a fugitiva marcel proust em busca do tempo perdido volume 6 a fugitiva tradução carlos drummond de andrade prefácio, notas, resumo e revisão técnica guilherme ignácio da silva posfácio franklin leopoldo e silva Copyright da tradução © 2012 Editora Globo Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta edição pode ser utilizada ou reproduzida — em qualquer meio ou forma, seja mecânico ou eletrônico, fotocópia, gravação etc. — nem apropriada ou estocada em sistema de bancos de dados, sem a expressa autorização da editora. Texto fixado conforme as regras do novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (Decreto Legislativo no 54, de 1995). editor responsavel Alexandre Barbosa de Souza assistente editorial Juliana de Araujo Rodrigues tradução dos trechos ausentes na edição anterior Guilherme Ignácio da Silva preparação Ana Lima Cecilio revisão Bruno Costa produção para ebook S2 Books Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip) Câmara Brasileira do Livro, sp, Brasil Proust, Marcel, 1871-1922 A fugitiva / Marcel Proust; tradução Carlos Drummond de Andrade; prefácio, notas e resumo Guilherme Ignácio da Silva; posfácio Franklin Leopoldo e Silva. — São Paulo: Globo, 2012. — (Em busca do tempo perdido; v. 6) Título original: La fugitive. isbn 978-85-250-5418-0 1.045kb; ePUB 1. Romance francês I. Silva, Guilherme Ignácio da. Ii. Silva, Franklin Leopoldo e. Iii. Título. IV. Série. 12-11138 cdd-843 Índice para catálogo sistemático: 1. Romances: Literatura francesa 843 Direitos de edição em língua portuguesa adquiridos por Editora Globo s/a Avenida Jaguaré, 1485 05346-902 São Paulo sp www.globolivros.com.br Sumário Capa Folha de rosto Créditos Sumário Prefácio mágoa e esquecimento a srta. de forcheville estada em veneza novo aspecto de robert de saint-loup resumo posfácio prefácio I O barulho da janela durante a madrugada já era um mau presságio. Nem o passeio ao cair da noite conseguira distrair Albertine das decisões que ela havia tomado: na madrugada seguinte, ela embalou suas roupas e escapou de sua “prisão”. Um adjetivo presente na primeira carta que o herói recebe da “fugitiva” impressiona- o, talvez mais pelas sugestões de um futuro sombrio do que pela caracterização do passado que juntos eles viveram: Albertine, com dons literários, conclui a carta mencionando o passeio antes da fuga como tendo sido “duplamente crepuscular (pois caía a noite, e nós íamos nos separar)”. O adjetivo “crepuscular” é adequado, em muitos sentidos, para caracterizar o sexto volume de Em busca do tempo perdido. A fugitiva registra grandes “realizações” do herói e de alguns personagens do livro. Mas essas realizações não são nunca sentidas como tais. O desejo, por exemplo, de saber detalhes ignorados da vida de Albertine era elemento central da necessidade de mantê-la reclusa. Com sua fuga o herói passa a ter acesso quase irrestrito a essa realidade até então oculta, realizando plenamente aquilo que Swann não pôde realizar senão de forma parcial, antes de deixar de amar Odette e se casar com ela. Como pássaro arrependido de ter escapado da gaiola, era bastante provável que Albertine se decidisse a voltar por vontade própria para o apartamento do herói. Essa simples possibilidade significa a vitória sobre o inimigo, na batalha afetiva que travam. E mesmo o desejo sinistro, sentido também por Swann, de que a amada sofresse um acidente libertador está prestes a se realizar. Confortado em seu amor próprio com a possibilidade da volta da amada e depois libertado das amarras que monopolizavam sua atenção de amante enciumado, seria então o momento de realizar a tão sonhada viagem a Veneza e de ler, pela primeira vez, uma realização literária própria, divulgada a milhares de pessoas pelo jornal. O livro, nesse sentido, é “duplamente crepuscular”: pela incompletude deixada por essas realizações e pela baixeza implicada em algumas delas. Os principais personagens do livro também não têm tempo de viver conquistas pelas quais tiveram que dar livre curso a suas baixezas. E acabam tomando-as como algo, no fundo, sem importância, de que é melhor talvez se esquecer. Charles Swann, por exemplo, vinculara seu casamento com Odette de Crécy à possibilidade de um dia poder apresentar a filha do casal, Gilberte, à sua melhor amiga, a duquesa de Guermantes. Essa apresentação enfim acontece. Mas, como não poderia ser diferente, a realização desse anseio vem um pouco tarde demais, pois os jornais já noticiaram a morte do parisiense insigne. Gilberte de Forcheville, agora filha adotiva do marido nobre da mãe, faz de tudo para dissimular sua ascendência judaica e poder ser enfim recebida pelos Guermantes. A mudança de sobrenome assinala que seus esforços não respondem absolutamente ao desejo do pai. Herdeira rica, Gilberte consegue realizar um casamento que lhe permitiria estabelecer um dos salões mais importantes de Paris. A partir do momento em que se concretizavam definitivamente tantas ambições, “Gilberte pôs-se a ostentar desprezo pelo que desejara tanto, a declarar que todos os moradores do faubourg Saint- Germain eram idiotas e infrequentáveis, e, passando da palavra à ação, deixou de frequentá-los”. O noivo, por sua vez, “rapaz, que parecera antes tão orgulhoso, tão ambicioso, convidava para partilhar seu luxo camaradas que sua mãe não teria recebido”. De forma que todos os esforços da sra. de Crécy e da sra. de Marsantes “visando sobretudo a uma situação espetacular para seus filhos, não deram lugar a recepção alguma do sr. e da sra. de Saint-Loup”. O sr. Legrandin, personagem que viemos acompanhando desde o primeiro volume, também consegue, enfim, adentrar o universo restrito dos salões da nobreza. Nos finais de semana em que passava em Combray, seus devaneios literários em voz alta dissimulavam mal sua paixão pelas velhas castelãs da região. No terceiro volume, junto com o herói, ele adentra saltitante o faubourg Saint-Germain, sentindo-se honrado de ser recebido no salão decadente da sra. de Villeparisis: “ — Agradeço-lhe muito por me receber, senhora […]. É um prazer de qualidade inteiramente rara e sutil que dá a senhora a um velho solitário”. Agora, com o casamento de seu sobrinho com uma jovem “nobre”, o “conde de Méséglise” (nome que ele próprio divulga) passa a ter acesso aos salões de maior prestígio do faubourg. Mas, “desde que teve essa situação mundana, deixou de aproveitá-la”. Sua irmã, a sra. de Cambremer-Legrandin, também perde o gosto pela alta sociedade quando consegue dela participar. A duquesa de Guermantes, encantada com a inteligência e a cultura daquela que sempre evitou receber, passa a visitá-la “à tardinha”. “Mas o encanto maravilhoso que supunha existir na duquesa de Guermantes se desvaneceu logo que a sra. de Cambremer se viu procurada por ela.” Tornando-se “indiferente à amabilidade da duquesa”, ela passa a recebê-la “antes por delicadeza do que com prazer”. Talvez, para todos esses casos, pudesse ser válida a conclusão geral do próprio narrador: “Desdenhamos de bom grado um objetivo que não logramos atingir ou que atingimos definitivamente”. Entretanto o caso do herói proustiano é mais grave, pois implica no esquecimento paralelo da fugitiva e das ambições artísticas que acalentara por toda a vida. ii A fugitiva é o volume de grandes “realizações” do herói, mas elas conduzem sempre a uma espécie de “normalidade” que poderia ter sido fatal para ele. Em uma manhã, sua mãe vem lhe trazer junto com sua correspondência o artigo que há tanto tempo enviara ao jornal Le Figaro. Diferentemente de um crítico como Sainte- Beuve, que colocava sua erudição à mercê dos aplausos de admiradores da velha nobreza, o herói recolhe elogios grosseiros daquele que a avó achava “muito vulgar” — assinante distraído do Figaro, o duque de Guermantes o felicita “sem reservas, por estar ‘(se) ocupando’”. No mais, chegam até ele apenas cumprimentos de pessoas com quem mantinha pouco ou nenhum contato. Mesmo a estadia na cidade que motivara em parte o desejo de separação do herói de Albertine termina de forma “crepuscular”: tendo passado horas na basílica de São Marcos, visitado as salas da Academia onde estão os quadros de Carpaccio e os afrescos de Giotto em Pádua, o herói conclui sua estadia italiana sentado na sacada do hotel, em um final de tarde, presenciando o esfacelamento de Veneza, ao som de um melancólico e desesperador “Sole mio”. Num primeiro momento, tudo parece realmente estar ligado ao tema da incompatibilidade entre o que foi imaginado e a realidade. O quarto parágrafo do primeiro volume já registrava uma crítica àqueles que “empreendem uma viagem para ver com os próprios olhos uma desejada cidade” e que “imaginam que se pode gozar, em uma coisa real, o encanto da coisa sonhada”. O outro grande tema proustiano está também presente: a convicção de que aquele que alcança já não é mais o mesmo que desejava — este último mudou tanto que talvez nem se lembre mais do que um dia desejou. Por consequência, as pretensões artísticas e o valor que atribui à literatura parecem momentaneamente enfraquecidos. Com a fuga definitiva da amada, o herói passa a alimentar novos “cativeiros”, para novas “Albertines”, visando restaurar seus antigos hábitos e se proteger no seio de uma “normalidade” restabelecida. Ele realiza primeiro alguns ensaios, ainda na perspectiva da volta iminente da fugitiva. Primeiro, convidando para seu quarto uma menor de idade, que acaba levando-o a prestar depoimento em uma delegacia; depois, tentando substituir Albertine pela amiga, Andrée. Um novo período se inicia com a passagem de uma jovem loura que ele toma por uma nobre que oferecia seus favores em um bordel. Em Veneza, quando não está com a mãe, ele percorre as ruelas onde pode encontrar “mais facilmente essas mulheres do povo, vendedoras de fósforos, enfiadeiras de pérolas, trabalhadoras de vidro, rendeiras, pequenas operárias com grandes xales negros”; ao final da estadia, ele planeja levar de volta para Paris “uma jovem vendedora de cristais”, “verdadeiro Ticiano” que deseja contemplar diariamente. Já perto do final do livro, o herói fica embaraçado por ter de deixar Paris para encontrar Gilberte de Saint-Loup em Tansonville porque tinha na cidade “certa moça que dormia num apartamento por (ele) alugado”. A intenção de reconstituir os dias passados ao lado de Albertine é clara: “Como outros precisam do aroma das florestas ou do murmúrio de um lago, eu necessitava de seu sono perto de mim, à noite, e, durante o dia, de tê-la sempre a meu lado no carro. Por mais que se esqueça um amor, ele pode determinar a forma do amor que se seguirá”. iii A “busca do tempo perdido” não remete apenas à recuperação do que a mera inteligência não conseguira trazer do passado. Por mais de uma vez, o herói capta sinais que já contêm em si o futuro. Nas tardes de leitura ao ar livre, em Combray, a travessia da cidadezinha pelas tropas de jovens soldados interrompia a tranquilidade do vilarejo — naqueles dias ensolarados da infância, Françoise e o cozinheiro já “discutiam sobre o que se deveria fazer em caso de guerra”. Nessa mesma época, o herói implorava ao torreão de Roussainville que lhe “mandasse alguma menina de sua aldeia” — o herói agora está prestes a ficar sabendo que muita coisa acontecia nessas ruínas e que parte de Combray, em breve, também estará sob ruínas. No terceiro volume, quando da segunda audição de Berma, em noite de gala no teatro da Ópera, o herói detecta o futuro nos camarotes que “compunham um panorama efêmero que as mortes, os escândalos, as doenças, os rompimentos modificariam em breve”; o luxo desses camarotes é parte de uma “espécie de instante eterno e trágico de inconsciente espera e de calmo embotamento que, retrospectivamente, parece ter precedido a explosão de uma bomba ou a primeira chama de um incêndio”. Neste sexto volume, o caso Dreyfus já ficou para trás e, em breve, fará parte de “tempos pré-históricos”. Mesmo assim, pairam no livro pressentimentos de que tudo deve ainda piorar. Os diálogos entre Marcel e Albertine e a troca de cartas entre os dois antecipam, no plano pessoal, a técnica do bluff, das falsas ameaças de guerra para intimidar o adversário. Em um plano mais geral, pressente-se a ameaça de um conflito: durante um jantar na casa da duquesa de Guermantes, “parecia iminente a guerra entre a França e a Alemanha”; mais tarde, em um bordel, um “cavalheiro gordo” passa o dia tomando champanhe “em companhia de rapazes, porque, já muito cheio de corpo, queria tornar- se bastante obeso para não ser ‘pego’ em caso de guerra”. O narrador observa que esse bordel já passava a fomentar a prostituição masculina. Como se estivesse em seu salão com os convidados, a cafetina do bordel, leitora do jornal Le Gaulois, comenta com o “cavalheiro gordo” o anúncio do casamento de Robert de Saint-Loup: “Parece que o pequeno Saint-Loup também é”. É a primeira alusão à sexualidade de Robert, que, uma vez casado com Gilberte, “não deixaria nunca, daí por diante, de fazer-lhe filhos”, mas, nas horas vagas de seu casamento, tenta se envolver com um rapaz que acabará substituindo a antiga amante Rachel, o violinista Morel. Antes que isso tudo ocorra (no final do terceiro capítulo), um prenúncio desta relação já está presente no início do livro, na cena em que o herói ouve estarrecido os conselhos que Robert dá a um criado do duque e da duquesa de Guermantes: eles têm o mesmo tom satânico das articulações de Morel para provocar a demissão do cocheiro dos Verdurin, em Sodoma e Gomorra. O leitor verá que, no próximo volume, esses indícios se concretizarão nas imagens de prostituição masculina envolvendo soldados desertores, militares de alta patente, milionários e membros da nobreza em um bordel para homens, durante os bombardeios a Paris na Primeira Guerra. iv A esses indícios se associa a percepção inequívoca do que se poderia chamar de “normalidade”. Exemplo disso é a conversação entre os amantes de longa data, a sra. de Villeparisis e o ex-embaixador, sr. de Norpois, em um hotel de luxo em Veneza. A marquesa rompe o silêncio que prenuncia a morte indagando o amante sobre as compras que ele fizera à tarde: — Você passou pelo Salviati? — Passei, sim. — Eles mandam amanhã? — Eu mesmo trouxe a taça. Depois do jantar lhe mostrarei. Vejamos o cardápio. — Deu instruções à Bolsa, quanto às minhas ações de Suez? — Não, neste momento a atenção da Bolsa está concentrada em títulos de petróleo. É o compartimento que está em evidência. A Royal Dutch não teve uma nova alta de três mil francos. A cotação de quarenta mil francos está sendo prevista. A meu ver, não seria prudente esperar até lá. Mas não há razão para nos apressarmos, dadas as excelentes disposições do mercado. Aqui está o cardápio. Como entrada, há uns salmonetes. Vamos provar? As pretensões artísticas do herói parecem momentaneamente enfraquecidas e ele se organiza de modo a restaurar seus hábitos. Feito o luto pela fuga da amada, ele retoma sua vida mundana junto a amigos que já não lhe oferecem qualquer interesse: “A fadiga e a tristeza que eu então experimentava resultariam menos, talvez, de haver amado inutilmente quem eu já esquecera do que de começar a me distrair com outras pessoas vivas, pessoas puramente da sociedade, simples amigos dos Guermantes, tão pouco interessantes em si mesmos”. No momento de sua vida em que pensava menos em Combray, ele retorna à cidade e a seus arredores em companhia de uma amiga de infância. Com efeito, o final do livro esclarece uma menção misteriosa das primeiras páginas do primeiro volume da obra: na introdução de No caminho de Swann, o narrador despertava de um sonho em que se encontrava em seu quarto “em casa da sra. de Saint-Loup, no campo”. Após milhares de páginas, o personagem que mobilizou a vida do herói nos dois primeiros volumes, encontra-se com ele na antiga propriedade da família Swann, em Tansonville, nas redondezas de Combray. As primeiras reações do herói a esse retorno à cidade são de perplexidade consigo mesmo: “Ora, como não experimentaria eu então, mais vivamente ainda do que naquele tempo, do lado de Guermantes, o sentimento de que jamais seria capaz de escrever, ao qual se acrescentava o de que minha imaginação e minha sensibilidade se tinham enfraquecido, quando percebi que Combray me despertava tão pouco interesse? Entristecia-me ver como eu revivia escassamente os tempos passados”. Nesse final de livro, Gilberte já não é mais bela, não guardando mais a sedução da loura que reencontrara no salão dos Guermantes. Passados muitos anos desde a época de brincadeiras nos Champs Élysées, “tudo que Gilberte me teria recusado antigamente, o que lhe parecera intolerável, inadmissível, ela agora o concedia facilmente — sem dúvida porque eu não o desejava mais”. A noite já caiu, quando Gilberte e Marcel retomam os passeios pelos arredores de Combray. A amiga infeliz, mas atenciosa, o leva para caminhar pelas trilhas que ele percorria na infância, fazendo cair por terra ideias prontas que cultivava desde aquela época: uma simples trilha ligava os caminhos de Méséglise e de Guermantes e as nascentes do Vivonne, que ele “imaginava algo tão extraterrestre como a Entrada dos Infernos”, “não eram mais do que uma espécie de lavadouro quadrado, de onde subiam bolhas”. O golpe dessa suposta “realidade” se faz sentir no desânimo do herói em prosseguir as caminhadas com a amiga: “Não compreendendo bem, sem dúvida, qual era a sua
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