^'í^ •r Revista de I n f o r m a ç ã o Legislativa • • Brasília ano 34 nº 134 abril/junho – 1997 Subsecretaria de Edições Técnicas do Senado Federal Revista de Informação Legislativa FUNDADORES Senador Auro Moura Andrade Presidente do Senado Federal – 1961-1967 Isaac Brown Secretário-Geral da Presidência – 1946-1967 Leyla Castello Branco Rangel Diretora – 1964-1988 ISSN 0034-835-x Publicação trimestral da Subsecretaria de Edições Técnicas Senado Federal, Via N-2, Unidade de Apoio III, Praça dos Três Poderes CEP: 70.165-900 – Brasília, DF. Telefones: (061) 311-3575, 311-3576 e 311-3579 Fax: (061) 311-4258. E-Mail: [email protected] Diretor: Raimundo Pontes Cunha Neto REVISÃO DE ORIGINAIS Angelina Almeida Silva, João E. Belém, Joel P. da Costa e Wellington de A. Moreira REVISÃO DE PROVAS Alessandra da Silva Moreira, Eloisa N. de Moura Silva, Helena M. V. Silva e Maria de Lourdes Lima Rosa EDITORAÇÃO ELETRÔNICA Marcia Fernandes da Cruz Machado e Paulo Henrique Ferreira Nunes IMPRESSÃO Secretaria Especial de Editoração e Publicações CAPA Paulo Cervinho e Cícero Bezerra © Todos os direitos reservados. A reprodução ou tradução de qualquer parte desta publicação será permitida com a prévia permissão escrita do Editor. Solicita-se permuta. Pídese canje. On demande l´échange. Si richiede lo scambio. We ask for exchange. Wir bitten um Austausch. Revista de Informação Legislativa / Senado Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas. - - Ano 1, n. 1 ( mar. 1964 ) – . - - Brasília: Senado Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas, 1964– . v. Trimestral. Ano 1-3, nº 1-10, publ. pelo Serviço de Informação Legislativa; ano 3-9, nº 11- 33, publ. pela Diretoria de Informação Legislativa; ano 9- , nº 34- , publ. pela Subsecretaria de Edições Técnicas. 1. Direito — Periódico. I. Brasil. Congresso. Senado Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas. CDD 340.05 CDU 34(05) Revista de Informação Legislativa Brasília · ano 34 · nº 134 · abril/junho · 1997 Rogério Soares do Nascimento Considerações sobre o tráfico de armas em razão do advento da Lei nº 9.437, de 1997. 5 Gilmar Ferreira Mendes O Poder Executivo e o Poder Legislativo no controle de constitucionalidade 11 José Carlos de Magalhães Reconhecimento e execução de laudos arbitrais estran- geiros 41 Álvaro Melo Filho Juridicidade dos sorteios eletrônicos pela TV a partir de ligações telefônicas usando o prefixo 0900 51 Márcio Nunes Aranha Segurança jurídica stricto sensu e legalidade dos atos administrativos: convalidação do ato nulo pela imputação do valor de segurança jurídica em concreto à junção da boa-fé e do lapso temporal 59 José Matias Pereira O processo de acupação e de desenvolvimento da Amazônia: a implementação de políticas públi- cas e seus efeitos sobre o meio ambiente 75 Arnoldo Wald O direito como instrumento catalisador do desen- volvimento das relações econômicas entre a França e o Brasil 87 Elaine de Almeida Passos Da impossibilidade jurídica de exploração da ativida- Loureiro e Peter de de de capitalização por entes estatais 95 Paula Pires Inocêncio Mártires Coelho A criação judicial do direito em face do cânone herme- nêutico da autonomia do objeto e do princípio cons- titucional da separação dos poderes 99 Angela Cristina Pelicioli A Fazenda Pública e a antecipação da tutela 107 Fábio Maria De-Mattia Droit de suite ou direito de seqüência das obras in- telectuais 117 Marçal Justen Filho Propostas de alteração do Anteprojeto de nova Lei de Licitações 123 Eduardo Talamini O conteúdo do saneamento do processo em Portugal e no direito brasileiro anterior e vigente. 137 Alvaro Lazzarini Sanções administrativas ambientais 165 Ivan Lira de Carvalho Decisões vinculantes 175 Erasto Villa-Verde Filho A estabilidade no serviço público em face da proposta do governo “FHC” de “flexibilizá-la” 185 Dilvanir José da Costa A execução das obrigações de dar, fazer e não fazer no direito brasileiro e no direito comparado 201 Paulo Affonso Leme Machado Informação e participação: instrumentos necessários para a implementação do Direito ambiental 213 Gladston Mamede Hipocrisia: o mito da cidadania no Brasil 219 Ivo Dantas Direito Comparado com Ciência 231 Teori Albino Zavascki Planos econômicos, direito adquirido e FGTS 251 Ricardo Perlingeiro Mendes da A eficácia ex nunc da naturalização e a extradição de Silva brasileiro 263 René Ariel Dotti O interrogatório a distância: um novo tipo de cerimônia degradante 269 José Rossini Campos do Couto Direito concreto? A criança e o adolescente na Ca- Corrêa pital Federal 275 Jorge Rubem Folena de Oliveira O Estado empresário. O fim de uma era 297 Considerações sobre o tráfico de armas em razão do advento da Lei nº 9.437, de 1997 ROGÉRIO SOARES DO NASCIMENTO SUMÁRIO 1. Introdução. 2. Criminalidade mercantil. 3. Inovações da Lei nº 9.437/97. 4. Competência. 5. Crime contra a segurança nacional. 1. Introdução A recente aprovação de lei criminalizando o porte de armas levou aos meios de comu- nicação de massa um tema que não é novo e vem sendo cada vez mais debatido. Sempre que se dirige o foco da atenção ao aumento progressivo da criminalidade, vem à tona o problema do tráfico de armas. O comércio ilegal de armas e acessórios destinados a combate, tais como explosivos, munições, coletes à prova de balas e silenciosos, destaca-se, entre as muitas formas de “tráfico”, pela antigüidade da sua prática, sem dúvida, mas também, e principalmente, pelo seu efeito multiplicador da violência. No entanto, um comportamento que agride a sociedade tão ostensivamente foi, por muito tempo, negligenciado na legislação penal brasileira. O interesse de armar jagunços de outrora, os seguranças de hoje, levou à tole- rância das elites com o mercado da morte. Assim, a posse e o comércio de armas nacionais, à margem da lei, eram usualmente tratados como simples contravenção, e a compra e venda de armas estrangeiras, apenas como contrabando. A inovação trazida pela Lei nº 9.437/97, porém, não esgota a questão. O comércio ilegal Rogério Soares do Nascimento é Mestre em de armas, reconhecido como um dos principais Direito pela PUC/RJ, Professor da Universidade problemas de segurança pública no país, merece Estácio de Sá – RJ e Procurador da República no uma reflexão mais detida. Rio de Janeiro. Brasília a. 34 n. 134 abr./jun. 1997 5 2. Criminalidade mercantil globalização do crime organizado e a associação das redes voltadas para a prática A criminalidade mercantil1 – aqui signifi- de delitos econômicos com a criminalidade cando qualquer atividade comercial conside- violenta tradicional exprimem-se de forma rada socialmente lesiva ou perigosa e, por isso, acentuada na ação das quadrilhas de reprimida com sanções penais – nasceu com o traficantes de armas. Esses laços acabam por comércio. É milenar. Na sua essência, trata-se fazer multiplicar esse comércio da agressi- de um fato econômico, porém, com reflexos no vidade, tornando-o banal. campo criminal. Se existe demanda, se há mercado, alguém terá a ousadia de oferecer o A banalização, por sua vez, leva a que qual- produto, mesmo violando as leis. quer pessoa tenha acesso fácil a armas A satisfação de necessidades pela troca, base modernas, inclusive armamento militar com dessa espécie de crime, permite infinitas grande poder de destruição. Com isso, o arsenal possibilidades de realização, o que faz árdua a bélico das quadrilhas urbanas no Brasil tarefa de preveni-los e reprimi-los. Além disso, (traficantes de drogas e seqüestradores, em os delitos mercantis sempre envolvem um especial) já se revela uma ameaça à sobrevi- grande número de agentes: as pessoas que vência do Estado Democrático de Direito. Eis fazem circular as mercadorias ilícitas. E, como aí, também, um dos principais fatores da proli- toda atividade econômica, costuma ser feração de incidentes com vítimas de balas desenvolvida em moldes empresariais. Não é perdidas3, um foco permanente de intranqüi- só; essa espécie de criminalidade, como regra, lidade, obra de uma espécie de terrorismo é organizada2 e, a exemplo do capital que a casual, despido de motivação política direta, sustenta, desconhece fronteiras geopolíticas. mas político nas suas conseqüências. Por outro lado, também não se pode deixar de chamar atenção para o fato de que o crime de mercado, independentemente da sua raiz 3. Inovações da Lei nº 9.437/97 econômica, muitas vezes está associado à Centrando o foco da análise nos aspectos violência: seja na disputa entre rivais e na jurídico-criminais do problema, pode-se partir sustentação dos impérios clandestinos; seja em da situação mais elementar, a posse ilegal de conseqüência da própria mercadoria fornecida, armas, cada vez mais corriqueira, à medida que como é o caso do comércio de entorpecentes e, a espiral da violência no campo e nas cidades em particular, do tráfico de armas, tema destas vai assumindo contornos dramáticos de uma reflexões. “guerra civil” implícita e dispersa. Algumas das características mais evidentes da macrodelinqüência deste fim de milênio: a Agora a situação está prevista no artigo 10 da nova lei4. Circulam entre nós, sem embaraço, 1 Conforme doutrina alemã, o direito penal de forma ameaçadora, armas e mais armas, econômico trata das infrações penais que afrontam algumas automáticas ou semi-automáticas; e, a ação interventora e reguladora do estado na aquele que as detém, fabrica, compra e vende, economia; ameaça ou lesa bens jurídicos supra- aluga, transporta ou empresta sem autorização individuais ou sociais; ou ataca bens jurídicos novos e, fora de qualquer controle do poder público, de expressão patrimonial, sem exclusão dos delitos patrimoniais clássicos; abordando, portanto, desde comete crime punido com pena de um a dois crimes tributários e financeiros, até crimes patri- anos de detenção, quando a arma é de uso moniais comuns ou cometidos no exercício de uma permitido, ou de dois a quatro anos de reclusão, atividade econômica. Entre estes últimos quando a arma é de uso restrito ou proibido, destacam-se os delitos mercantis. 2 Neste estudo, crime organizado exprime a 3 O número de incidentes registrando vítimas associação estável entre dois ou mais grupos mobi- de balas perdidas, muitas crianças e algumas vítimas lizados para a prática de ilícitos, onde cada sociedade fatais, no Rio de Janeiro, vem crescendo assustado- preserva sua autonomia, tanto operacional quanto ramente e tem merecido amplo espaço na imprensa. de propósitos, dividindo tarefas predeterminadas, a Matéria publicada na edição do Jornal do Brasil, partir de estratégias comuns, as quais prevêem de 14/7/96, computava 102 atingidos, em um mecanismos de reprodução da própria engrenagem retrospecto de dois anos e meio. delituosa, conforme sustentado no trabalho “A 4 Antes uma tal conduta caracterizava mera investigação do crime organizado no cenário da contravenção, sujeitando o indivíduo à prisão comunicação em redes informatizadas”, escrito em simples de 15 dias a seis meses ou multa. Art. 19 da conjunto com a Dra. Silvana Batini César Góes. LCP. 6 Revista de Informação Legislativa cabendo à União regulamentar as hipóteses de pouco relevante, já era criminoso, quando a permissão, restrição e proibição do uso5. disponibilidade sobre a arma, munição ou outro artefato bélico dava seqüência a um ingresso Também incide na pena mais grave o agente clandestino. que oculta os sinais de identificação da arma, Como se pode perceber, o exato enquadra- possui, detém, fabrica ou usa explosivos, sem mento legal da situação antes descrita leva à autorização, e todo aquele que cometer um dos necessidade de solucionar o aparente conflito crimes previstos na Lei nº 9.437/97 depois de estabelecido entre os crimes de contrabando e já ter sido condenado por tráfico de drogas. Por de receptação, (artigos 334 e 180, do Código outro lado, a lei recém-aprovada equipara ao Penal, respectivamente), e os tipos introduzidos crime de porte ilegal a omissão das cautelas pela nova lei, o que não é motivo de preocupação. necessárias a impedir o acesso de crianças ou As alíneas acrescidas ao artigo 334 e o adolescentes a armas de fogo; o emprego de disposto no artigo 180 tratam de diferentes arma de brinquedo no cometimento de outros formas de receptação, ligadas por uma relação crimes e o disparo em local habitado ou público. de gênero e espécie8. A receptação especial do Ao lado do tipo múltiplo que está previsto artigo que incrimina o contrabando e o desca- no caput do artigo 10 e das figuras equiparadas minho só ocorre quando se observa, no do parágrafo primeiro, encontram-se, nos comportamento do agente, um especial fim de parágrafos e incisos seguintes, formas quali- agir: intuito de comércio. Fora dessa hipótese ficadas (suprimir marca, alterar características, singular, não há nenhum fundamento para manusear explosivos) e até um efeito penal de negar vigência e aplicação ao artigo que trata reincidência específica, incluído, em meio às da receptação comum. condutas criminosas, por deslize de técnica As novas figuras, por seu lado, consti- legislativa. Por fim, a circunstância do agente tuem-se modalidades especiais de crime contra de qualquer dos crimes previstos no artigo antes a paz pública, que se consumam pela simples mencionado ser servidor público é causa do posse da arma, não autorizada, independen- aumento das penas, na metade6. temente da procedência, do modo pelo qual foi A questão, porém, não se esgota aí. Quando adquirida ou da finalidade a qual se destinava. as armas são estrangeiras e foram introduzidas A aplicação do princípio da especialidade basta ilegalmente no território nacional, o quadro se para afastar a incidência da receptação, comum complica. Está configurado contrabando7. O ou especial, nas hipóteses de aquisição, posse legislador preocupou-se em esclarecer que as ilícita, guarda ou revenda de armas, indepen- novas hipóteses de incriminação não eximem dentemente de qualquer indagação sobre os fins da pena por contrabando ou descaminho, do agente. Sempre que se estiver tratando de quando cabível, mas o fez sem apuro de estilo. Além do mais, adquirir, receber ou ocultar armas e outros artefatos bélicos, aplica-se a Lei produto de crime configura receptação. Esse nº 9.437/97: quando de mercadoria de outra comportamento, difundido e aparentemente natureza, impende apenas verificar a origem do bem: se nacional, é caso da receptação 5 Enquanto não for aprovado um novo regula- comum; se estrangeira, é caso de contrabando mento, permanece válido o Decreto nº 55.649, de ou descaminho. 28/01/65 (conhecido como R-105), que, no seu art. 160, já classificava armas, acessórios, petrechos e munições em de “uso proibido” ou “uso permitido”, 4. Competência considerando de uso proibido aquelas vedadas a civis em geral ou pessoas despidas de munus publicus, Um outro aspecto interessante, neste cotejo mais exatamente equipamento bélico equivalente ou de tipos penais, vem a ser o da competência. superior ao usado pelas Forças Armadas no Brasil ou estrangeiras. 8 Decisão do STJ em Conflito de Competência. 6 Outras, entre as condutas tornadas crime pela Acórdão publicado no DJ de 15/8/94, a despeito de nova lei, também eram hipótese de contravenção. pautada em voto sucinto, toca na questão in verbis: Art. 18 e parágrafos do art. 19. “A posse de arma de importação proibida caracteriza 7 Note-se que a importação de armas é possível a figura do art. 334, § 1º, d, do Código Penal, abran- desde que precedida de autorização do órgão gente da receptação dolosa de mercadoria contra- controlador, na esfera do Ministério do Exército. O bandeada ou descaminhada. Há uma relação de desrespeito a essa condição equivale à proibi- gênero para espécie entre as figuras dos arts. 180 e ção, caracterizando contrabando e não simples 334, § 1º, letra d, do CP. Conflito conhecido para descaminho. declarar-se a competência da Justiça Federal. Brasília a. 34 n. 134 abr./jun. 1997 7 Quando se está diante daquele que foi Parece acertada a orientação da mais alta responsável direta ou indiretamente pela corte federal, pois a autonomia do crime de entrada de armas ou munições estrangeiras no receptação, que ninguém contesta e diz respeito país, de forma clandestina, não resta dúvida. tanto ao crime antecedente quanto a eventuais Há contrabando, crime de competência da crimes que vierem a ser cometidos com o uso Justiça Federal, uma vez que presente interesse do produto receptado, sejam eles quais forem, direto da União, responsável pelo “controle é de procedimento. Não há razão para condi- alfandegário”. Nas hipóteses de receptação cionar a persecução de um ao esclarecimento especial, que, como foi dito, já não se aplica do outro, nem se estabelece conexão entre as quando o produto do contrabando é arma ou ações decorrentes de cada conduta. munição, também não há dúvida. A competência Contudo, vale registrar que alguns julgados para processar e julgar é da Justiça Federal. vinham afirmando existir conexão entre o No entanto, ainda persiste alguma perplexidade quando configurada a receptação comum. tráfico de drogas e a receptação de arma contrabandeada quando a apreensão se dá num Ora, o art. 180 do CP incrimina a receptação mesmo momento, prevalecendo, nessa hipótese, dolosa própria na modalidade de aquisição, a competência da Justiça Federal, na forma da crime material que se consuma com o ingresso Súmula 122 do STJ, a qual, reproduzindo a na disponibilidade da coisa. Trata-se de delito pluriofensivo que tutela, por decorrência lógica, antiga Súmula 52 do extinto TFR, assim o mesmo bem jurídico tutelado pelo tipo incri- orienta: minador infringido no crime antecedente, “compete à Justiça Federal o processo e quase sempre, mas não necessariamente, o julgamento unificado dos crimes conexos patrimônio. Cabe notar que a norma do artigo da competência federal e estadual, não 180 não visa tutelar o domínio da res obtida se aplicando a regra do art. 78, II, a, do ilicitamente; procura, isto sim, evitar que se Código de Processo Penal”. consolide um proveito calcado em injusto. A discussão não é bizantina. As Justiças Não obstante, há divergências quanto aos Federal e Estaduais possuem estrutura e perfil efeitos da natural autonomia da receptação, de atuação diferentes, sendo comum propostas relativamente ao crime anterior, no tocante à de ampliação da competência federal em definição da competência. Com este fundamento matéria penal, ao argumento de que federalizar e também porque impossível, no caso concreto significa dar maior eficiência à persecução, o que estava sob exame, processar em conjunto que é falso. A estrutura do Judiciário dos estados relativamente ao contrabando antecedente, o é muito maior e, portanto, os processos que TRF da 2ª Região entendeu por afirmar correm na Justiça Estadual são até mais competente à Justiça Estadual9. A orientação céleres11. majoritária no STJ, porém, aponta para a Com o novo tratamento dado ao tema, a competência da Justiça Federal, afirmando ser solução é mais simples. Insista-se, os crimes apenas relativa a autonomia da receptação10. descritos na Lei nº 9.437/97 visam à tutela da 9 Recurso Criminal nº 94.02.19041-4/RJ “I- A paz pública; portanto, na ausência de interesse apreensão de armas e munições, inclusive de origem federal por proteger, nada justifica o seu estrangeira e privativa das forças armadas. II- processo e julgamento senão pela Justiça Denúncia com base nos arts. 180, 29 e 71 do CPB Estadual, melhor aparelhada e mais afeita à não é suficiente para firmar a competência da Justiça matéria. Ademais, a atividade de polícia Federal. III- Competência da Justiça Estadual, por administrativa, que permanece a cargo da ausência de elementos para a persecução criminal relativa ao art. 334 do CPB e por ser a receptação 11 A propósito, merece registro um alentado delito de conteúdo autônomo. IV- Recurso impro- estudo comparativo da estrutura do judiciário no vido.” Estado do Rio de Janeiro, na esfera criminal, que 10 Conflito de Competência nº 15.165 (reg. 95/ integra decisão proferida pelo Exmo. Sr. Juiz Federal 0048309-2) “COMPETÊNCIA. CONTRABANDO Dr. Willian Douglas Resinente dos Santos, na Ação E RECEPTAÇÃO DE ARMAS ESTRANGEIRAS. Penal nº 95.0033156-0, onde se observa que - Em face da existência de anterior delito de contra- nenhuma das 44 Varas Criminais na Capital do bando, da competência da Justiça Federal, compete Estado do Rio de Janeiro, aqui incluídas as Varas a esta julgar e processar delito de receptação da arma Regionais, possuía, em março de 1995, mais de 400 contrabandeada que, na espécie, é delito de ações penais em andamento, enquanto as 3 Varas autonomia relativa. - Conflito conhecido.” Rel. Min. Federais especializadas em matéria criminal William Patterson. Julg. 19/10/95. possuíam uma média de 1.400 ações em curso. 8 Revista de Informação Legislativa União, nada altera com relação à objetividade 9.437/97. Todavia, por vezes a internação, o jurídica dos tipos penais recém-introduzidos. fabrico, a comercialização, a posse ou a manu- tenção de armamento em depósito põem em risco aqueles valores supremos, afetando a 5. Crime contra a segurança nacional segurança nacional. Para verificar quais Por último, e a despeito da inovação circunstâncias objetivas fazem presente tal risco legislativa, não se pode deixar de reconhecer ou lesão, o intérprete deve cercar-se de critérios que, em determinadas situações, o tráfico de igualmente objetivos, tais como: a quantidade, armas ainda consuma crime contra a segurança a espécie, a destinação do armamento e a nacional, na forma do disposto no artigo 12 e situação histórica concreta no momento do parágrafo da Lei nº 7.170, de 14/12/83, punido crime. com pena de 3 a 10 anos de reclusão. Para Não se pode fugir da defesa do Estado enfrentar o conflito aparente de normas que a Democrático por constrangimentos teóricos ou superposição dos tipos descritos na Lei de preconceitos. Vinte anos de regime militar Segurança Nacional com os demais que foram levaram a associar a segurança nacional a uma objeto de comentário sugere, é necessário matriz teórica de viés autoritário. Entretanto, explicitar a objetividade jurídica das condutas o aplicador do direito não está vinculado ao incriminadas. É preciso indagar a respeito de sentido original do texto legislativo. Cabe ao qual bem jurídico posto sob tutela é violado por intérprete, dentro da concepção cujas bases este ou aquele comportamento. Isso com o foram lançadas ainda no século passado por auxílio dos artigos 1º e 2º da citada LSN. Salielles13, revelar o sentido atual da lei, que Os dois primeiros artigos da Lei nº 7.170/ não se confunde com as intenções do legislador. 83 indicam os valores protegidos pela norma, A lei deve ser aplicada segundo o senso de que coincidem, como não poderia deixar de ser, justiça contemporâneo ao momento da sua com o elenco de princípios fundamentais do atuação; o direito deve ser atualizado segundo Estado: a integridade territorial e a soberania a finalidade social da norma e as novas nacional; assim como o regime representativo exigências do bem comum. e democrático, a Federação e o Estado de Direito, e a própria pessoa dos Chefes dos O Supremo Tribunal Federal cuidou de Poderes da União. Quando esta é a motivação apontar as linhas básicas a partir das quais se do agente ou, independentemente desta, quando pode delimitar o conceito de Segurança estes valores encontram-se objetivamente Nacional, sem subjetivismo. No RE nº 62.739, ameaçados de lesão, não importa se a conduta colhe-se, em voto do Ministro Aliomar lesiva ou perigosa corresponde também a outras Baleeiro, relator, a seguinte lição: figuras penais, estará em cheque a segurança “o conceito de segurança nacional não é nacional12. indefinido e vago, nem aberto àquele O caput do art. 12 da LSN descreve hipótese discricionarismo do Presidente ou do que coincide com aquelas do art. 334 do CP. A Congresso. Segurança nacional envolve importação desautorizada de armamento ou toda a matéria pertinente à defesa da munição pode configurar apenas contrabando. integridade do território, independência, O parágrafo único do mesmo art. 12 descreve sobrevivência e paz do país, suas ins- condutas semelhantes às descritas na Lei nº tituições e valores materiais e morais contra ameaças externas ou internas, 12 Há uma certa linha de interpretação do artigo sejam elas atuais ou imediatas ou ain- 2º da LSN, segundo a qual só estaria caracterizada da em estado potencial próximo ou a lesão nas hipóteses de explícita motivação política remoto”. por parte do agente, interpretação que parece Noutro julgado digno de lembrança, o subordinar o inciso II ao inciso I, deixando a solução dos conflitos envolta em densa névoa subjetiva. Ministro Luiz Gallotti observava que tal Trata-se, a nosso sentir, daquilo que com propriedade conceito “não é imutável e, sim, varia no tempo foi chamado de “interpretação retrospectiva”, pelo eminente jurista José Carlos Barbosa Moreira; 13 Raymond Salielles, no Préface do Méthode procura-se interpretar o texto da LSN negando d’interprétation et sources en droit privé positif de qualquer inovação relativamente às malsinadas François Geny, cunhou a síntese do método histórico- normas do longo período de exceção pelo qual passou evolutivo de interpretação do direito: “Par le Code o Brasil. civil, mais au-delà du Code civil”. Brasília a. 34 n. 134 abr./jun. 1997 9
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