Jairo Nicolau ELEIÇÕES NO BRASIL Do Império aos dias atuais Nova Biblioteca de Ciências Sociais diretor: Celso Castro Segredos e truques da pesquisa Howard S. Becker Teoria das elites Cristina Buarque de Hollanda Forças Armadas e política no Brasil José Murilo de Carvalho Jango e o golpe de 1964 na caricatura Rodrigo Patto Sá Motta Eleições no Brasil Jairo Nicolau O Brasil antes dos brasileiros André Prous Questões fundamentais da sociologia Georg Simmel Kissinger e o Brasil Matias Spektor Sobre o artesanato intelectual e outros ensaios C. Wright Mills Sumário Introdução 1. Eleições no Império (1824-1889) 2. A Primeira República (1889-1930) 3. Dos anos 1930 ao Estado Novo (1930-1945) 4. Do fim do Estado Novo ao golpe militar (1945-1964) 5. Regime militar (1964-1985) 6. Democracia atual (1985-2012) Cronologia Notas Bibliografia Créditos das imagens Caderno de imagens Agradecimentos I NTRODUÇÃO AS INSTITUIÇÕES ELEITORAIS em vigor no Brasil – país que possui o quarto maior eleitorado do planeta, perdendo apenas para Índia, Estados Unidos e Indonésia – são um caso de sucesso. Os eleitores escolhem seus representantes para os principais postos de poder (presidente, governador, senador, deputado federal, deputado estadual, prefeito e vereador) e as fraudes eleitorais foram praticamente eliminadas. Apesar do tamanho do território, o processo eletrônico de voto e apuração permite que os resultados sejam proclamados poucas horas após o encerramento da votação. Além disso, as eleições são competitivas, com uma enorme oferta de candidatos e partidos (em torno de trinta legendas por eleição). O sufrágio é universal – pois já não existem restrições significativas que impeçam qualquer cidadão com pelo menos dezesseis anos de ser eleitor – e quatro em cada cinco adultos compareceram às últimas eleições para votar. Sabemos muito pouco, no entanto, como as eleições eram realizadas em outros períodos da história do país. Este livro pretende apresentar um pouco dessa história, que revela que o Brasil tem uma das mais duradouras experiências com eleições no mundo, iniciadas há 190 anos. Anos atrás, publiquei um livro (História do voto no Brasil, 2002) por esta editora com o mesmo objetivo. Desde então, uma série de trabalhos (artigos, teses e livros) sobre eleições brasileiras foram publicados e novas fontes primárias foram disponibilizadas. Aos poucos percebi, então, que era hora de voltar a escrever sobre o tema. Agora em um trabalho mais detalhado, com maior uso de fontes primárias e referências a essas novas pesquisas, sem, no entanto, me afastar da concisão. Espero ter conseguido com o presente volume. ALGUNS HISTORIADORES GOSTAM de definir uma data precisa para marcar a origem de uma determinada organização ou instituição. O uso desse artifício para a história das eleições é um desafio e tanto. Podemos dizer que as eleições começaram na Antiguidade, pois existem registros bem-documentados de sua prática já nas cidades-Estados gregas, no século V a.C., e na Roma clássica. Para outros, as modernas eleições originaram-se nas ordens religiosas medievais, que utilizavam sofisticados sistemas eleitorais para a escolha de seus dirigentes. Ou, quem sabe, possamos buscar a origem das eleições modernas na criação do Parlamento inglês no século XIII?1 Talvez menos controverso seja acompanhar as transformações institucionais que aconteceram ao longo do século XIX em determinados países europeus e algumas ex-colônias, que modificaram a forma como as eleições eram realizadas até então. Entre essas mudanças, destacam-se: a criação de um calendário regular de eleições para postos importantes do governo; a ampliação do direito de voto, com a queda das barreiras de renda e escolaridade (o direito de voto para as mulheres seria amplamente adotado somente no século seguinte); a mudança no processo de administração do pleito, com a adoção do voto secreto, o alistamento prévio de eleitores e o combate às fraudes; a entrada em vigor da representação proporcional, que permitiu a grupos minoritários serem representados no Legislativo; e o reconhecimento dos partidos políticos como unidades fundamentais da administração governamental. No Brasil, desde a Independência os legisladores reconhecem as eleições como uma peça fundamental da organização política. A primeira Constituição, promulgada em 1824, já previa eleições regulares para as duas Casas de representação nacional (Senado e Câmara dos Deputados) e estabelecia as normas que definiam o direito de voto. Práticas que se repetiram em todas as Constituições seguintes – com exceção da Carta de 1937, que inaugurou o único regime político no país que suspendeu completamente as eleições. Portanto, as eleições no Brasil antecedem o amplo processo de democratização das instituições que transformou profundamente a política de alguns países a partir do século XIX. Mas a forma como elas foram encaminhadas por aqui sofreu uma inevitável influência desse ambiente de democratização presente em outras nações, uma vez que os legisladores brasileiros defrontavam-se com questões semelhantes: que cargos devem ser ocupados por intermédio das eleições? Os analfabetos devem ter direito a voto? Qual a melhor maneira de alistar os eleitores? Qual a melhor opção: permitir que o cidadão assuma a sua escolha (voto aberto) ou manter em segredo essa decisão (voto secreto)? As mulheres devem votar? Que sistema eleitoral garante que as minorias políticas sejam mais bem representadas? O propósito deste livro é mostrar como essas perguntas foram respondidas pelos responsáveis por organizar o sistema político brasileiro, oferecendo um panorama da rica história eleitoral do Brasil. Sempre que possível, procurei situar a experiência brasileira em relação ao quadro mais amplo de democratização das instituições vivenciado por outros países. OBRAS SOBRE ELEIÇÕES quase sempre tratam de dois assuntos. Algumas se preocupam em descrever as campanhas eleitorais com ênfase nas estratégias, alianças e em eventos que conduziram alguns candidatos à vitória e outros à derrota. Outras buscam entender o comportamento dos eleitores: que fatores influenciaram na decisão por determinado partido ou candidato? Por que os eleitores não foram votar? Já este volume não aborda campanhas nem comportamento eleitoral. Seu objetivo é apresentar o quadro mais geral que precede a entrada dos atores (eleitores e candidatos) na cena eleitoral: quem pode ser eleitor, quantos realmente se cadastraram para votar, qual o processo de votação utilizado, que sistema eleitoral foi empregado, que mecanismos foram adotados para eliminar as fraudes e outras práticas de adulteração da vontade do eleitor. Eleições no Brasil se divide em seis capítulos, que cobrem determinadas fases da história política brasileira: Império (1824-89); Primeira República (1889-1930); anos 1930 e Estado Novo (1930-45); da democratização ao golpe de 1964 (1945-64); regime militar (1964-85); democracia pós-1985 (1985- 2010). Cada capítulo se subdivide em cinco seções com os mesmos títulos. Apesar de os temas tratados nas seções terem conexão entre si, achei que a segmentação facilitaria a leitura. A primeira seção traz um quadro geral das eleições em relação ao sistema político mais amplo. A segunda apresenta as regras que definiam quais cidadãos teriam o direito de voto e quais estariam excluídos. A terceira seção trata do alistamento e da estatística eleitoral, pois tão importante quanto conhecer a definição de cidadania política é saber como os eleitores eram efetivamente registrados para votar e quantos se alistavam. A quarta aborda os diversos sistemas eleitorais utilizados nas eleições para os cargos em disputa – os utilizados nas eleições para a Câmara dos Deputados recebem destaque, por conta da sua importância na história eleitoral brasileira. A quinta seção mostra como se dava o processo de votação propriamente dito, com ênfase em três aspectos: a manifestação do voto (cédula), o sigilo do voto e as fraudes eleitorais. Minha pesquisa baseou-se em diversos tipos de fontes, com ênfase em três: legislação eleitoral; estatísticas oficiais com os resultados das eleições; e avaliações sobre o sistema representativo realizadas pelos atores de cada período. Usei inúmeras fontes secundárias, particularmente trabalhos de cientistas políticos e de historiadores que estudaram a história das eleições brasileiras e de autores estrangeiros que fizeram estudos semelhantes em outros países. A legislação eleitoral brasileira é volumosa e detalhista. Um levantamento do começo dos anos 1990 compilou centenas de decretos, leis, textos constitucionais (sem contar a extensa legislação emitida pelo TSE).2 Minha desconfiança é que nenhum outro país tenha uma legislação eleitoral tão ampla. Não é tarefa das mais simples navegar nesse cipoal. Muitas vezes descobri mudanças decisivas na forma de realizar as eleições em trechos inesperados. Obviamente, em um livro como este é impossível não recorrer com frequência à legislação. Tentei, porém, não sobrecarregar o leitor com detalhes particulares, como as datas em que a legislação foi promulgada e os números das leis, deixando essas informações para as notas apresentadas no fim do livro. Infelizmente, a estatística eleitoral brasileira não é tão pródiga quanto a legislação sobre o tema. Para os mais de cem anos de eleições que englobam o Império e a Primeira República, praticamente não existem dados organizados e confiáveis em âmbito nacional. As causas devem ser buscadas na descentralização do processo de votação e de apuração e na ausência de um órgão nacional responsável por coletar e sistematizar esses dados. Somente na República de 1946 o TSE passou a coletar (e publicar) os dados eleitorais com regularidade. Esse material pode ser encontrado nos antológicos volumes intitulados Dados estatísticos do Brasil e publicados ao longo dos anos 1950 e 1960. A estatística das eleições realizadas durante o regime militar é bem organizada, o que não é o caso das eleições realizadas entre o fim dos anos 1980 e o começo dos anos 1990, antes da informatização nacional dos resultados. O uso que faço dos dados eleitorais é basicamente circunscrito a duas questões: quantos eleitores efetivamente se alistaram? Qual o percentual do eleitorado sobre a população total (ou a população adulta)? Procurei, ainda, compilar as avaliações feitas pelos atores de cada período tendo em mente duas perguntas: como políticos, juristas e publicistas avaliavam as eleições? Que justificativas eles apresentaram para as reformas eleitorais? Esse foi um dos mecanismos que encontrei para reduzir a inevitável falácia do anacronismo (tendência a avaliar o comportamento e as instituições com valores contemporâneos).3 Preocupei-me em fundamentar com bibliografia e fontes boa parte das informações e argumentos aqui desenvolvidos. Todas as citações reproduzidas foram extraídas de depoimentos, avaliações e livros de atores que participaram da vida política de cada período. Optei por deixar nas notas as referências à literatura escrita pelos estudiosos contemporâneos, particularmente, a produzida por historiadores e cientistas políticos. Em que pese esse cuidado, meu objetivo não foi, contudo, escrever apenas para especialistas. Creio que o livro possa ser lido também por jornalistas, estudantes, políticos e todos os cidadãos que tenham curiosidade em conhecer um pouco mais da história das eleições brasileiras. 1. E I (1824-1889) LEIÇÕES NO MPÉRIO Preâmbulo: eleições antes da Independência Do século XVI ao começo do XIX, a vida administrativa de Portugal e de suas colônias era regulamentada por um conjunto de normas conhecido como Ordenações do Reino. A mais duradoura delas, as Ordenações Filipinas, de 1603, que vigorou durante o período colonial brasileiro, trazia um segmento específico sobre as eleições dos diversos cargos para a administração das vilas e cidades.1 De acordo com o título LXVII do livro I, os “cargos de governança” das vilas preenchidos por meio de eleições eram os de juiz ordinário, vereador e procurador.2 Os juízes tinham a responsabilidade de julgar pequenos delitos e arbitrar sobre os conflitos. Aos vereadores cabia cuidar da manutenção da localidade. Os procuradores serviam como tesoureiros (onde não houvesse tais cargos) e cumpriam as deliberações dos vereadores.3 As eleições aconteciam a cada três anos (embora os mandatos durassem apenas um ano) e eram indiretas: os “homens bons” e o “povo” elegiam os eleitores, que, por sua vez, escolhiam os juízes, os vereadores e os procuradores. A expressão “homens bons” era utilizada para designar os membros da elite local. O homem bom precisava preencher certos requisitos: ter mais de 25 anos, ser católico, casado ou emancipado, ter cabedal (ser proprietário de terra) e não possuir “impureza de sangue”. Não é tão claro o que as Ordenações designavam como “povo”, mas pode se deduzir que fossem os homens livres que não pertencessem à categoria dos homens bons.4 Apenas os homens bons eram elegíveis para ocupar os postos da administração local. A eleição dos cargos de governança municipal era feita por intermédio de um curioso processo. No dia da eleição, os homens bons e o povo se reuniam. O juiz mais velho caminhava pelo recinto junto com o escrivão e requeria que cada presente elegesse, “em segredo”, o nome de seis eleitores. Os seis nomes anotados pelo escrivão que recebessem mais indicações eram designados eleitores. A seguir, os eleitores eram agrupados em duplas – que não podiam se comunicar entre si – e cada uma delas era responsável por elaborar uma lista de nomes (os róis) para ocupar os cargos de governança local. As listas eram, em seguida, recebidas pelo juiz mais antigo da cidade, a quem cabia uma tarefa
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