UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE LETRAS CLÁSSICAS E VERNÁCULAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LITERATURA PORTUGUESA Do mito Camões ao outro Camões de José Saramago Flávio Garcia Vichinsky Monografia apresentada ao Programa de Pós-Graduação do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas para obtenção do título de Mestre na área de Literatura Portuguesa. Orientadora: Profa. Dra. Marcia Arruda Franco São Paulo -2009- 1 Livros Grátis http://www.livrosgratis.com.br Milhares de livros grátis para download. Agradecimentos Toda a minha gratidão aos meus pais, eternos incentivadores. À professora Josefa, alvores da literatura em minha vida. A todos os meus professores e professoras, lavradores do meu ser. Aos meus alunos e alunas, terreno fértil onde, hoje, semeio. A toda minha família, amigos e colaboradores, meu sincero agradecimento. 2 Passam pássaros sobre as ondas, Passam as ondas, Ficam as naus. Não mais as mesmas. Tocaram-me as sombras de Escher, Engaioladas no livro sobre a mesa da sala. Sangrou-me o mar da caligrafia hermética, Luminária d’umas letras aprendizes. Fui caravela, Marcia. Tudo o mais fica seu E gratidão. 3 VICHINSKY1, Flávio Garcia. Do mito Camões ao outro Camões de José Saramago. 165 p. Dissertação (Mestrado em Letras) – USP, São Paulo, 2009 RESUMO Este trabalho apresenta, inicialmente, alguns pressupostos da Estética da Recepção, como fundamento para demonstrar de que forma o histórico de recepções da obra de Luis de Camões constrói esse poeta do século XVI como um dos ícones basilares de toda a cultura portuguesa. Investigam-se alguns registros das primeiras recepções críticas e criativas do século XVI, XVII e XVIII, entre elas as de Diogo do Couto, Manuel de Faria e Sousa, Severim de Faria e Bocage. Aborda-se o percurso recepcional de Camões no século XIX, sob a influência dos ideais românticos de Alexandre Herculano e Almeida Garrett, situando a contribuição deles para a postulação mítica que persegue Camões até nossa contemporaneidade. A pesquisa mostra também que a leitura pós- romântica aponta para uma desconstrução mítica articulada, principalmente por Oliveira Martins, Fernando Pessoa, Jorge de Sena e, em especial, José Saramago, de cuja obra romanesca, dramática e poética serão investigados alguns exemplos dessa proposta de leitura alternativa, a qual leva à construção de um “outro” Camões, mais humano e menos heróico que o outro. Palavras-chave: Portugal; Literatura Portuguesa; Camões; José Saramago; Estética da Recepção 1 [email protected] 4 ABSTRACT This paper presents, initially, assumptions of the Aesthetics of Reception as a mean to demonstrate how the reception’s history of the works of Luis de Camões puts this sixteenth century poet as the one of all Portuguese culture’s icons. It was investigate the records of the first critical and creative receptions at the XVI, XVII and XVIII centuries, including those of Diogo do Couto, Manuel de Faria e Souza, Severim de Faria and Bocage. It addresses the recepcional path of Camões in the nineteenth century, under the influence of romantic ideals of Alexandre Herculano and Almeida Garrett, placing their contribution to the mythical postulation that pursues Camões until the present. The research also shows that the post-romantic reading points to a mythic deconstruction articulated in the literature, mainly by Oliveira Martins, Fernando Pessoa, Jorge de Sena and, in particular, José Saramago, whose novelistic, dramatic and poetic works will be investigated as some examples of this alternative proposal of reading, which leads to the construction an “other” Camões, more humane and less heroic. Key words: Portugal; Portuguese Literature; Camões, José Saramago; Aesthetics of Reception 5 SUMÁRIO 1 - INTRODUÇÃO .............................................................................................. 1 2 - REVISITANDO A ESTÉTICA DA RECEPÇÃO ............................................ 6 2.1. O panorama inicial: Jauss e Iser ......................................................... 9 2.2. Contribuição de Stierle e Gumbrecht .................................................. 20 3 - CAMÕES: DO POETA AO MITO ................................................................. 34 3.1. Os séculos XVI, XVII e XVIII ............................................................... 36 3.2. O século XIX ....................................................................................... 55 4 - GARRETT E CAMÕES COMO MITO NACIONAL ....................................... 63 4.1. Camões no Camões de Garrett .......................................................... 65 4.2. Os Lusíadas no drama Frei Luis de Sousa ......................................... 75 5 - CAMÕES: O MITO DESFEITO ..................................................................... 82 5.1. O final do século XIX ........................................................................... 82 5.2. O século XX ......................................................................................... 89 6 - SARAMAGO E O OUTRO CAMÕES ........................................................... 101 6.1. Camões no romance saramaguiano ................................................... 106 6.1.1. Camões em Monte Lavre ......................................................... 107 6.1.2. Camões em Mafra .................................................................... 113 6.1.3. Camões em Lisboa .................................................................. 120 6.2. Camões nos versos de Saramago ..................................................... 127 6.2.1. O velho do Restelo .................................................................. 129 6.2.2. A imagem do poeta ................................................................. 134 6.3. Camões no teatro saramaguiano ....................................................... 139 7 - CONCLUSÃO ............................................................................................... 152 Referências ........................................................................................................ 157 6 "Quantos ledores, tantas as sentenças; c'um vento velas vêm e velas vão." Sá de Miranda 7 8 1. INTRODUÇÃO A consolidação da figura de Camões como elemento dos mais relevantes na cultura portuguesa é consenso entre os historiadores, literatos e demais estudiosos do processo de formação histórica e social desse país. A obra do poeta e a sua biografia, bem como a mitologia que as envolvem, transformaram-no em um dos maiores e mais conhecidos símbolos de Portugal, o que o coloca muitas vezes, ao longo da história, na condição de modelo de poeta e homem, sendo os seus versos, para muitos, um exemplo de perfeição e a sua vida, um “chamado ao patriotismo” para outros tantos. Esse processo de “modelização camoniana” é perceptível nos registros de recepção crítica e criativa desde o século XVI até os dias atuais, mostrando que o interesse, não apenas literário, por Camões jamais cessou: o poeta, sucumbindo quase incógnito em 1580, não morreu de fato. Antes, imortalizou-se no imaginário coletivo como um mito. Camões está vivo nas artes plásticas, sendo ele, ou os personagens de sua obra, temas de pinturas e esculturas.2 Está vivo – mesmo como um “pseudo-conhecido” – na memória lusófona: ruas, praças e até estabelecimentos de comércio em Portugal e no mundo lusófono recebem nomes em sua homenagem.3 Está 2 Como por exemplo a estátua no largo Camões, em Lisboa, de autoria de Vitor Bastos e a erigida pela Câmara Municipal de Leiria, de Fernando Pereira Marques; as pinturas de João Vaz (Hotel Palace de Buçaco), Columbano (Museu Militar de Lisboa), Desenne (Museu Grão Vasco, Viseu), Fragonard (ilustrações para a edição de “Os Lusíadas” do Morgado de Mateus), Lima de Freitas (Museu Militar, Lisboa) e os azulejos de Jorge Colaço, no Hotel Palace de Buçaco. 3 Eduardo Lourenço, ao discutir no seu Mitologia da Saudade a relação entre o caráter do povo português e a elevação do poeta ao patamar de símbolo da pátria, reflete a respeito da centralidade atribuída ao poeta e à sua obra, ao longo dos mais de quatrocentos anos de recepção: “Para os portugueses, Camões não será apenas o maior de seus poetas – era-o já, desde o século XVII (...) – mas o seu herói nacional”. LOURENÇO (1999), p. 57. 1
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