UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL Departamento de Antropologia Entre leis e armas: As disputas legislativas federais em torno do desarmamento. Rosana Alexandre dos Santos. Brasília Agosto de 2007 2 Rosana Alexandre dos Santos Entre leis e armas: As disputas legislativas federais em torno do desarmamento. Dissertação de mestrado defendida no Programa de Pós-graduação em Antropologia da Universidade de Brasília, como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre em Antropologia. Orientador(a): Professora Doutora Lia Zanotta Machado. Brasília Agosto de 2007 3 Resumo Esta dissertação é um estudo sobre as disputas em torno do Projeto de Lei do Senado nº. 0292/1999 – o Estatuto do desarmamento – em 2003 no Congresso Nacional entre os parlamentares contrários e favoráveis à proposta de desarmamento da população civil cuja finalidade seria diminuir os altos índices de criminalidade e violência - causada, segundo alguns, pela enorme circulação de armas de fogo no Brasil sem o controle e a regulação do Estado. Este estudo tem a intenção de dar inteligibilidade ao fazer legislativo brasileiro - à “engenharia política”, tal como denominado por um senador - e suas especificidades, enfatizando o caráter micro político, que resultaram na aprovação e na sanção do Estatuto do desarmamento em dezembro de 2003 condicionando a proibição da comercialização da arma de fogo – que resultaria na impossibilidade da posse e do porte de armas de fogo por civis – a um referendo a ser realizado em 2005. E, ao mesmo tempo, tem a intenção de analisar a particularidade da tática normativa do desarmamento explorando a diversidade de qualificações, valores, hierarquias, cálculos, análises e reflexões proferidas pelos parlamentares sobre a eficácia desta tática e a diversidade de visões sobre o Estado, suas funções e seus limites. Assim, foram acionadas, identificadas, sistematizadas e classificadas as diversas causas, os diversos agentes e vítimas da violência e as suas relações sociais: arma de fogo “veículo da violência” versus arma de fogo “instrumento de defesa”; País com a população atacada “por uma epidemia” versus País com a população em “estado constante de legítima defesa”; “crime banal com motivo fútil” versus o “crime organizado”; “cidadão de bem” versus a “bandidagem”; “chefe de família” versus conjunto identificado como “família”. Palavras chaves: processo legislativo, tática normativa de segurança pública, violência, desamamento. Abstract This thesis is a study of the disputes which took place in the Brazilian National Congress around the Senate’s 292/1999 Bill of Law – the Disarming Statute. This dispute opposed those representatives favorable and those against the proposal for disarming the civil population. The Bill’s aim was to reduce the levels of crime and violence, thought by some to be an effect of the huge circulation of firearms in Brazil without state control and regulation. This study aims at shedding light on the Brazilian legislative work – in the words of a senator, its “political engineering” – and its specificities. It focuses on its micropolitical character leading to the approval and sanction of the Disarming Statute in December, 2003. The approval was conditioned to the performance of a referendum in 2005 regarding the prohibition of commercializing firearms, which would result in the impossibility of civil citizens’ possessing and carrying firearms. Simultaneously, the thesis aims at analyzing the particularity of disarming’s normative tactics by exploring the diversity of qualifications, values, hierarchies, calculations, analyses and reflections voiced by parliamentarians regarding the efficacy of such tactics and the plurality of views about the State, its function and limits. Thus, the various causes, agents and victims of violence and their social relations were deployed, identified, systematized and classified: firearms as “vehicles of violence” versus “defense instrument”; country with a population seized by “an epidemics” versus a population in “constant state of legitimate defense”; “banal crime with futile reason” versus “organized crime”; “honorable citizens” versus “bandits”; “head of the family” versus an assemblage identified simply as “the family”. Keywords: legislative process, normative tactics of public safety, violence, disarming. 4 Dissertação defendida no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade de Brasília (PPGAS/Unb) em 11 de setembro de 2007. Banca Examinadora: Profa. Dra. Lia Zanotta Machado, DAN/Unb (orientadora) Profa. Dra. Carla Costa Teixeira, DAN/Unb Prof. Dra. Lourdes Maria Bandeira, SOL/Unb Profa. Dra. Kelly Cristiane da Silva, DAN/Unb (suplente) 5 Agradecimentos Agradeço à CAPES, a agência financiadora, que tornou possível os meu processo de aprendizagem em Brasília. Agradeço a todos os professores que compõem o DAN pela dedicação em nos tornar bons profissionais. As secretárias Rosa e Adriana pela competência, apoio e determinação em ajudar. Agradeço a todos os participantes do Workshop de gênero (Evento Pós-RBA, 2005) pelo debate e dicas interessantes de estudo. Agradeço à professora Lia Zanotta Machado pelas . Agradeço aos companheiros de jornada: Odilon, Anna Lúcia, Priscila, Marcel, Sônia, Mariana, João Marcelo, Luis Guilherme, Di Deus e André. Agradeço à minha “família” brasiliense: Fernanda, Roderlei, Moisés e Lilian pelo carinho, pelas noites compartilhadas, pelos debates tão frutíferos e pelas leituras dedicadas. Agradeço aos meus companheiros e amigos (antigos) de moradia brasiliense: Letícia, Bruno, bebê “dílicia” Mathias, Carmela, Taís, Pedrinho, Diogo, Carolina, Juliana, Dumara. Agradeço aos meus amigos de outras jornadas: Paula, Luciane, Ludmila, Ana Isaura, Sandro, Helena, Marina, Luiz, Ewerton, Beatriz, André, Rafael, Marcus e Lara. Agradeço ao meu ex-companheiro Renato. Agradeço à toda a minha família mineira, especialmente, a: Rosena – minha adorada –, Alexandre, Marcelo, Elmar, Ana Paula. 6 In memoriam de Sincero Ribeiro, meu avô que me ensinou a me armar e a me desarmar. 7 Sumário. Introdução – Trajetória de pesquisa: do Referendo acerca da comercialização de armas de fogo e munição (2005) ao Estatuto do desarmamento (2003)....................................................8 Primeiro Capítulo – Poder, lei, violência e segurança pública...............................................21 1.1 - Doses de “história”- a população e a vida como parâmetro para ação do Estado............................................................................................................................25 1.2 - A Segurança pública versus a Violência..............................................................43 Segundo capítulo – Doses de empiria e micropolítica – a proposta do desarmamento e a consolidação do Projeto de lei..................................................................................................59 2.1 – Caracterizando o Poder Legislativo - disputas e as estratégias políticas.............62 2.2 – As antecipações e as disputas na Comissão Mista Especial de Segurança Pública (CMESP).......................................................................................................................72 2.3 – A consolidação do Projeto no Plenário do Senado..............................................85 Terceiro capítulo – Doses de empiria e micropolítica - o acirramento das disputas e a aprovação do Estatuto do desarmamento.................................................................................92 3.1 – As disputas na Comissão de Segurança Pública contra o Crime Organizado, Violência e Narcotráfico (CSPCCOVN)......................................................................93 3.2 – As disputas na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJC)..........108 3.3 – As disputas no Plenário da Câmara dos Deputados...........................................119 3.4 – A aprovação do Estatuto do desarmamento no Senado.....................................130 Quarto capítulo – “O certo é que a sociedade não agüenta mais essa situação de insegurança”: da micropolítica à macropolítica – a proposta do desarmamento versus o direito à legítima defesa......................................................................................................................135 4.1 – A di-visão arma de fogo – a segmentaridade binária “veículo da violência” versus “instrumento de legítima defesa”.....................................................................146 4.2 – A di-visão do Estado – a segmentaridade binária entre “epidemia da violência” versus “estado permanente de legítima defesa” e a segmentaridade circular em torno do Estado.....................................................................................................................150 4.3 – A di-visão da violência e do crime – as segmentaridades binárias: “crimes banais por motivos fúteis” versus “crime organizado” e “cidadão de bem” versus “bandido”....................................................................................................................157 4.4 – A di-visão casa, família e gênero – as segmentaridades circular e linear “família e casa, lugar de relações sociais marcadas pelo risco da violência” versus “família e casa, lugar de relações sociais marcadas pelo exercício do direito à legítima defesa”.........................................................................................................................164 Considerações finais – Desarmamento: entre o “Estado e a família” e entre o “risco e a honra”......................................................................................................................................176 Anexos....................................................................................................................................185 Referências Bibliográficas....................................................................................................195 8 Introdução – Trajetória de pesquisa: do Referendo acerca da comercialização de armas de fogo e munição (2005) ao Estatuto do desarmamento (2003). Esta dissertação possui um marco inicial: um debate entre o senador Juvêncio da Fonseca (PDT-MS) e Valéria Velasco (representante da ONG Convive, de Brasília) durante o horário de almoço em um auditório relativamente vazio da UnB em função do Referendo acerca da comercialização de armas de fogo e munição no território nacional. O debate ocorreu três semanas antes do Referendo ocorrido em 23 de outubro de 2005 no qual o eleitor brasileiro deveria responder "O comércio de armas de fogo e munição deve ser proibido no Brasil?". O primeiro defendia a tese da resposta “Não”. A sua frase marcante foi “Entreguei minha arma; sou uma família desarmada”. A sua fala apresentou o desarmamento como propaganda enganosa e acusou o Governo Federal de negar a discussão ao reservar apenas três semanas para a propaganda eleitoral – posto que o Governo estava fazendo campanha a favor do “Sim”. Juvêncio da Fonseca salientava a violência que ocorre como resultado do crime organizado e realizada pela “bandidagem” que invade as casas das “famílias de bem” colocando em risco a vida de seus membros e o seu patrimônio. Em uma articulação que a “casa” está para a “rua” assim como o “chefe de família” está para o “chefe de gangue”, o seu argumento apresentou a arma como um instrumento tanto de defesa, quanto de morte – nas mãos do “cidadão de bem”, do “chefe de família”, é um instrumento de defesa e, nas mãos da “bandidagem”, é um instrumento de morte. Este senador defendeu a idéia da arma como um instrumento de proteção da família e do patrimônio, assim, o desarmamento do “chefe de família” significaria expor a família deste “cidadão de bem” aos riscos causados pela “bandidagem” que continuaria armada. Este Senador apresentou a desigualdade social, a falta de Educação, a ausência da polícia, a “índole má que o ser humano tem” e o tráfico de drogas como causas da violência. A segunda defendia a tese da resposta “Sim”. As frases marcantes de seu discurso foram “Sua casa não é uma trincheira” e “civilização é incompatível com arma”. Valeria Velasco salientava a violência que ocorre em torno das relações cotidianas e próximas no espaço da casa, no espaço familiar, em que “arma” é um instrumento de morte. Sua fala ressaltava “tragédias familiares” em que o foco era a ineficácia da arma de fogo para a proteção familiar e sua eficiência tecnológica para matar: crianças que matam acidentalmente 9 irmãos ou amigos portando armas de fogo de pais descuidados, crimes passionais, pais que matam filhos no momento em que os confunde com a “bandidagem” ou “cidadãos de bem” que são assassinados por suas próprias armas roubadas pela “bandidagem”. Neste campo, o descontrole com relação à circulação de armas gera a retro-alimentação da “bandidagem” através do roubo da “arma” do “cidadão de bem”, por exemplo. Segundo ela, a arma como instrumento de legítima defesa e proteção é uma negação do Estado de direito e da “civilização”. Segundo ela, o Estatuto do desarmamento foi o primeiro passo para a construção da “Paz” e não para desarmar o “bandido”, pois, “bandido tem de ser preso não desarmado”. Sua defesa foi assentada no “direito universal à vida” e pela segurança alcançada coletivamente. Após o debate, fiquei instigada a pesquisar as representações da violência, da arma de fogo e estas classificações de “bandidagem” e “cidadão de bem” durante a disputa política diante do Referendo. Vale ressaltar que esta foi a segunda consulta popular pós-ditadura militar no Brasil. A primeira foi o plebiscito cuja intenção era a decisão do Regime político brasileiro. Decidida por este tema, iniciei a pesquisa para minha dissertação que teria, então, como espaço e tempo privilegiados, o Congresso Nacional e o Referendo. Procurava analisar os argumentos que sustentavam as duas Frentes parlamentares que representaram “a dualidade de correntes de pensamento”: a Frente Parlamentar por um Brasil sem Armas – representada no debate acima mencionado por Valeria Velasco – e a Frente Parlamentar pelo direito à legítima defesa – representada pelo senador Juvêncio da Fonseca – oficializadas pelo Ato da Mesa do Congresso Nacional, em 21 de Julho de 2005. Mas, percebi que teria que investigar a lei que o previa: o Estatuto do desarmamento. Parti, então, para um primeiro exercício de pesquisa cuja intenção era compreender este Estatuto no qual o artigo 35 parágrafo único previa o Referendo. O Estatuto do Desarmamento – Lei ordinária nº. 10826/2003 – sancionado pelo Presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) no dia 23 de dezembro de 2003, começou a vigorar a partir de sua regulamentação em 01 de julho de 2004 pelo Decreto Executivo n° 5.123/04. Ele “dispõe sobre registro, posse e comercialização de armas de fogo e munição, sobre o Sistema Nacional de Armas – SINARM 1–, define crimes e dá outras providências” e revoga a Lei nº. 9.437 de 1997. 1 O SINARM tem a competência de definir todos os procedimentos de identificação de armas e munição – excetuadas as armas de fogo das Forças Armadas e órgãos referidos no art.144 da Constituição Federal – e cadastrar em um banco de dados único e federal as armas de fogo produzidas e comercializadas no país com interligação constante com as Secretárias de Segurança Pública dos Estados e do Distrito Federal. 10 A lei 9.437 de 1997, sancionada durante o primeiro mandato do presidente Fernando Henrique Cardoso de Oliveira (PSDB), cria o SINARM e “foi o resultado de aproximadamente 20 projetos de lei que tramitaram no Congresso Nacional desde 1986, quando o Brasil se comprometeu junto à ONU em elaborar normas mais rígidas com o objetivo de inibir delitos com o uso de armas de fogo” (NUNES, 2005). Esta lei previa a expedição do certificado de registro estadual de arma de fogo – através da Polícia Civil que era precedida de autorização do SINARM –; mantinha a autorização do porte Estadual com eficácia temporal e validade espacial limitada à unidade da federação na qual esteja domiciliado o requerente; e previa a possibilidade de autorização federal de porte com validade em todo o território nacional, somente expedida em condições especiais estabelecidas em regulamento. Proibia a aquisição de armas para menores de 21 anos e transformou em crime o que era uma contravenção penal2, definindo pena de detenção de um a dois anos e multa para quem “possuir, deter, portar, fabricar, adquirir, vender, alugar, expor à venda ou fornecer, receber, ter em depósito, transportar, ceder, ainda que gratuitamente, emprestar, remeter, empregar, manter sob guarda e ocultar arma de fogo, de uso permitido, sem a autorização e em desacordo com determinação legal ou regulamentar” (LEI Nº. 9.437, DE 20 DE FEVEREIRO DE 1997). Presume a boa fé da pessoa que promover o registro de arma de fogo que tenha em sua posse no prazo de seis meses a partir da data de promulgação desta lei e veda a fabricação, a venda, a comercialização e a importação de brinquedos, réplicas e simulacros de armas de fogo, que com estas se possam confundir, excetuando os casos destinados à instrução, ao adestramento, ou à coleção de usuário autorizado. O Estatuto do desarmamento – que traz em sua introdução o título “Um estatuto em favor da paz e da vida” – dispõe uma mais rígida restrição com relação à fabricação, ao armazenamento, ao transporte, à posse, ao porte e à comercialização legais de armas de fogo e munição com um aumento das penalidades em casos de ilegalidade. Descrevo alguns pontos restritivos à população civil deste Estatuto3: 1 – Institui a federalização total do registro de armas de fogo – que permite apenas a posse, ou seja, a permanência da arma dentro da residência e local de trabalho – e da autorização de porte de armas de fogo para pessoas físicas e civis que devem preceder a 2Segundo Nunes, “a Lei das Contravenções Penais prescreveu o porte de arma de fogo da seguinte forma: ‘Art. 19 - Trazer consigo arma de fogo fora de casa ou dependência desta, sem licença da autoridade: Pena – prisão simples, de 15 dias a 6 meses, ou multa, ou ambos cumulativamente’ (BRASIL,1941). O porte ilegal permaneceu como figura contravencional até a edição da Lei nº. 9.437, de 20 de janeiro de 1997” (NUNES, 2005). 3Para o texto completo, vide anexo 2.
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