Jacques Stéphen Alexis Do realismo maravilhoso dos haitianos Do realismo maravilhoso dos haitianos Jacques Stéphen Alexis Tradução: Normélia Parise ALEXIS, Jacques Stéphen. Prolégomènes à un manifeste du réalisme merveilleux des Haïtiens. Dérives. Montréal, n.12, 1970. p.245-271. Comentário: Maximilien Laroche (Universidade Laval) Tradução: Zilá Bernd (UFRGS) É com emoção que saúdo, em nome dos escritores e artistas haitianos, nossos irmãos e nossas irmãs do Mundo Negro que assistem ao Primeiro Congresso dos escritores, artistas e intelectuais negros. Não somente os escritores e artistas Haitianos, mas também toda a imprensa haitiana, toda a intelectualidade haitiana ficaram profundamente interessados por esta confrontação histórica entre os homens de cultura de origem negra. Depois que o hebdomadário Reflets d´Haïti, o primeiro em nosso país, falou do Congresso e popularizou sua idéia, toda a imprensa haitiana, durante semanas, fez campanha, estudou e discutiu a questão e criticou a forma da participação haitiana. A imprensa haitiana, cotidiana ou periódica, assim como a maior parte de nossos intelectuais deploraram, particularmente, o fato de que não se orientou no sentido da constituição de uma delegação ampla que seria o reflexo de uma escolha de nossos próprios intelectuais. A discussão foi benéfica pois nos valeu esta delegação representativa sob vários aspectos. Apesar de tudo, apesar da discussão, apesar do desejo nitidamente expresso de proceder da maneira anteriormente definida, é preciso dizer que não houve condições de tempo para que uma organização surgisse e tomasse em mãos a formação da delegação e o financiamento de sua viagem. A intelectualidade haitiana queria que uma grande campanha de popularização das idéias diretrizes e dos objetivos do congresso fosse organizada em escala nacional, na capital como na província. Ela queria que se explicasse às largas camadas da população a importância para o povo do Haiti em combater lado a lado com os povos irmãos do Mundo Negro e com todos os outros. Ela queria que toda a intelectualidade haitiana sem exclusão fosse representada pelos melhores de seus escritores, por seus romancistas, por seus poetas, pelas suas pessoas do teatro, por seus jornalistas, por seus etnólogos, por seus pintores, por seus escultores, por seus músicos, por seus cantores, por seus dançarinos a fim de que, ao retornar ao Haiti, eles pudessem expor a seus meios respectivos o que fazem os intelectuais de origem negra e a maneira com que julgam os esforços haitianos. Ela queria enfim que o financiamento da viagem de seus delegados fosse a pequena contribuição de cada haitiano. Que o governo tivesse, no final das contas, que financiar a viagem desta delegação, talvez incompleta mas bem representativa de setores importantes, delegação com a qual eu colaboro, aliás, dentro de um espírito o mais fraternal, que o governo, dizia eu, tenha se encarregado, isto demonstra o interesse que teve a intelectualidade haitiana por este Congresso. Reuniões e discussões importantes e numerosas foram realizadas este ano em torno dos temas deste Congresso, assim como para precisar a situação e as tarefas da Cultura Haitiana em função da cultura de outros povos irmãos. Assim, tendo que permanecer em Paris na época em que ocorria o Congresso, numerosos escritores e artistas haitianos concederam-me a delicada honra de apresentar os pontos de vista dominantes entre nós sobre o que deve ser a orientação da Literatura e da Arte haitianas em função das origens, da história, da geografia e das lutas de nosso povo. A comunicação que submeto é, em grande parte, um trabalho pessoal, mas ela foi largamente discutida e aprovada por numerosos escritores e artistas haitianos. Neste sentido, devo agradecer o Grupo Folclórico Simidor, alguns membros do Foyer das Artes Plásticas, o Grupo Culture, o Teatro d´Haïti e sua Troupe de Atores Populares pela colaboração em algumas seções desta comunicação; devo também agradecer a todos os escritores e intelectuais haitianos que, pelo aporte crítico ou considerações metodológicas, permitiram-me melhorar meu trabalho. É pelo fato da grande massa dos criadores haitianos produzirem em uma via realista, uma via realista que lhes é certamente própria, que nós pensamos ser útil esclarecer o que necessita de nós uma arte haitiana nacional em sua forma expressiva tanto quanto humana, e universal por seu conteúdo estético. Tal é a origem desses Prolegômenos para um Manifesto do Realismo Maravilhoso dos Haitianos. Antes de passar à exposição desta comunicação, permitam-me agradecer de todo coração a grande revista dos intelectuais de origem negra Présence Africaine, graças a qual este Congresso reuniu-se. Não podem nos acusar de Jacques Stéphen Alexis Do realismo maravilhoso dos haitianos particularismo negro quando a cultura dos povos negros como os povos eles mesmos são ainda vítimas do racismo, do denegrimento e do paternalismo de um certo Ocidente nostálgico de um passado revolto. Porém, isto exige também que definamos claramente nossas proposições, aproximando as realidades que as fundamentam. Assim, posso vos dizer que todos os intelectuais conscientes e combativos da República do Haiti querem e acreditam na fraternidade das armas culturais dos povos negros do Mundo no âmbito da fraternidade de luta de todos os povos da Terra. PROLEGÔMENOS PARA UM MANIFESTO DO REALISMO MARAVILHOSO DOS HAITIANOS 1 - Introdução Todos os intelectuais de nosso tempo sentem-se, de modo mais ou menos confuso, solidários do homem e solidários entre si. Dentre eles, os mais conscientes e os mais clarividentes da missão da Arte estão convencidos de que sua ação de forma dispersa é um entrave ao desenvolvimento de uma arte consciente, radiante, verdadeiramente a serviço do homem. A eles parece que não basta mais apoiar-se em casos particulares, quando, por exemplo, a liberdade do artista é ameaçada, mas que é preciso projetar a luz da crítica sobre a estética. Eis o que explica este encontro dos intelectuais negros. Neste século em que os homens já viajam na velocidade do som, em que as idéias ultrapassam as fronteiras sem passaporte, este século da maior descoberta energética de todos os tempos - descoberta que permite tantas liberações e tantos avanços ainda ontem inconcebíveis -, este século em que se iniciou a erradicação definitiva da injustiça e da exploração, este século em que todas as raças, todos os povos, todas as pátrias lançam-se impetuosamente na conquista de um nível de vida enfim humano, este século no qual igualdade e progresso estão na ordem do dia, é natural que o conteúdo fundamental das obras de arte tende a abarcar o conjunto dos problemas que se colocam ao homem do todo lugar. Há hoje, conseqüentemente, um encontro inevitável da arte de todos os povos no plano do conteúdo estético: o amor do real, da natureza e da vida, amor da liberdade, da justiça e da verdade, amor do homem acima de tudo, em uma palavra, humanismo novo. É claro que o artista, em todos os tempos, foi uma testemunha da vida da cidade, ele reproduziu seus tipos e suas cenas essenciais, seus hábitos, seus costumes, suas crenças, sua moral, ele cantou suas belezas, lutas, dramas, o artista foi um professor do ideal, de coragem, um educador público, um poeta da esperança e do sonho colocados em antítese com as durezas e as feiúras do momento. Pôde-se dizer que o artista era uma harpa eólica que vibrava a todos os sopros; certamente isto não é mais suficiente. Não se trata somente de testemunhar do real e explicá-lo, trata-se de transformar o mundo, cada um trabalhando particularmente na esfera que lhe é própria, naturalmente. Trata-se de contribuir à eclosão do que nasce e se desenvolve, trata-se de contribuir à liquidação do que definha e constitui um entrave ao desenvolvimento do homem. O artista deve tomar partido, ele deve ser um combatente. É portanto útil que, ultrapassando a consciência individual de suas missões e tarefas, todos juntos, livremente, os artistas progressistas de um país, os únicos nos quais todo povo se reconhece, confrontem seus pontos de vista sobre as tarefas presentes da arte nacional em função da história de seu povo, de suas tradições, de suas tendências manifestas, de seus gostos, de suas esperanças, de seus sonhos, de suas certezas e de seus combates. É útil que seja montado um programa geral de trabalho, simples e concreto, ligado ao mesmo tempo às tradições artísticas nacionais, aos valores novos que nascem, ao futuro e ao homem de todo lugar. Este programa deverá, certamente, ser precisado em função das disciplinas particulares, mas importa, primeiramente, que as necessidades de toda a arte nacional sejam definidas globalmente, para a arte de escrever, para as artes cênicas, para as artes plásticas, para a música bem como para as outras disciplinas. O objetivo destes prolegômenos não é o de dar uma resposta que se queira completa e definitiva, mas somente provocar a discussão e contribuir à clarificação do programa geral de trabalho em função das realidades presentes mais evidentes e das perspectivas. Este trabalho é, portanto, um esboço, um défrichage preliminar e não um verdadeiro manifesto que só pode nascer de uma discussão aprofundada. Já que tudo indica que há uma maneira própria aos Haitianos na arte, que há atualmente uma Escola de Realismo Novo particular aos Haitianos, uma Escola que se procura e que se esboça pouco a pouco, uma Escola que começamos a chamar de Escola do Realismo Maravilhoso, esta contribuição apresentada diante dos intelectuais dos povos irmãos negros, poderia, graças ao aporte de todos, apressar a constituição desta Escola haitiana sob bases fundamentais claras. Jacques Stéphen Alexis Do realismo maravilhoso dos haitianos 2 - A cultura haitiana Sabe-se que no início do século XVI, alguns anos após a descoberta de Colombo e a invasão dos conquistadores, restava somente uma pequena parte do povo indígena Taïno do Haiti, o povo Chemès. Na verdade, após as lutas heróicas de Anacaona a Grande, A Flor de Ouro, música e poetisa, coreógrafa e bailarina de talento, tanto quanto chefe político resoluta, e as lutas de Caonabo e outros caciques indígenas, este povo fora dizimado e escravizado nas minas de ouro. Eles pereceram em massa devido aos maus tratos, ao duro trabalho ao qual não estavam habituados, aos suicídios coletivos aos quais se lançavam em seu desespero e às doenças importadas pelos espanhóis. O povo Chemès e a cultura local do qual era a expressão sobreviveram; cultura que se expressava através de uma técnica já avançada (cerâmica cozida em fogo aberto, trabalho do ouro, agricultura em montículos espaçados, construção de cassaves (bolo de farinha de mandioca), do milho, produção de cerveja mabi...), cultura que se expressava ainda através de uma religião animista (panteão dos deuses ditos xémès, clero individualizado de padres-butios, cerimônias precisas, etc...) que se expressava através de uma música, de cantos e de danças que executavam artistas especializados - os sambas - , uma pintura mural, uma escultura da pedra e em faiança revestida de uma película de estanho, do tipo maiólica como no México, etc... Agravando-se sem cessar a loucura do ouro, os Espanhóis começaram o Tráfico de negros para substituir os escravos índios debilitados. As primeiras revoltas aconteceram e foram conduzidas por um cacique, o grande e nobre cacique Henri; índios e negros tomaram em armas e refugiaram-se em nosso Bohoruco, nas vizinhanças de nossos lagos e de nossos altos cimos cobertos de florestas de pinheiros. Eles ali se defenderam vitoriosamente de tal forma que os Espanhóis tiveram que assinar com eles a paz. Foi lá que os índios e os negros revoltosos, esses "marrons", como eram chamados, - talvez esta palavra designava originalmente os mestiços de negros e de índios, os zambos - realizaram o sincretismo cultural taïno-africano, cuja realidade ilustraremos mais adiante com exemplos atuais. Era natural que nos "yucuyaguas", vilarejos dos rebeldes, se operasse uma fusão de técnicas de produção, a dos cantos e das danças, das artes plásticas, dos panteões de duas populações animistas. Muito tempo após a epopéia do cacique da Liberdade, o Bohoruco continuou sendo um refúgio para os escravos negros e os resíduos das populações Chèmes. Aliás, sabe-se que ao longo da grande população de escravos do século XVII, organizada sob a conduta do negro Padrejean, os mestiços zambos constituíam um elemento importante. Com a invasão dos bucaneiros e dos flibusteiros franceses, a França obteria uma colônia, uma colônia que ia, ela também, constituir um cliente para o comércio de "madeira de ébano". A cultura haitiana individualizou-se progressivamente ao mesmo tempo que a nação haitiana, no interior da sociedade escravagista dominicana. No curso de um longo amadurecimento histórico durante o qual os resíduos da população autóctone chèmes misturaram-se em São Domingos com os múltiplos elementos africanos trazidos pelo Tráfico (Mandingas, Bambaras, Ibos, Peuhls, Aradas, Congos, etc...) e também com alguns elementos europeus (principalmente franceses e espanhóis), a cultura haitiana desenhou-se progressivamente a partir do aporte decisivo africano, até o dia da independência - primeiro de janeiro de 1804, momento em que a nação haitiana e sua cultura em formação iam trilhar um desenvolvimento autônomo. O negro dito "bossale", isto é, recém introduzido na colônia, não importando sua origem, fundia-se progressivamente na comunidade dos negros ditos "créoles", isto é, nascidos no país. Estes negros "créoles" tendiam a unificar pouco a pouco o mosaico de elementos de cultura de origens diversas que eles haviam recebido. Eles criavam uma linguagem (o falar dos negros "créoles", o créole), cantos e danças comuns, uma música comum, contos, lendas e uma literatura oral que se ressentia naturalmente da incrível diversidade de aportes. A originalidade e a riqueza era muito grande, e tudo que era trazido misturava-se bem, pois, à exceção do aporte francês e ocidental, todos os aportes refletiam sociedades no mesmo estágio aproximado de desenvolvimento histórico. Estes aportes fundiram-se nas oficinas dos escravos com uma tal rapidez que até mesmo a religião unificara-se e tornara-se o reflexo das condições de existência próprias de todos os escravos da colônia, dada a longa sobrevivência das superestruturas ideológicas apesar do desaparecimento da base condicionante. Conquistada a independência, obtida uma relativa liberdade de movimento através do país, a fusão ia ainda acelerar-se no âmbito deste país onde quase tudo estava para ser reconstruído, pois a guerra libertadora impusera a destruição de todo o produto dos suores dos antigos escravos, todas as riquezas deste pequeno país que absorvia a metade do comércio exterior da França. É preciso não esquecer esta guerra de terra queimada, pois ela explica bem os atrasos que conheceu o país e em particular a lentidão com a qual as obras de cultura de valor universal apareceram nos primeiros passos desta nação que realizara a incrível façanha de obter a independência no exato momento em que as potências de rapina começavam a se lançar na conquista dos países menos desenvolvidos. Jacques Stéphen Alexis Do realismo maravilhoso dos haitianos O que é uma cultura, na verdade, senão, de um modo geral, o produto desta tendência que impulsiona os homens a organizarem os elementos de seu conhecimento do universo e da sociedade onde vivem, a organizá-los coletivamente, em função do passado e do presente recompondo uma imagem mais vasta que a aparência, imagem projetada em seu psiquismo, em seus atos, seus comportamentos e em todas as suas produções? Podemos, assim dizer, de acordo com o que precede, que mesmo as coletividades primitivas bem desenvolvidas e organizadas têm uma cultura. Uma cultura, entretanto, local. Quando as sociedades entram em um processo de formação de povo ou de nação, a cultura torna-se algo mais complexo, mais rico e mais diverso. Poderíamos, neste caso, dizer que a cultura é uma comunidade de psiquismo, de gostos, de tendências, de conceitos, expressando-se em todos os domínios da atividade humana, uma comunidade historicamente formada, mais ou menos clara, mais ou menos estável, uma comunidade resultando de uma herança psíquica e exteriorizando-se através de obras de beleza e de razão, em relação variável com o desenvolvimento das forças produtivas e com as relações sociais da sociedade que as produz. Se a sociedade considerada é ainda debilmente unificada em seu território, pode-se falar de cultura de povo (a cultura da Grécia antiga ou do Egito antigo, por exemplo) ou ainda de cultura nacional quando ela é a expressão de uma verdadeira nação em formação ou já formada (a cultura haitiana ou alemã, por exemplo). Seria bom, entretanto, cavar mais profundamente a realidade que esconde a palavra cultura para ter uma concepção viva do fenômeno. Pois, seguidamente, inclui-se no patrimônio de uma cultura nacional obras produzidas bem antes que se possa considerar a existência da nação em formação como algo adquirido. Vê-se então que quando falamos em cultura nacional, subentendemos a longa continuidade cultural de um território hoje ocupado por uma nação individualizada, não obstante as estruturas sociais diferentes e os estágios de desenvolvimento das forças produtivas que se sucederam. As obras de cultura têm, na realidade, uma vida muito longa, uma ressonância bem mais longa que a sociedade que as condicionou, ou que as tendências do espírito dos homens dos quais estas obras são contemporâneas. Em decorrência disso, a cultura é um dado que abarca toda a vida de um povo, desde os primórdios de sua formação, sua constituição progressiva, até sua organização moderna: a cultura é um devir incessante cujas origens se perdem na noite dos tempos, e cujas perspectivas esfumam-se na névoa do porvir. Isto significa dizer o quão consideramos estreitas as visões daqueles que resumem a cultura em algumas obras de arte e de literatura de valor e amplitude universais sem considerar o sentido do verdadeiro, do belo e do humano que não se traduziu ainda em obras conhecidos pelo mundo inteiro; muitas vezes estas concepções do belo são simplesmente incompreendidas deliberadamente. Uma cultura exterioriza-se, é claro, através de um conjunto de obras- testemunhos que ilustram aos olhos de todos a cultura em questão, mas não é somente a partir destas obras que um povo mostra a originalidade e a humanidade geral de seu aporte cultural. Permaneceremos fiéis, até mais ampla demonstração, à fórmula segundo a qual o povo, tomado em sua massa, é a única fonte de qualquer cultura viva; ele é de alguma forma a sua base, o fundamento do qual brotam os aportes dos homens de cultura; é preciso acrescentar que, muito seguidamente, estas projeções individuais de um sentido nacional do belo projetam-se de tal forma sobre as base que as condicionou que esta base é, ela própria modificada. Às vezes, as obras de cultura encontram-se claramente à frente da cultura da qual fazem parte. A oposição que alguns tentam estabelecer entre as formas trazidas pelos homens de cultura e as formas trazidas coletivamente pelas massas, prende-se à uma lógica absurda das categorias que se quer tornar estanques arbitrariamente. Mesmo quando um artista tenta justificar a originalidade de seu aporte por uma teoria de sua larva, a consciência deste artista é uma consciência social, uma consciência coletiva tanto quanto individual que retoma muitas vezes sem dar-se conta, as formas, os ritmos, as simbologias populares, sejam próximas, sejam velhas ou ainda muito longínquas. Para nós, a cultura de uma coletividade é um fato primeiro, embora a reprodução de obras artísticas universais - fato segundo - projeta-se sempre sobre a cultura em questão, a impulsiona para frente, e ilustra sua autonomia. Devemos então considerar todo o conjunto das manifestações de nossa atividade de povo testemunhando a autonomia cultural haitiana, e não uma parte de suas manifestações, as obras- testemunhos consideradas como universais por uma grande parte da humanidade. Em outras palavras, sem ousar pronunciar a palavra, somos forçados de considerar a existência de culturas superiores e de culturas inferiores e justificamos esta tendência manifesta no imperialismo cultural destes estados que obstinam-se em sufocar o aporte cultural de outros povos. É indiscutível que alguns povos contemporâneos produziram mais obras que outros, é ainda verdade que as culturas refletem, em uma medida variável, o desenvolvimento das forças produtivas das coletividades, mas quem, baseando-se nisso, ousará afirmar que a escultura de Praxíteles é inferior à escultura destes últimos cem anos? Entretanto, Praxíteles vivia em uma sociedade escravagista na qual as forças produtivas eram debilmente desenvolvidas! Para nós, uma obra de cultura é uma soma que testemunha para os humanos; é absurdo crer que uma cultura que legou dez mil obras conhecidas e reconhecidas é superior a uma cultura que teria legado somente cem. As culturas contêm necessariamente aspectos positivos e aspectos negativos, e qual seja o povo considerado, ele luta sempre para mostrar seu verdadeiro rosto, através das estruturas sociais inumanas e conjunturas desfavoráveis. As culturas de todos os povos são irmãs, irmãs de idades diferentes, mas irmãs. Jacques Stéphen Alexis Do realismo maravilhoso dos haitianos Estes são alguns dados a partir dos quais julgamos a cultura de nosso país. A cultura haitiana é uma cultura nacional, a de uma nação bem individualizada, embora ela tenha ainda muito caminho a percorrer , e nós o sabemos. Mas sabemos ainda que é uma grande e bela cultura, como o povo haitiano, grande e belo, apesar de viver em um pequeno território. É através dos esforços e das lutas que percorremos nossa estrada que é bem longa diante de nós, mais os escritores, artistas e intelectuais haitianos têm confiança em sua cultura e em seu povo. 3 - Os aportes constitutivos da cultura haitiana Na ocasião das remissões históricas precedentes, era possível dar-se conta que os aportes constitutivos da cultura haitiana eram em número de três: 1. O aporte indígena taïno chemès; 2. O aporte africano; 3. O aporte ocidental e mais particularmente francês. Freqüentemente, minimizamos o aporte taïno na cultura haitiana: é um erro. O primeiro campo cultural onde podemos ver o aporte taïno chèmes para a cultura haitiana é o da técnica. Todo mundo sabe que o tipo de habitat rural haitiano tem claramente o mesmo estilo do ajoupa chemès; a técnica de fabricação da cerâmica, da tessitura das redes de algodão, da fabricação de bolos de mandioca denominados de cassaves, da construção das pirogas denominadas boumbas, da produção de cerveja mabi; estas e diversas outras técnicas em uso atualmente provêm diretamente dos índios. O segundo campo onde encontramos a influência indígena é a religião vudu. É do conhecimento de todos o fato de que inúmeros instrumentos do culto desta religião, as pedras consagradas, os atributos dos Loas, certos cântaros ritualísticos (os govis) são muitas vezes de origem indígena; estátuas de zémès, deuses indígenas são, às vezes, escondidas sob altares consagrados a certos deuses vudus. Mais que isso, parece que o sincretismo exerceu-se até mesmo sobre estes próprios deuses (a Maîtresse da água, a Sereia, os Simbis vermelhos, Sobo Naqui Dahomey, etc...). A iconografia espanhola sobre os taïnos permite pensar que os "Kandales" dos quais se fantasiam nossos pequenos reis do carnaval popular atual são de origem chemès; da mesma forma que as danças executadas por estes reis de carnaval fazem pensar que estes continuadores do famoso Ostro, rei da banda "Brillant de soleil" do Bel-Air, dançam em um estilo de inspiração indígena. Alguns etnógrafos acham que as festividades rurais "Rara" são de origem indígena e até mesmo que os "Vêvê", brasões dos deuses vudus desenhados no solo durante cerimônias, teriam vindo dos chemès (o fato é contestado por outros). Pode-se pensar ainda que a técnica, sobretudo linear, das artes plásticas chemès (baixo-relevos do Bassin-Zin, por exemplo) encontra-se no estilo de inúmeros retábulos de altares vudus atuais. É para nós uma tarefa importante buscar na cultura haitiana a herança dos filhos de Anacaona, a Flor de Ouro do Cacique Henri. É com contentamento que vemos nossos especialistas orientarem-se na via das pesquisas que são muito importantes para uma clara compreensão do nosso passado e do nosso presente, portanto do nosso futuro. É impressionante constatar a fidelidade que possuem as massas populares haitianas aos índios chemès; de modo que, no Carnaval, que traduz geralmente o eu profundo dos povos, os desfiles tradicionalmente são abertos por uma grande quantidade de pessoas fantasiadas de índios e carregando o nome dos grandes caciques. Aliás, o estudo comparado dos diversos tipos de porcelana maiólica em uso em todo o golfo do México e nas diversas Antilhas, na época, oferece grandes possibilidades de informação; da mesma forma que um estudo sistemático das regiões do delta do Orinoco e das Guianas de onde os chemès são originários e onde ainda vivem certas povoações de origem taïno, permitiria precisar melhor as fases ciboneys e as diversas fases taïnas. Entretanto, o aporte africano representa a maior parte na constituição da cultura haitiana. Qualquer que seja o campo da atividade criadora do povo haitiano que considerarmos, encontraremos a marca indelével do negro. Quer se trate de literatura oral, de nossas lendas, de nossos contos cantados ou do extraordinário romanceiro de Bouqui e de Malice, quer se trate da música ou da dança, quer se trate de artes plásticas ou de religião, é a filiação africana que se impõe ao espírito. Certamente que todas as obras têm a cor haitiana, elas nos pertencem, refletem a terra onde vivemos assim como nossa história épica e não poderiam ser superpostas às de tal ou tal outro povo negro, mas elas têm um ar de família indiscutivelmente negro. O Ocidente também nos marcou, e particularmente a França. Da mesma forma que nós não poderíamos esquecer a influência da Revolução francesa sobre a Revolução haitiana de 1804, não podemos esquecer que a França participou de uma maneira positiva na constituição de nossa cultura haitiana. Devemos à França o essencial do vocabulário de nossa língua crioula que, se, pela sua semântica, ela tem filiação africana, contem somente uma pequena porcentagem de palavras vindas do falar chemès, de dialetos africanos Jacques Stéphen Alexis Do realismo maravilhoso dos haitianos e do espanhol. Isto é possível pois, sendo diferentes os dialetos africanos, as palavras francesas em uso nas oficinas dos escravos eram um bom meio de comunicação dos escravos entre si e com os colonos franceses. Seria uma atitude idealista crer que este vocabulário francês foi comunicado sem que fosse transmitido, ao mesmo tempo, um modo de conceber e de pensar, qualquer que fosse o grau. Ao nosso ver, fundado em discussões que duram quase trinta anos, o créole é uma língua e não um dialeto. Mais do que isso, o créole é um utensílio maleável e aperfeiçoado que permite dar conta de toda a realidade atual do Haiti. Se imaginássemos, por exemplo, proibir o uso de qualquer outra língua no Haiti, exceto a língua oficial, o francês, sobre toda a extensão do território, a produção, a vida econômica como a vida social, paralisariam imediatamente e irremediavelmente, e não poderíamos mais falar em coletividade haitiana nem em nação haitiana; seria a Torre de Babel. Há, portanto, um unificador coletivo do Haiti, a língua haitiana créole, de semântica africana, embora com vocabulário basicamente francês. Não é tudo. É, de fato, impensável que os colonos franceses tenham vivido mais de 150 anos no Haiti, sem influenciar, em outros campos, os escravos negros com os quais mantinham relações sociais. Não somente o francês transmitiu aos nossos pais inúmeros usos correntes em nossas campanhas, mas ele lhes deu formas artísticas que foram assimiladas pelo nosso povo para serem exprimidas de uma maneira propriamente haitiana. O minueto, a contradança haitiana atual, as canções de ninar, as canções folclóricas, a fabulação de certos contos e todo um tesouro que, apesar do ar de parentesco com seu correspondente francês, não pode ser reivindicado como francês. A música haitiana em algumas de suas formas expressivas as mais autenticamente haitianas, nossa dança nacional, o merengue por exemplo recebeu uma influência da música francesa dos séculos XVII e XVIII. A religião vudu é o produto de um sincretismo cultural com o catolicismo importado pelos franceses; os santos católicos sendo, em uma certa medida, confundidos, sobretudo na iconografia, com os Loas vudus; outros deuses são até mesmo considerados como brancos (o Demoiseau Blanc, por exemplo). Medimos, assim, em que medida a marca foi importante. E mais, se o Cabo Francês, hoje Cabo Haitiano, na época que ali viviam os faustosos e riquíssimos colonos franceses era chamado a "Paris de São Domingos", se, por exemplo ali se representavam peças e operas criadas em Paris, dava-se concertos, isto não pode ser transmitido a muitos haitianos. Os letrados e os homens de cultura haitianos não somente preservaram o gosto pela arte e pela literatura francesa, mas também adotaram as suas formas. É claro que enquanto criadores " burgueses", se se pode assim dizer, eles copiaram, no início mecanicamente estas formas, infundindo, muitas vezes um conteúdo haitiano. Daí nasceu esta corrente literária e artística de língua e expressão francesa que ia haitianizar-se progressivamente até em suas formas para resultar na literatura e arte haitianas de hoje. Nós não poderíamos rejeitar as belas coisas que fez Madiou Beaubrun Ardouin, Ignace Nau, Oswald Durand, Massillon Coicou, Pétion Jérome e tantos outros, sem negar valores que não se explicam sem o contexto do Haiti e que são haitianos antes de tudo. A França legou as nossas classes dirigentes a língua francesa, mas ela a legou também aos criadores haitianos que estavam, em certa medida ligados ao povo, amantes da cultura haitiana e de suas formas expressivas populares. Tal é a origem da obra destes grandes testemunhos que se expressam em formas ao mesmo tempo herdadas da França e do Haiti. Para concluir, seria justo acrescentar que a Espanha nos deu mais do que algumas palavras de nosso vocabulário créole. As tropas revoltosas de Jean-François, de Biassou, de Toussaint Louverture não souberam combater lado a lado com os soldados espanhóis pela liberação de seu território, o Haiti não soube constituir um só e mesmo país com a parte espanhola durante décadas sem que isto não tenha influenciado a cultura haitiana. Até o presente a Espanha continua sua ação interposta por outrem, por intermédio de Cuba e da República Dominicana onde centenas de milhares de trabalhadores haitianos trabalham sedentariamente e temporariamente. Devemos enfim dizer que os soldados poloneses e alemães das tropas de Napoleão que passaram para o lado do Exército da Independência haitiana e que, por conseqüência, foram adotados como verdadeiros e fiéis filhos do povo haitiano, nos transmitiram também alguma coisa. Ainda hoje, seus descendentes estão concentrados no sul (em Fonds-des-Blancs, por exemplo) e no nordeste (Bombardopolis). Todos estes aportes de uma diversidade incrível misturaram-se para formar um só corpo, e se o elemento africano dominou todos os outros, a cultura haitiana não deixa de ser uma singular originalidade que lhe permite esperar bastante do futuro. 4 - As incidências particulares na cultura nacional haitiana É comum ouvir dizer em certos meios haitianos que haveria praticamente duas culturas que coabitam no Hati. As classes dirigentes seriam de língua e cultura francesas e as classes populares analfabetas em sua maioria esmagadora, seriam de cultura haitiana, isto é, fortemente africanizadas. Estas visões que são correntemente expressadas em nosso país pelos "assimilacionistas", os papagaios da cultura que querem fazer do Haiti uma Jacques Stéphen Alexis Do realismo maravilhoso dos haitianos "província cultural da França", são naturalmente falsas no sentido em que elas se fixam na aparência exterior das coisas. É verdade que em qualquer país, há uma incidência diferente da cultura nacional segundo as classes sociais, é o que alguns chamam de cultura burguesa e cultura proletária, no âmbito de uma cultura nacional. Todas as classes dirigentes do mundo são hoje atingidas por esta doença que se chama cosmopolitismo. É verdade que as classes dirigentes são mais apaixonadas pela história e pela literatura francesas que pela história e literatura haitianas, é fato que elas cantam todas as canções da moda, dançam todos os maxixes, todos os "lambethwalk", que elas passam suas férias na Normandia, na Côte d´Azur, na Flórida ou em Nova York e conhecem pouco a campanha e o interior do país. É correto dizer que jamais as classes dirigentes foram mais despreocupadas, mais desdenhosas do passado, do presente e do futuro de seu país, mais apesar de tudo não podemos dizer que elas não partilham da cultura nacional haitiana. Dizíamos que as classes dirigentes haitianas são de cultura haitiana burguesa, sob o verniz aparente de sua cultura francesa e de seu cosmopolitismo. Todas as reações íntimas, políticas, artísticas, religiosas, sentimentais, sociais destas pessoas correspondem à estrutura semifeudal e pré-capitalista do Haiti. Elas amam, e aliás, vibram intensamente com a música nacional, desde a mais tenra idade, elas aprendem, mesmo que de seus empregados, os contos, as lendas e a literatura oral do Haiti, elas participam das bandas de carnaval popular, seguidamente são também mais animistas e "vuduistas" que o povo, em resumo reagem geralmente como os outros haitianos. Estas teorias "verbosas" do Haiti, "província cultural" da França, deviam provocar, naturalmente, reações violentas. Intelectuais, escritores e artistas haitianos reagiram diante disto, preconizando teorias diametralmente opostas. Muitas vezes, em sua boa vontade e grande piedade com relação à realidade haitiana, eles exageraram e caíram em um nacionalismo cultural, em um populismo que nem sempre foi de melhor qualidade, mas, em suma, sua reação foi benéfica e continua sendo. Decantada de um certo "negrismo", de um certo populismo, esta corrente indianista na arte e na literatura é uma coisa dinâmica e proveitosa para a cultura haitiana. Entretanto, devemos dizer também que todas as glosas e todas as gargantas quentes em favor de uma pretensa "negritude" são perigosas no sentido em que elas escondem a realidade de autonomia cultural do povo haitiano e a necessidade de solidariedade com todos os homens, com os povos de origem negra também, naturalmente. Nós não pensamos que a cultura haitiana seja uma sucursal, uma província da cultura francesa; ela é algo de bem próprio ao solo e aos filhos deste solo. As formas e as simbologias populares devem ser a base sobre a qual nós devemos construir nossa produção cultural, considerando o futuro no Ocidente e na África, das formas que são, já há muito tempo, formas haitianas que o Haiti renovou. O romance, a poesia, o teatro, a música, as formas das artes plásticas têm, ao menos no Haiti, dupla herança ocidental e africana ao mesmo tempo, isto é, são sínteses haitianas. Se os "assimilacionistas" copiaram, outrora, mecanicamente as modas e as formas ocidentais e francesas, não é culpa da cultura francesa; aliás, pela utilização renovada destas formas que fizeram Marcelin, Hibbert, Lhérisson e Roumain no plano do romance, Oswald Durand, Louis Diaquoi, Isnard Vieux, Roussau Camille, Morisseau-Leroy, Emile Roumer, Jean Brierre e René Depestre na poesia, Justia Elie, Occide Jeanty e Ludovic Lamothe na música e tantos outros criadores de todas disciplinas, somos herdeiros de todo um tesouro que devemos levar adiante para que ele reflita, no plano da forma quanto do conteúdo, o verdadeiro rosto de nosso povo, seus problemas, suas esperanças, suas lutas. 5 - A permanência dos aportes culturais Se as classes dirigentes do Haiti, muitas vezes solidárias de um certo imperialismo racista, querem negar a herança cultural africana, é preciso dizer que a massa de nosso povo, intelectuais de vanguarda à frente, reivindicam sua qualidade de negros e a permanência de uma herança cultural africana. Sem equívoco, eles reconhecem o parentesco de sua cultura com as de seus vizinhos e de seus irmãos de origem africana. É verdade que todos os povos que encontram suas origens na África revelam uma permanência de traços culturais de forma que haveria uma má fé evidente em não reconhecê-los; as massas negras transplantadas na América que se tornaram nações ou minorias nacionais e os Africanos de hoje participam desta permanência. Um outro fato indiscutível é que as obras originadas de países de origem negra são mais imediatamente sentidas, mais intimamente penetradas pelos homens de origem negra. Numerosos são os ritmos musicais haitianos que se parecem, às vezes a ponto de serem confundidos com certos ritmos africanos; o vudu haitiano, a macumba brasileira, a santeria cubana têm manifestações não somente vizinhas, mas atraem o espírito em direção a certas manifestações religiosas similares próprias à África. O conto popular haitiano ou cubano, não somente na fabulação, mas também na maneira de contar, está próximo dos contos africanos. Poderíamos multiplicar os exemplos. Esta permanência de traços culturais (seja ela africana ou ocidental) é a menos estável e a menos durável quando o real econômico e histórico interno da nação considerada, a faz evoluir diferentemente de outros povos de Jacques Stéphen Alexis Do realismo maravilhoso dos haitianos culturas aparentadas. As condições geográficas, as trocas e as relações humanas constantes são também importantes para uma longa permanência de traços culturais herdados. Esta permanência de traços culturais tende sempre a enfraquecer-se em uma nação individualizada. Entretanto, este parentesco cultural, estes elementos de cultura não desaparecerão sem deixar traços na cultura nacional situada longe da região da qual ela procede. De fato, as nações estão sujeitas a outras influências culturais, das outras nações vivendo em uma mesma zona geográfica, zona onde as relações e as trocas são freqüentes. Aliás, muitas vezes no mundo de hoje, as nações de uma mesma zona geográfica têm uma realidade econômica e histórica interna vizinha, senão paralela. 6 - A confluência cultural zonal Quando pensamos, por exemplo, que ao redor da bacia do Caribe e do golfo do México, verdadeiro Mediterrâneo centro-americano, as diferentes nações que ali vivem conheceram no passado condições de povoamento e de migração semelhantes, que estas migrações duram ainda, que o estágio semifeudal e pré-capitalista é comum a todos, que a mesma dependência econômica e política é seu lote, não podemos nos espantar com o fato de que elas conhecem uma confluência de suas diversas culturas nacionais. Certas reações destes povos diante do real, seus hábitos de vida social, suas reações sentimentais oferecem, às vezes, uma semelhança impressionante, freqüentemente mesmo sua arte tem tendências análogas, não somente no conteúdo, mas também, em uma certa medida, na forma expressiva. Aliás, a história dos povos latino-americanos, da forma como eles se ajudaram para conquistar sua independência respectiva, a ajuda de Dessalines e de Piéton ao general Mexicano Mina, a Miranda, a Bolívar, os voluntários haitianos que derramaram o sangue sobre as terras latino-americanas, tudo isto criou uma fraternidade que favorece a confluência cultural. Isto nos conduz à convicção de que nossos esforços não poderiam ser dissociados, e é evidente que devemos estar atentos a todas as práticas culturais da República Dominicana, de Cuba, de Porto Rico, do México, do Panamá, da Venezuela, etc... Aliás, a confluência cultural zonal não é própria somente à América Central e Latina, todas as nações da Europa ocidental parecem ter entrado em um processo de interpenetração das diversas culturas nacionais e em todas as grandes regiões do globo constata-se o mesmo fenômeno. Na Europa ocidental, as escolas artísticas, a música, a literatura, as modas vestuárias, os costumes, a técnica, a ciência e outros campos influenciam-se uns aos outros, mesmo o vocabulário das línguas carregam-se de palavras bebidas nos países vizinhos. Da mesma forma, considerando as nações eslavas da Europa central, a Ásia menor, a África do norte, o sudeste asiático, a Ásia do norte, a África negra devemos nos perguntar na presença desta confluência das culturas nacionais por zona, se não assistimos no mundo de hoje a um início de constituição de culturas zonais que, em um estágio superior, suplantariam as culturas nacionais. 7 - "A Cultura" - "A Cultura humana" Falamos com freqüência e igualmente de "A Cultura" ou de "Cultura humana". Apesar da utilização interessada que fazemos deste termo para bem justificar as perspectivas que não têm nada a ver com a cultura, as perspectivas imperialistas, as perspectivas de rapinas e tutelarizações, acreditamos ser útil conservar este termo para caracterizar o fato real, a tendência à constituição de uma comunidade cultural de todos os homens. Certamente, trata-se somente de um dado que se distingue apenas vagamente até o momento presente, mas este dado precisa-se e destaca-se sem parar. "A Cultura", a "Cultura Humana" é de fato o produto de uma seleção, de uma escolha crítica da consciência de todos os homens de progresso em tudo o que há de mais positivo, de mais válido, de mais dinâmico nas diversas culturais nacionais existentes. O humanismo novo pelo qual lutam centenas de milhões de homens no mundo se nos apresenta justamente como o núcleo desta cultura do futuro, própria a todos os homens. A constituição desta cultura humana não se realizará sem batalhas, é bom, é vantajoso que seu núcleo, o humanismo novo atual, seja constantemente verificado, discutido e recolocado em questão no que ele tem de provisório. Significa dizer que o espírito de pretensão, o espírito de chauvinismo em relação aos problemas da cultura é não somente contrário ao progresso, mas ainda é quotidianamente atacado pela realidade que amontoa diante de nossos olhos, os primeiros dados desta cultura do futuro, própria a todos os homens. Não acreditamos, nós Haitianos, que seja vaidade ou pretensão dizer que, de nossa parte, nosso povo terá contribuído e contribui com, certamente algumas das obras de valor que ele produziu para a alegria e a felicidade dos homens, sua arte e sua arte de viver, mas também com o humanismo de Tous-Saint-Louverture, o de Jean-Jacques Dessalines como com o de Jean-Jacques Acaau. Jacques Stéphen Alexis Do realismo maravilhoso dos haitianos Não vemos porquê, em função de tudo o que precede, os filhos de não importa qual povo, de não importa qual cultura existente sobre a terra teriam um complexo de inferioridade diante de tal ou tal cultura, a menos que se queira negar aos outros homens as qualidades e as possibilidades que ele atribui a si mesmo. Nos últimos séculos, o Ocidente encontrou-se à frente do movimento da humanidade na produção de obras universais de cultura, nós o reconhecemos de bom grado, mas o que representam alguns séculos em relação aos longos milênios da cultura que houve no passado e razão a mais em relação ao futuro que nos espera a todos. Chegou o momento de levantar nossas mãos negras no debate ao lado de todas as mãos fraternas amarelas, brancas ou vermelhas. Dificuldades temporárias existem ainda no mundo de hoje, há muitas opressões, muitas injustiças contra as quais os homens sensíveis devem lutar, mas desde agora, é possível dizer que nós nos orientamos na direção de um concerto harmonioso das culturas nacionais. O espírito sopra nenhuma zona do mundo, tem monopólio sobre a cultura; a realidade do mundo atual o demonstra. 8 - A querela histórica do Realismo e do Formalismo É nossa opinião motivada que, em regra geral, para os Haitianos como para nossos irmãos negros, uma vez que trata-se deles hoje, a arte está necessariamente ligada à vida. Nós somos sonhadores, sim, mas infinitamente realistas, embora nuanças de opinião indiscutíveis, inevitáveis e naturais, existam entre nós. A arte para nós está essencialmente ligada à vida prática; antes que os colecionadores viessem na África, o (artista) plástico era um decorador de objetos úteis, rituais ou outros, o griot era o poeta do povo... Da mesma maneira, os povos Centro e Latino-americanos, cujas culturas parecem confluir atualmente, quase sempre produziram, em geral, obras ligadas ao real. Certamente, no dia seguinte de suas independências respectivas, quase todos os povos conheceram fases de imitação, da França sobretudo, mas nada de durável surgiu daí. Tudo o que foi feito de notável, de válido em sua literatura procedeu do realismo. A arte haitiana foi realista bem antes da Revue Indigène. Foi uma furiosa batalha que os companheiros haitianos do espiritual ganharam, desde há muito tempo, dos raros partidários da "arte pura". Nós estamos convencidos de que a tendência que consiste em se lançar nas experiências intelectualistas e cosmopolitas, nas experiências que não tem nenhuma ligação com a história de seu país, nenhum contato com a terra natal, nenhuma solidariedade com o homem de nosso tempo e seus combates, essa tendência à "arte pura", à liberdade sem freio em lugar de um sentido da liberação humana, essa tendência à gratuidade, diz respeito a apenas uma pequena parcela de artistas ligados às classes sociais decadentes, à expressão de verdadeiros pederastas da cultura. Infelizmente, algumas dessas pessoas existem em todos os países. Houve, é claro, através da história da cultura um movimento pendular entre os dois pólos, Realismo e Formalismo, conforme se as classes dirigentes eram dinâmicas ou decadentes, mas o essencial da produção de todos os grandes artistas tinha uma ligação com o realismo, com o humanismo de seu tempo e com a expressão nacional apesar dos caprichos da "encomenda social", do "mercado cultural" em uma palavra. Certamente os sectários da gratuidade podem encontrar ancestrais e precursores, e mais, grandes artistas puderam sofrer influências negativas, cometer pecados veniais, conceder uma importância muito grande ao aspecto formal, mas eles somente foram grandes em definitivo porque sua obra permanecia globalmente realista, humanista. Em conclusão, podemos dizer que se a tendência humanista e realista formou uma corrente poderosa, uma corrente permanente que atravessa e ilumina toda a história da arte, a tendência formalista sempre constituiu somente uma manifestação recessiva. Esta escola contínua que atravessa a história, a de um realismo às vezes ingênuo, às vezes naturalista, às vezes místico, às vezes humanista, freqüentemente dinâmico, nacional e social, conhece um apogeu em nossa época e apresenta-se sob o aspecto de um realismo neo-humanista, nacional, social senão popular. Certamente esta escola procurou-se e procura-se ainda através dos exageros, dos erros e dos falsos passos – aliás, nós reivindicamos em alto tom para ela o direito ao erro, quer dizer, o direito de procurar a verdade no esforço e na luta -, mas esta escola existe em nosso tempo como uma coisa viva, indiscutível. Em arte, como em qualquer outro domínio, nós continuamos sempre nossos ancestrais e nossos heróis, eis porque nós devemos resolutamente rejeitar os jogos de palavras, de sons, de cores, de linhas ou de massas. Qualquer que seja a consciência que um artista verdadeiro possa ter de seu tempo, da sociedade e do humanismo, ele se esteriliza para sempre, enquanto criador de alegria, de beleza e de coragem na vida quotidiana e de esperança nos destinos dos homens, se ele se deixar levar pela pura prestidigitação artística, pela pederastia estética. Que não nos enganemos, o realismo que domina nosso tempo não nega que a arte seja matéria de deleite, ao contrário. Mas assim como um homem de senso não poderia recusar-se a saborear a boa cozinha sob pretexto de que comer é uma pura necessidade biológica, da mesma forma existem boas cozinhas que satisfazem aos imperativos da dietética, o realismo social não propõe à qualquer um engolir os "versos/vermes de terra artísticos". O que quer o realismo é que a arte e a literatura não esqueçam seu objeto: produzir um alimento sadio e vivificante para o espírito e o Jacques Stéphen Alexis Do realismo maravilhoso dos haitianos coração dos homens, que satisfaça ao mesmo tempo o bom gosto. A arte e a literatura têm seus vícios como a sexualidade, a gastronomia, o prazer de beber e o direito ao descanso. O realismo social tem uma relação com o romantismo revolucionário. Com efeito, se entendemos por classicismo, como freqüentemente fizemos, um dogmatismo, um academicismo preconizando a eternidade das leis do belo e a adoção necessária dos velhos organons, negando que a beleza é uma criação contínua, nós rejeitamos esse classicismo ao velho celeiro das ideologias retrógradas. Para tanto, não rejeitamos o classicismo que criou as belas obras que conhecemos, obras que são testemunhos para os homens de seu tempo e testemunhos para a grande aspiração à dignidade, à felicidade, à justiça e à liberação-aspiração que é eterna. Este classicismo é no fundo apenas sinônimo de alegria para numerosas gerações vindouras. O romantismo foi, em quase todos os países, a despeito das doenças infantis, um movimento cultural autenticamente revolucionário em relação ao classicismo congelado em suas concepções de belo. O romantismo é revolucionário no sentido em que ele compreende que nada é eterno, que as formas artísticas, nascem, vivem, envelhecem e morrem, que podemos sempre ultrapassar as grandiosas aquisições do passado atualizando o homem em seu meio social e na natureza onde ele vive, iluminando mais vivamente o caráter contraditório da consciência humana, dando um mais amplo lugar ao lirismo e ao sonho. Isso não significa que se deva, para tanto cair em um anarquismo da forma, na negação pura e simples do que o passado criou no plano das formas. O que é a forma senão veículo que permite desenvolver o conteúdo, de comunicá-lo? Em outros termos, as únicas regras às quais as formas devem obedecer é corresponder ao conteúdo, ser belas, agradáveis, digestas, encantadoras. Como o gosto e a sensibilidade formal de um povo não são válidos para um outro, as formas devem, em uma cultura nacional, corresponder antes de tudo às tendências, ao caráter do povo em questão. As formas, antes de tudo, devem ser suscetíveis de fazer vibrar o povo ao qual a obra de arte é destinada. As formas aceitas do passado de um povo não são para tanto necessariamente a única vestimenta que serve à realidade. Há justamente em todas as culturas nacionais um tesouro de formas populares originais que ainda são muito pouco utilizadas pelos artistas profissionais; é claro que estes podem adaptar, segundo sua personalidade própria, essas formas, levando em consideração, bem entendido, as tradições do passado ou mesmo criar formas inteiramente novas que respeitem o espírito nacional. É uma gloriosa missão para os criadores partidários do realismo social vivo e de uma estética popular, beber no tesouro continuamente enriquecido pelos povos e que são desdenhados pelos artistas menos perspicazes. 9 - A ótica haitiana dos organons tradicionais À luz de nossa realidade nacional, não pensamos, no Haiti, que os gêneros e os modos artísticos que floriram no Ocidente e dos quais se servem nossos criadores e que são, aliás, preciosos para a cultura de qualquer canto do mundo, sejam acabados nem perfeitos. O povo haitiano assim como outros povos de origem negra, por exemplo, tem uma visão bem pessoal da realidade sensível, do movimento do ritmo e da vida. Para um Haitiano a harmonia musical não é unicamente a harmonia ocidental, o acorde perfeito não é de Bach, sua concepção do glissando, do vibrato, da síncope musical e original, sua técnica do canto zomba das regras do canto à italiana: poderíamos dizer a mesma coisa para todos os modos e gêneros artísticos. Nos consideramos capazes, no âmbito de nossas tradições nacionais e sob uma forma que nos é própria, de renovar essas formas e esses modos criados pelo Ocidente. Temos aguçado, é claro, o sentido do nacional para querer impor aos outros o que nos é próprio, mas há uma certa ótica ocidental da beleza para julgar o que nos é próprio que nos é freqüentemente intolerável e que deixa um vestígio de imperialismo cultural. Todos os homens são belos e todas as culturas são capazes de renovar a beleza aos olhos de todos os homens. Parece que o peso das leis tradicionais dos gêneros ainda pesa demais sobre o espírito ocidentalizado. Apenas alguns homens avançados concebem a possibilidade de uma evolução progressiva dos organons, evolução insensível contudo, que poderia, com o tempo conduzir a uma transformação decisiva dos cânones. Tudo em nós se insurge contra tal reformismo artístico, ainda que nosso ímpeto não signifique de modo algum que rejeitemos por princípio o aporte dinâmico do passado, qual seja sua origem. É impossível que todos os meios do passado estejam à altura das mensagens dos tempos presentes; é preciso resolutamente rejuvenescer os antigos organons, descobrir e redescobrir, senão inventar, segundo a ótica de nosso povo, bem entendido. Como pode que os homens do século XX não se dêem conta que os gêneros somente entraram em sua adolescência? Todas as obras mestras do passado cuja harmonia nos enfeitiça não serão nada ao lado do que deve nascer. Na nossa opinião, novas belezas somente podem ser criadas à condição de dizer não aos antigos organons de cujo espírito somos herdeiros; com efeito esses antigos organons haviam sido herdados dos mais antigos os quais também, em seu tempo, haviam negado os precedentes; o movimento é contínuo.
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