ebook img

ENTRE CILA E CARÍBDIS O realismo social de Margaret Archer Nuno Oliveira Introdução Ao ... PDF

22 Pages·2011·0.43 MB·Portuguese
by  
Save to my drive
Quick download
Download
Most books are stored in the elastic cloud where traffic is expensive. For this reason, we have a limit on daily download.

Preview ENTRE CILA E CARÍBDIS O realismo social de Margaret Archer Nuno Oliveira Introdução Ao ...

ENTRECILAECARÍBDIS OrealismosocialdeMargaretArcher NunoOliveira Introdução Ao abordarmos as questões ontológicas das ciências sociais, não será descabido afirmarquedoisnomesocupamumlugarproeminentenodebatecontemporâneo. Sãoeles,AnthonyGiddenseMargaretArcher.Acentralidadedaspropostasdestes doisautoresparaumareelaboraçãodateoriasocialpassouemlargamedidapor umareavaliaçãosistemáticadospressupostosontológicosdasciênciassociais,em particulardopatrimónioteóricodasociologia.Se,porumlado,ateoriadaestrutu- ração,assimcomofoielaboradaporGiddens,assumeconcretamenteodesiderato de“formularumateoriaontológicadaconstituiçãodavidasocial”(Cohen,1990: 355),poroutro,oprojectoteóricodeArcheralicerça-senacríticadessamesmafor- mulação(Archer,1982;1995).Podemossituaromomentoinauguraldestainterpe- laçãoàteoriadaestruturaçãonoartigode1982“Morphogenesisversusstructura- tion: on combining structure and action” (Parker, 2000), sendo que, a partir daí, Archertemvindoainsistirnafragilidadedoteoremadadualidadedaestrutura, enfatizandoqueestenãoémaisdoqueumaversãode“conflacçãocentral”,comas consequênciasqueexplicitaremosmaisabaixo. O reposicionamento da ontologia enquanto premissa indispensável para a construçãodateoriasocialnãosesaldaemmeraabstracçãoteórica,nosentidoem quenãosedefinesimplesmenteporumavontadediletantedehipertrofiaconcep- tual,ouuma“teoriateórica”comoadefiniuBourdieu,referindo-seaoescolasticis- modetaisempreendimentos(BourdieueWaquant,1992).Bempelocontrário:não apenaselaimplicaumasimultâneaavaliaçãodeconceitoscomosistema,acção,in- teracçãooumesmoreflexividade,comoédeterminantenaformacomoelessearti- culamcomaempiria.Podemosinclusivamentedizerqueasquestõesepistemoló- gicas,assimcomoasmetodológicas,surgem,nosdoisautores,subordinadasàne- cessidadedeontologizaçãodaimaginaçãoconceptual. Nestecontexto,pensarArcheremrelaçãoaGiddensnãoémaisdoqueaquilo queaprópriaautoratemfeitonoesforçodeencontrarumcampoteóricoparaa abordagemmorfogenética.Todavia,omesmonãopoderáserditodoseuémulo. Falamosdeumconfrontoenãodecomplementaridadeporqueestasduaspostu- ras,nãoobstantepartilharemafinidadesteóricaseencontrarem-seambasaposta- das numa superação das dificuldades analíticas que a integração teórica faz im- pendersobreainvestigaçãosocial,têmmantidoosseusdesenvolvimentosempa- ralelo.Semdúvidaquegrandepartedaausênciadedebateentreasduasperspecti- vasédissoexemplo.Daquidecorreque,apesardassistemáticascríticasdeArcher àteoriadaestruturação,estastêmsidonormalmenteescamoteadaspeloalvo,ou seja, o autor Anthony Giddens. Esta escassez de encontros teóricos entre os dois SOCIOLOGIA,PROBLEMASEPRÁTICAS,n.º65,2011,pp.119-139 120 NunoOliveira expoentesbritânicosdateoriasocialnãotempermitidocotejarasduaspropostas, sobretudorecorrendoaummétodohermenêuticoporexcelência,adialogia,con- trariando desta forma as mais basilares propostas programáticas que Giddens elencouemNewRules.Sucede,porconseguinte,que,seGiddenstemsidoparcoem contra-argumentaremrelaçãoàscríticasdeArcher,nadanosimpededereveras suasteoriasnosentidoderelevaratensãoexistenteentreasduasposturasteóri- co-conceptuaisedaíextrair,nãoumasíntese,objectivoparaoqualnãonossenti- moscompetentes,mastão-somenteumaclarificaçãológicadosseusprincipaisar- gumentos,daquiloqueosseparaedaquiloquepartilham,mesmoqueissonãoseja tãoexplicitadocomoodesejávelnassuasobras. Emcontrapartida,Giddenstemmantidoumintensodiálogocommuitosou- trosautoresque,talcomoArcher,sãoprovenientesdessecorpusdefilosofiasocial denominadorealismosocialcrítico.Bastaparatantolembrarodebateque,defor- madirectaouindirecta,opôsomodelotransformativodeBhaskaràteoriadaes- truturação. Deste debate, é possível igualmente salientar os diversos paralelos existentesentreasduasconcepçõesdavidasocial.Emtraçosgerais,ambasdecor- rem de uma postura pós-humeana e pós-empirista, que delega uma capacidade heurísticamaisamplanasinvestigaçõeshermenêuticasecríticas.Paralelamente, ambospretendem“resolver”1odualismoentreacçãoeestrutura,seguindo,écer- to,caminhosdivergentes. Emrazãodamagnitudedadiscussão,oexercícioqueaseguirsepropõenão constituimaisdoqueissomesmo:umexercício.É-o,nosentidoemqueprocurar cotejar o “esqueleto” teórico dos dois autores, identificar putativas lacunas ou complementaridades, para isso fazendo uso da crítica ontológica ao dualismo social(Giddens)eàcríticadacríticaontológica(Archer),serviráfundamentalmen- tecomoumaexercitaçãodalógicateórica.Aprincipalregradesteexercícioéade nãocompararoscorposteóricosenquantototalidades,querquantoaointentode sintetizarnumafórmulaumadeterminadaconstruçãoteórica,quernareiteração demaisumatentativadehiperdiferenciaçãoobstaculizadoradeumpossívelcon- frontoproposicional(Pires,2007). Evidentementequediversosaspectos,emvirtudedaexiguidadedoespaço numartigodestanatureza,carecemdemaiordesenvolvimento.Nãoobstante,gos- taríamosdeproporaquiloquepensamosserumatripartiçãoquecondensauma possívelleituradaconfrontaçãoentreestesdoisautores.Sãotrês,quantoanós,os eixosondeesteconfrontosetornamaisnotório:a)oeixoontológico;b)oeixosisté- mico;c)oeixoaccionalista.Cadaumdelesreveste-sedeinteresseparticulareéne- lesquepodemosidentificarasprincipaisdivergênciaseconvergênciasentreestes doiscorposteóricos.Nosprimeirosdoisblocos,fazemosapenasumarevisãodeal- gumascríticasconhecidas,sendoqueseráquantoaoterceirobloco—oeixoaccio- nalista—,quesedebruçasobreaobramaisrecentedeArcher,queteremosmaisa dizereondeumresgateparcialdateoriadaestruturaçãoparecefazersentido. 1 Oquenãosignificaqueambospretendam“superar”essemesmodualismo. SOCIOLOGIA,PROBLEMASEPRÁTICAS,n.º65,2011,pp.119-139 ENTRECILAECARÍBDIS 121 Eixoontológico Dualidadedeestruturavs.emergentismo GrandepartedascríticasendereçadasaGiddenspelosautoresfiliadosnorealismo socialprendem-secomofactodeoprimeiroternegligenciadoodualismoeabraça- doadualidade.NaterminologiadeArcher,ateoriadaestruturaçãonãoémaisdo queumaversãode“conflacçãocentral”.Estateriasidoa“viamédia”encontrada porGiddensparanãorecairnemnadownwardconflationnemnaupwardconflation,a velhadicotomiaqueassombraasciênciassociaisdesdeassuasorigensequecon- sistenaoposiçãoentredarprioridadeaoindivíduoouaotodosocial.Todavia,no parecerdeArcher,ateoriadaestruturaçãorevelou-seigualmenteummalogro,ao nãoasseguraradistinçãoanalíticaentreosdoisníveis,concentrando-seempostu- larasua“conflacção”emvezdeanalisarasuainteracção. Giddensposiciona-se,esempreofez,afavordacisãoentreasciênciassociais ehumanaseasciênciasnaturais—eemvastamedidaoeixoatravésdoqualaepis- temologia das ciências sociais foi pensada pelos seus fundadores, considerando fulcralaoposiçãoentrenaturalismoehumanidades,sobretudoquandoestasean- coravanadistinçãoentreexplicaçãoeinterpretação.Estadistinçãocentraldoidea- lismoneokantianoalemão,firmadanopreceitoacadémicodaseparaçãoentreas NaturwissenschafteasGeistwissenschaft,deve,segundoGiddens,serlevadaasério, e possui amplas consequências no trabalho sociológico. As consequências desta oposiçãomanifestam-senaimpossibilidadedeabordaromundosocialdamesma maneiraqueonatural.Comefeito,segundoGiddens,asociologiadiferedasciên- ciasnaturaisnamedidaemquenãooperacomobjectospreexistentes.Osindivíduos atribuemsignificadoaomundosocialenvolventeeactuamdeacordocomessemes- mosignificado.Segue-sequeaatitudeepistemológicapossíveléadeinterpretaros objectosqueseencontramelesprópriosimpregnadosdesignificado;logoasociolo- giaécaracterizadaporumaduplahermenêutica.Dupla,porquelidacomobjectos queapenassãoconceptualizáveisporquepossuemsignificadosapreensíveisquer paraosactoresleigosquerparaespecialistas(mesmoqueestesdivirjam),eporque aoseremcomunicáveis,ouseja,partilháveis,facilmenteintegramosensocomum, tornando-seindistintosdassuasaplicaçõescientíficasouespecializadas. Nestesentido,podemosconsiderarateoriadadualidadedeestruturacomo umesforçodenegaçãodatripartiçãodo“existente”assimcomoestaéproposta pelorealismocrítico.Convémenunciaremmaiordetalheestamesmapartição.O realismo crítico postula a existência de três níveis diferenciados da realidade. O “real”comoaquiloque“é”,aquiloqueexisteparaalémdasnossasinterpretações, textos,discursosoupercepções,sejanaturalousocial,etenhamosnósounãouma noçãoadequadadasuanatureza.Este“real”contémumaestruturaepoderesque podemseractivadosoumantidosnasuadormência.Osrealistastentam,porcon- seguinte, identificar aquilo que é percebido como necessidade ou aquilo que é entrevisto como possibilidade no mundo povoado de objectos. O “actual” é justamente aquilo que é feito quando as potencialidades e as estruturas desses mesmosobjectossãoactivadaseutilizadas.Finalmente,oempíricocorrespondeao SOCIOLOGIA,PROBLEMASEPRÁTICAS,n.º65,2011,pp.119-139 122 NunoOliveira domíniodaexperiência,queraoníveldorealquerdo“actual”,mesmoquedisso nãotenhamosconsciência(Sayer,2000:11-12). Dizerqueoesforçodenegaçãopartedateoriadaestruturaçãoé,decerta forma,inverteroargumentotradicionalqueopõeespecificamenteaintransiti- vidadedosobjectosànoçãodedualidadedeestrutura.Ouseja,aoposiçãoentre dualismoedualidade.Ainversãodoargumentoéaquiassumida.Sucedeque, comoévariadamentereconhecido,umdospostuladoscentraisdateoriadaes- truturação é justamente o de negar a independência ontológica entre objectos sociaiseaspessoasqueosutilizam.Aquestãonãoconfinacomoproblemado “existente”,ouseja,nemaestruturaçãonemorealismosocialnegama“existên- cia”independentementedaacçãohumana,oquecolocariaambosnumextremo empiristaqueé,desdelogo,similarmenterebatidoporestasabordagens.Opro- blemaresideantesnaassunçãonecessáriadenãodiferenciaçãoontológicaen- tre estrutura e agência que se encontra enunciada na teoria da dualidade de estrutura. Da parte do realismo, a crítica a uma tal assunção tem sido enunciada a dois tempos: primeiro, como crítica de pendor epistemológico que critica as démarchesmaishermenêuticasporseresignaremàhegemoniadaciênciapositi- vista,cavandoumhiatoincolmatávelentreasciênciasdanaturezaeassuaspa- rentes pobres, as ciências sociais. Neste sentido, os opositores ao naturalismo sãoacusadosdeestaremmaispreocupadosemdefenderocampodasanálises hermenêuticasdaintrusãodopositivismo,doqueemelaborarteoriasalternati- vasqueexplicitemdeformanãoempiristacategoriaslógicascomoexistênciae causalidade.Oargumentoontológicorealistapassa,porconseguinte,porafir- marumsegundocaminhoparaaapreensãodo“existente”,ouseja,sãoduasas maneirasdeapreenderarealidadedeobjectospostulados:perceptivaecausal (Bhaskar,1989).Consequentemente,autoriza-seopostuladosegundooquala estruturasocialétãorealcomoasestruturasfísicas,nãopelofactodeapoder- mos percepcionar, mas porque possui, similarmente, propriedades causais (Archer,1995;Bhaskar,1989;Marsden,1999). Porconseguinte,umprimeirocontrasteentreestasduasperspectivasveri- fica-se sobretudo na atribuição de causalidade às entidades sociais. Melhor dito,traduz-senaassunçãosegundoaqualaestruturaexerceefeitoscondicio- nantes,denaturezaontologicamentediferente,sobreaagência.Estaríamosre- dondamenteequivocadosseassimilássemosoenunciadoprecedenteaumaló- gicafuncionalista.Pelocontrário,ambasasabordagenssãocategóricasemafir- marque“asformassociais”sãodependentesdaactividadehumana.Oquediz Archer,emcontraposiçãoaGiddensenaesteiradorealismosocial,éque,ape- sar de estas “formas” manifestarem a sua influência apenas e só através da agência, é contudo possível separar logicamente as propriedades emergentes daestrutura(distribuições,papéis,posiçõeseinstituições)edacultura(teorias, proposiçõesoudoutrinas)daspropriedadesemergentesdaagência(delibera- ção,discernimento,dedicação). Paramelhorpercebermosoqueaquiseencontraimplicado,convirásalientar doisdosprincipaispostuladosdorealismosocial.Primeiro,asformassociais(ou, SOCIOLOGIA,PROBLEMASEPRÁTICAS,n.º65,2011,pp.119-139 ENTRECILAECARÍBDIS 123 sequisermos,asestruturasouentidades)2preexistemaosindivíduos.Talsignifica queosindivíduosherdamasestruturasequeestas,consequentemente,precedem temporalmenteaacção.Orabem,nofuncionalismotradicionalesta“precedência” eravistaoucomointernalizaçãodenormasquejáexistiamoucomocoerçãodo contextomoral(alinhadurkheimiana).Sejacomofor,existiaum“dentro”eum “fora”eeraconsoanteacoerçãoexercidapelosegundotermoqueoindivíduode- veriaajustaroseucomportamentosocial.Comoésabido,Giddenspretendesupe- rarestedualismodo“dentro”e“fora”sobretudonoqueconcerneàdimensãocoer- civa.Ateoriadaestruturaçãopropõefazerestasuperaçãoconceptualizandoaes- truturacomosistemaactivadonaspráticas,portanto,comexistênciameramente virtual,enquantocomplexoderegraserecursosquesãoactivadaspelosagentes nassuasinteracçõesetrocassociais,consoanteestesseencontramnumamaiorou menorco-extensividadeespácio-temporal(Giddens,1984).Ousejaaestruturanão possuiumaefectividadeautónomaesósemanifestaatravésdasuainstanciação prática,enquantomanipulaçãoderegraserecursosporpartedosagentes.Estafor- mulaçãoencontra-seexplicitamenteassumidaquandoGiddensafirmaque“ases- truturasdesignificaçãodevemseranalisadascomosistemasderegrassemânticas; asquedizemrespeitoàdominaçãocomosistemasderecursos;asquesereferemà legitimaçãocomosistemasderegrasmorais”(Giddens,1996:142). Contrariamente,naperspectivadeArcher,pessoaseestruturassãoanalitica- mente dissociáveis; são-no em virtude das suas propriedades emergentes. Para Archer,existemtrêsmodalidadesdepropriedadesemergentes:propriedadesemer- gentes estruturais (SEP), equivalendo estas ao domínio material; propriedades emergentesculturais(CEP),correspondendoaodomíniodascrençasesistemasde conhecimento,comaressalvadequenãosãoestasredutíveisaonívelindividual; propriedades emergentes pessoais (PEP), sendo que, quanto ao domínio pessoal, Archeracrescentaaindaumasubdivisãocompostapor:pessoas(aentidadebiológi- caepsicológicapropriamentedita),agentes(grupos,dissociáveisentregruposde interesseepré-grupos),eactores(otomadordeumpapeldentrodeumgrupo).Se- gundoArcher,asestruturassociaissãopropriedadesemergentes,nuncasereduzin- doàsactividadesdosindivíduospresentes;antes,resultamdeinteracçõespassadas queservem,porsuavez,decontextoàsinteracçõespresentes,quercomocondicio- nadorasquercomopossibilitadorasdessasmesmasinteracções,podendoestascon- duziramudança(morfogénese)oureprodução(morfoestase).Concluique,nointui- todeaveriguarmosseainteracçãosocialresultaráemmudançaouemreprodução,é imprescindívelmanteradistânciaanalíticaentreestruturaeagência. Istonãosignifica,assinale-se,quenãoexistampontosdecontactoentreateo- riadaestruturaçãoeamorfogénesedeArcher(asduasabordagenstêmvindoten- dencialmenteaaproximar-se,comoveremosabaixo).Elessãovários,comoapró- priaArcherreferenasuainterpelaçãoinauguralàteoriadaestruturação: 2 FormassociaiséotermoutilizadoporBhaskaremThePossibilityofNaturalism;estrutura,éoter- moutilizadoporArcher;e,finalmente,entidade,éotermoutilizadoporElder-Vass.Embora comalgumasdiferenças,estesconceitospossuemumdenominadorcomum:aspropriedades queemergemdaorganizaçãodassuaspartesnãosereduzemaessasmesmaspartes. SOCIOLOGIA,PROBLEMASEPRÁTICAS,n.º65,2011,pp.119-139 124 NunoOliveira Queraabordagem“morfogenética”quera“estruturacionista”concordamquea acçãoeaestruturapressupõe-seumaàoutra:apadronizaçãoestruturalassenta inextrincavelmente na interacção prática. Simultaneamente, ambas reconhecem queapráticasocialéinelutavelmentemoldadaporcondiçõesnãoreconhecidasda acçãoegeraconsequênciasnãointencionadasqueformamocontextoparaainte- racçãosubsequente.(Archer,1982:456) Comefeito,asduaslinhasteóricasencontram-sequantoàrecursividadeentreac- çãoeestrutura,assimcomoquantoaosefeitosnãointencionadosdaacção,gerados porcondiçõesque“escapam”aoconhecimentodosagentes.Ondeelasseseparam inexoravelmenteéquantoàquestãodaemergência,eacorrelataintroduçãodehia- tostemporaisnosprocessosdereprodução/transformaçãodasociedade,aosquais Archerdeuadesignaçãodeciclosmorfogenéticos/morfoestáticos. Seguindoacríticarealista,comonateoriadadualidadedeestruturanãoexis- teproduçãoquenãosejareproduçãoevice-versa,desdelogoporqueaoproduzir seestáipsofactoareconstruiraordemquecapacitaessamesmaprodução,ouseja, nãoexisteestruturaquenãoseja“estruturação”,3consequentementeasuspensão deumdostermoséapenaspossívelatravésdoartifíciodaepoché.Todavia,estaepo- ché,sebemquepragmaticamenteindispensável,nãoresolveoproblemadaeficá- ciacausal.Pelocontrário,esseacabasubalternizado,namedidaemqueadualida- de de estrutura revela dificuldades intrínsecas em estabelecer um nexo causal. Aceitaradualidadeéimpedirprecisamenteesseprocedimentológico.Aonãopri- vilegiarnenhumdosdoistermosdaequação,aoafirmarqueestruturaeagência são,porassimdizer,devedorasdeuma“ontologiadaspráticas”(Sawyer,2006),ao reforçar a convicção segundo a qual não devemos dotar nenhum dos termos de prevalênciametodológica,sejaemquecircunstânciafor,Giddensnãofazmaisdo quetornaroproblemairresolúvel.Pelocontrário,segundooemergentismo,para explicarmosa“eficáciacausal”deumadeterminadapropriedadeemergentepre- cisamosdeidentificarasrelaçõesentrepráticaseelementosestruturaiseomeca- nismoatravésdoqualestessecombinamparaproduzirapropriedade(Elder-Vass, 2008;Elster,1998;HarréeSecord,1972).Ouseja,identificarumtodo,aspartesque compreendemessetodoeasrelaçõesqueentreelasseestabeleceme,finalmente,o mecanismoatravésdoqualestaspráticaserelaçõessecombinamentresiequepro- duzapropriedade.Este“todo”nãoéumareificação,masantesoresultadodeuma históriacausalqueexplicaaconfiguraçãonecessáriaentreaspartesquelevouà produçãodaquelapropriedadeemparticular;procedimentoaqueArcherchama 3 Convémnãoconfundirestaafirmaçãocomaincapacidadedemudança.Esta,bemassimcomoa historicidadedossistemassociais,éabsolutamentecrucialparaGiddenssequisermoscompre- enderosprocessosdediferenciaçãosocial.Todavia,anoçãosegundoaqualaestruturanãoé umpadrãovisível,masantesumcomplexoderecursoseregrasquetemqueestarsistematica- menteaserreactualizado,levaaimprimirinexoravelmenteasistematizaçãocomocaracterísti- canecessáriadasestruturassociais.Porexemplo,quandoGiddensanalisaasclassessociais, estasnãoconstituemnuncaestruturasdistributivascujafixidezfosse—mesmoqueanalitica- mente—pressuposta;comportamcomotalumpermanenteprocessodereconfiguração,admi- tindoraramentefronteirasestáveis.VerGiddens(1973). SOCIOLOGIA,PROBLEMASEPRÁTICAS,n.º65,2011,pp.119-139 ENTRECILAECARÍBDIS 125 “históriasanalíticasdeemergência”.Archerestáporconseguintecorrectaquando dizquea“dualidadedeestrutura”elideaimprescindívelanálisedainter-relação entreestruturaeagência.Efá-loporqueaocometer-seauma“ontologiadaspráti- cas”omiteo“momentoestrutural”(Elder-Vass,2010)deproduçãoereprodução dasmesmas. Eixosistémico Distinçãoentreintegraçãosistémicaesocial Comopontodepartida,podemoscomeçarporafirmarqueGiddenstemumavisão depráticasocialmaisdevedoradointeraccionismoedaetnometodologia,enquanto Archersecolocadistintamentedoladodasteoriasdoconflitoedamudançasocial. Nestesentido,aprioridadeafectadaaocolectivoouàpraxiséimediatamenteinferi- daporrelaçãoàstradiçõesteóricasqueserviramdeinspiraçãoaosdoisactores. TendoemcontaqueArcherpartedeumaperspectivaassumidamentema- crossociológica4equeGiddensconcedeumabemmaiorlatitudeàscorrentesinte- raccionistaseetnometodológicas(Cohen,1990),sãojustamenteasdiferentesno- çõesdesistemaassimcomoaprioridadequeestasganhamnasrespectivasaborda- gensqueimportacotejar. ParaGiddens,umsistemaéconstituídopelas“relaçõesreproduzidasentre osactoresouoscolectivos,organizadasenquantopráticassociaisregulares”(Gid- dens,1984:25).Maisconcretamente,umsistemaseráentãoumconjuntodemodos deinteracçãoarticuladoseinterligados,reproduzidosemcenáriosdiversosatra- vésdotemponumdeterminadoperíodohistórico.Osistemaéaunidadeanalítica fundamentalemGiddens. Porseulado,Archernãoofereceumaexplícitadefiniçãodesistema,embora sejaesteconceitocentralparaasuateoriadamorfogénese.Emlugardeumadefini- ção,Archerrecorreaosseuscomplementares,taiscomo“sistematização”,ouentão ao par canónico “integração sistémica” e “integração social”. Por vezes, sistema (social)refere-seàs“configuraçõesespecíficasdassuasestruturascomponentes, cujosfactoresemergentesdasprimeirasdecorremdasrelaçõesqueseestabelecem entreasúltimas”(Archer,1995:172);outras,émaissimplesmenteasformascomo as “partes” se inter-relacionam. O sistema cultural, por exemplo, refere-se a um clusterdeproposiçõesinterdependentesporémcompatíveis,ou,maisespecifica- mente,correspondeaocorpusdeinteligibiliaexistente,oquePopperdesignou“Ter- ceiroMundodeConhecimento”,sendoqueomaisaproximadoqueaautoraadmi- tedasuadefiniçãodesistemaculturaléanoçãodeparadigmanaacepçãodeKhun (Archer,1996[1988]:104). 4 ÉnoseuestudosobreasorigenssociaisdossistemaseducativosqueArcherexpõeaquiloque consideradeverserumprogramaparaumaanálisemacrossociológica.Éjustamenteessaparti- lhaqueaautoraidentificaemcontributostãodiversosquantoosdeLockwood,Gouldner,Ei- senstadt,BuckleyeBlau,(ver Archer,1979:25). SOCIOLOGIA,PROBLEMASEPRÁTICAS,n.º65,2011,pp.119-139 126 NunoOliveira Sebemquenenhumadefiniçãonossejaoferecida,arelaçãoentreossiste- mas culturais e socioculturais é fundamental para a compreensão dos ciclos morfogenéticosoumorfoestáticos.Umaspectocrucialparaestaciclicidadeéa concepção segundo a qual estrutura e agência são concebidas como existindo emestratostemporaisdiferenciados.Istopermiteformularteoriassociaisnas quaisaestruturaprecedeaagênciaeexercesobreelaumainfluênciacausal.Ou seja,“aintegraçãosistémicacondicionaaintegraçãosocial[…]namedidaem queaintegraçãosocialsereferesempreaoaquieagora”(id.,ibid.:183).EmRea- listSocialTheory,Archerensaiaumasequênciaqueexemplificaclaramenteoseu entendimentodarelaçãoentreintegraçãosocialeintegraçãosistémica. SegundoArcher,omecanismobásicoatravésdoqualosfactoresculturaisin- tersectamocampoestruturaldecorredofactodeumgrupodefensordeinteresses materiais(amaterialinterestgroup)advogarumaqualquerdoutrina(teoria,crença, ideologia)paraaafirmaçãodessesmesmosinteresses,condiçãoessaqueocoloca imediatamentenumadadalógicasituacional. Aoadvogarumconjuntodeideiasogrupodeinteresses“fixa-se”aumade- terminadadoutrinaculturaleaosseusproblemasassociados.Necessariamente passamafazerpartedeumalógicasituacionalnodomíniocultural.Istoporquea razãopelaqualosgruposdeinteresseadoptamideiasépública:informareunifi- carosapoiantescontraosseusconcorrentes,usandoparaissoargumentos(con- vincentes?).Tornarosargumentospúblicoséintrínsecoaoprocessodeadopção deideiasporpartedeumgrupodeinteresses:“Ogrupodeinteresses[…]avaliou ocampocultural,seleccionouapartirdesteideiascongruentesetornou-aspúbli- cas.Assimfazendo,alertatodaapopulaçãorelevante(apoiantes,opositoresou grupossemiopositores)paraumaparteparticulardosistemacultural”(Archer, 1995:306).Osfactoresestruturaisexercemasuainfluênciasobreocampocultu- raldamesmaformamasnadirecçãoinversa,ouseja,seadefesadeumadetermi- nadadoutrinaforassociadaaumgrupodeinteresses,essaassociaçãotraduz-se necessariamentenaconjunçãoentreodiscursoculturaleosjogosrelacionaisde poder, porquanto esta assunção se revela imediatamente por relação a outros grupos(id.,ibid.:307). Assim,abordarosistemaculturaldeumaperspectivadualistasignificater emcontacategoriasquelhesãointrínsecasedistintasdasdonívelsociocultural. Asrelaçõessistémicaspossuempropriedadesprópriasquenãosãoredutíveisaos julgamentos dos actores sociais. Neste sentido, elas partilham princípios lógicos invariantes.Paraalémdisso,temosqueàprerrogativaconcedidaàsinfluênciases- truturaissobreainteracçãosedevemjuntarasvariáveisgrupais,geralmenteesca- moteadas pelas visões individualistas. Em termos ontológicos, sustenta-se que existem relações objectivas de contradição cuja existência não depende da cons- ciênciaquedelastêmosagentes. ParaArcheréclaroqueprovarairredutibilidadeanalíticaentresistemacul- turalesistemasocialequivaleamostrarqueexistemcontradiçõeslógicasinextricá- veisentreedentrodestessistemas.Giddens,aoformularasuanoçãodeestrutura enquanto composta por regras e recursos — e atente-se na consabida metáfora linguística a que Giddens recorre frequentemente —, está, em certa medida, a SOCIOLOGIA,PROBLEMASEPRÁTICAS,n.º65,2011,pp.119-139 ENTRECILAECARÍBDIS 127 introjectarosistemacultural,elogoasonegar-lheapossívelautonomiaanalítica. Ofactodeoagente,enquantoactualizadoreprodutordeestrutura,seraparente- mentealguémcomumconhecimentoaprofundadodessasmesmasregras—mes- moquenãoconsciente—traduz-senatotalnegligênciadaideiadecontradiçãoao nívelsistémiconateoriadaestruturação.Sublinhamos,aonívelsistémico.Porque acontradiçãoé,talcomonateoriadamorfogénese,umaformalógicaindispensá- velparaaproduçãodemudança.EmGiddensestaédeslocadadosistemaparaos princípiosestruturais.Énestesúltimosqueacontradiçãoproduzefeitos.Temos assimque,baseando-seambosnacontradiçãológica,uminfere-anosprincípios enquantoooutroinfere-anasrelações. Por conseguinte, a irredutibilidade dos sistemas sociais e culturais implica que as “relações ao nível da agência em interacção (agential interaction) possam mostrarumnívelsignificativodevariaçãoindependentenoquerespeitaàsrela- ções que caracterizam os sistemas sociais ou culturais emergentes […] e vi- ce-versa”(Archer,1995:295). Todaviaénecessárioencontrarmecanismosquefaçamaligaçãoentreestas duasdimensões.Asligaçõesentreascondicionantesestruturaisouculturaiseoní- vel interactivo são consubstanciadas pela distribuição dos “direitos adquiridos” (vestedinterests),eestesporsuavezfuncionamatravésdeagentesemconfronto, evidenciandológicassituacionaisdiferentesemvistadasuaprossecuçãoouma- nutenção.Damesmaforma,osmecanismosconectivosentreainteracçãoeafase daelaboração(morfogénese)oureprodução(morfoestase)funcionamatravésde transacçõesenvolvendotrocaerelaçõesdepoder. Lógicassituacionais:dosagentesoudosactores? Aonívelgrupal,“Osgrupossociaisconfrontamdoistiposcompletamentedistin- tosdelógicasituacional,dependendodaspropriedadessistémicasdassuascon- vicções, ou seja, da sua relação contraditória ou complementar” (Archer, 1995: 185).Ouseja,aexistênciadeharmoniaideacionaloudeconflitocondicionaosiste- masociocultural(olugardainteracção)deformasdistintas. Estabelecendoqueolugardaagênciaseencontraaonívelgrupal,Archer“es- capa”àcomplexidadedeumateoriadaacção,sejaeladeíndolehermenêutica,seja estratégica.Porém,identificaronívelagencialcomonívelgrupalpoucoounada nosdizdarelaçãoqueexisteentreapessoaeogrupo,ou,sequisermos,entreoac- tor,emsituaçõesdeinteracção,eogrupo.Poressefacto,noesquemadualistadees- truturaeagêncianadanoséditosobreaestruturainternadosprópriosgrupos.A menosqueArcherconcebaestarelaçãocomoumafragmentaçãogradualdaconfi- guraçãomacroondeasdinâmicassociaisseprocessam;ouseja,amenosqueasre- laçõesestrutura-agênciaintragruposrepliquemasconfiguraçõesequacionadasao nívelintergrupal.Seassimfor,Archerdeixouporexplicarcomoéqueaculturaao nívelintragrupoinfluenciaaacção.Eistodeixariaporexplicarasrazõesparaagir quenãofossemaquelasqueArcherelaboraparaosgruposeassuaslógicassitua- cionais. Ou melhor, Archer teria que admitir a existência de lógicas situacionais tambémparaactoreseregressaradinitioaoproblemaquepretendiasuperar:como SOCIOLOGIA,PROBLEMASEPRÁTICAS,n.º65,2011,pp.119-139 128 NunoOliveira seconjugamascaracterísticasestruturaiscomasacçõesindividuais,comoéquein- teragemeporquê?Aoinvés,limita-seaestabelecerumpressupostomaximalista,a saber,sãoosgruposqueagem,quersejanalutaporrecursosquersejanatentativa dehegemoniaideacional. Afigura-se-nos que, quanto a este aspecto, a noção de sistema assim como concebidaporGiddens,apresentaumpotencialexplicativoacrescidoporrelaçãoà ideiadesistemasegundoArcher.Ouseja,seasentidadesdeArchernãotêmmais doqueumnívelgrupal,quandocomplementadascomanoçãode“modosdeinte- racçãoarticuladoseinterligados”querporactoresindividuaisquercolectivosga- nhamemprofundidaderelacional.Poiséaquique,anossover,seencontraapecha daconcepçãosistémicacomoestaécompreendidaporArcher.Semumaperspecti- vaqueabarquearelacionalidadeadiversosníveis,assuasinfluênciasrecíprocase asuadireccionalidade(dosagentes—grupos—paraosactores—pessoas—,evi- ce-versa),amediaçãoagência-estruturaficabasicamentetruncada—Archeracaba porperderaspessoasdevista. Eixoaccionalista SobreoprojectoemArcher ApósRealistSocialTheory,Archerdedica-seasuplementarumateoriasistémicado conflitocom,agorasim,umateoriadamediaçãoentreagênciaeestrutura(incom- pletanasobrasanteriores,comoaprópriaconcluiumaisrecentemente).5Emter- mosmuitosimples,atéaqui,odualismoapenasnosdavaumaanálisemacrodas relaçõeslógicasentreestruturaecultura,oqueestavalongedeserasíntesepreten- dida.Oproblemapassaentãoaserodeenunciarumateoriaplausívelquefaçaa mediaçãoentrepropriedadesestruturaisepessoais.Eissocomeçaaserdelineado apartirdeStructure,AgencyandtheInternalConversation.Archerdáopassofunda- mental,etraduz-seestenaintroduçãodanoçãodereflexividade,consubstanciada nomecanismodainternalconversation.Comofuncionaesta? Osagentesdeparamcomsituaçõesreaisquelhescolocamconstrangimentos estruturaiseculturais.Osprimeirospossuemformasdiferentesdelidarcomesse lequedeconstrangimentos,eaformacomoofazeméatravésdainternalconversa- tion,ouseja,deumdiálogointernoentreumeusubjectivoeumeuobjectivoeque seprocessadaseguinteforma:osactores,tendoemcontaassuasmaissignificati- vaspreocupações(concerns),avaliamocaminhoatomarmedianteosconstrangi- mentosoucapacitações,discernindoospossíveistrajectosqueaacçãopodetomar (discrimination) e deliberando relativamente aos custos e benefícios de cada um dessestrajectos(deliberation);finalmente,dedicando-se(dedication)aponderaras 5 “Poroutraspalavras,comoéqueaobjectividadeafectaasubjectividadeevice-versa?Osrealis- tassociaisnãoderamumarespostacompletamentesatisfatória.Propusemosumprocessorela- tivamentevagodecondicionamento—processoessequeédemasiadoimprecisoparaquesirva demecanismocausal.”(Archer,2003:2) SOCIOLOGIA,PROBLEMASEPRÁTICAS,n.º65,2011,pp.119-139

Description:
Neste contexto, pensar Archer em relação a Giddens não é mais do que aquilo que a própria autora tem feito no Grande parte das críticas endereçadas a Giddens pelos autores filiados no realismo (2000: 116) dirige a Giddens relativamente a uma autonomia global da agência que não tenha em
See more

The list of books you might like

Most books are stored in the elastic cloud where traffic is expensive. For this reason, we have a limit on daily download.