproveitamento desta para fins humanos'. dos pelos precedentes, adquirem estrutura e significado no quadro do percurso autónomo de desenvolvimento, menos limitado e circunstancial, da dupla teorias científicas versus ' O termo «natureza» é sempre utilizado neste ensaio como forma abreviada da expressão «natureza não- _____ -humana» (nicht-menschliche Natur). Refere-se, portanto, àquele domínio dos fenómenos naturais de que as ciências biológicas e físicas se ocupam. Esta breve observação deverá, neste contexto, ser sufi- '«Afecto» e «afectividade», tradução literal de Affekt e AJ'[ektivität, são sempre utilizados nesta obra com um significado preciso, a saber: como estado físico ou mental produzido por alguém ou alguma c¤ente como indício de que não partílho a concepção de que existe uma heterogeneidade, por assim dizer, existencial entre «natureza» e «sociedade» ou, consoante os casos, entre <<natureza» e «cultura»/«civi- coisa e que dá origem a sentimentos de grande intensidade (amor, ódio, medo, alegria, etc.), acom- lização» ou «hist6ria». No universo observável, é possível reconhecer uma hierarquia de níveis de inte- panhados de determinadas modificações na representação mental e de mudanças psicológicas. Neste gração. Um deles, o mais complexo de todos, é o mundo dos seres humanos. Cada um desses níveis sentido, o termo demarca-se do seu significado corrente de «afeição», «ternura», «benevolência» para possui estruturas próprias e requer também, consequentemente, métodos de estudo próprios, É uma se identificar com o sentido do conceito de «afecção», entendido como «modificação no estado físico mera projecção dos diferentes métodos de estudo- ou seja, da diferença estabelecida entre ciências ou mental de alguém pela impressão dos objectos externos» (vide Machado, José Pedro: Grande naturais e ciências humanas (ou «ciências da cultura», «ciências históricas», etc.) -que nos leva a crer Dicionário da Lhlgua Portuguesa, Lisboa, Publicações Alfa, 1991, Tomo I, p. 139). Sempre que o que os domínios de estudo «natureza» e «sociedade» teriam uma exist~,ncia tão distinta como as ciên- ãdjectivo «afectivo» ou o substantivo «afectividade» pudessem ser demasiado ambíguos em dados con- cias naturais e as ciências humanas. (Vide «Aditamentos 1977178») (N. ,4.) textos, optou-se por «emotivo» e «emotividade», respectivamente. (N. T.)