Do Estado-Nação à União Europeia Olhares Teóricos sobre a Experiência Pós-Nacional Europeia II Índice: Introdução – pg. 1 I – Hannah Arendt: Crise do Estado-Nação e Virtude do Federalismo I – a) A Crise do Estado-Nação, até ao fim da IIª Grande Guerra – pg. 7 O Estado-nação na sociedade mundial – pg. 7 Minorias e Apátridas na Origem do Apogeu e Declínio do Estado- nação – pg. 9 Os “Direitos” e o “Género Humano” – pg. 16 I – b) A Virtude do Federalismo Americano – pg. 18 Montesquieu e a Constituição do Poder – pg. 23 Elementos Políticos Inovadores nos Estados Unidos – pg. 30 I – c) Autoridade, Soberania, Poder e Totalitarismo – pg. 31 Opinião e Autoridade – pg. 37 A Federação Europeia – pg. 39 II – Sentido do Projecto Europeu II – a) Ulrich Beck e a Inevitabilidade da Cosmopolítica em tempo de Globalização – pg. 46 A Identidade Pós-Nacional – pg. 50 A Reflexão Histórica sobre a Identidade Pós-Nacional – pg. 57 Globalização e Cosmopolitismo – pg. 59 Capital e Globalização: Joseph Stiglitz – pg. 64 Igualdade e Inclusividade Transnacional – pg. 68 III II – b) O Acrescento Funcionalista do Tribunal de Justiça e a Reflexão de Poiares Maduro – pg. 73 As Soberanias Partilhadas – pg. 77 Princípios de Direito Contrapontual (Poiares Maduro) – pg. 80 Consequências da Jurisdicionalização do Processo Europeu – pg. 83 II – c) O Império Pós-Hegemónico – pg. 98 Habermas e Beck sobre Prevenção do Risco – pg. 104 O Espaço Social Europeu – pg. 116 III – Actualidade do Projecto Europeu e da União Europeia – pg. 125 III – a) A Complexidade dos Mecanismos de Decisão da União Co-Decisão – pg. 134 Consulta – pg. 136 Concertação – pg. 138 Parecer Conforme – pg. 138 As Competências na União – pg. 139 III – b) Contribuições do Tratado de Lisboa para a Funcionalidade da União – pg. 142 Traves Mestras – pg. 145 Desaparecimento da Estrutura de Pilares – pg. 147 Carta dos Direitos Fundamentais – pg. 150 IV – Conceitos de Integração – pg. 151 O Federalismo – pg. 157 O Intergovernamentalismo – pg. 165 Funcionalismo e Neofuncionalismo – pg. 169 IV Conclusão – pg. 177 Bibliografia – pg. 181 V Introdução Com formas de realização e conceptualização muito diversas, o Estado-Nação atingiu a sua ideia e realização com as revoluções determinantes dos finais do século XVIII, a revolução americana e a revolução francesa. O êxito (a prazo) de uma foi, porém, o fracasso da outra. “A Revolução Francesa voltou-se da fundação da liberdade para a libertação do homem do sofrimento e com isso libertaram-se as imensas forças da desgraça e da miséria que acabaram por destroçar o próprio esforço de afirmação da arquitectura política e constitucional da liberdade; a única Revolução em que a compaixão não desempenhou qualquer papel na motivação dos actores foi a Revolução Americana”. Na América, como foi sublinhado por Madison, a Constituição transformou-se numa carta de poder cedida pela liberdade, jà não, como na Europa, numa carta de liberdade cedida pelo poder.1 Entre causas múltiplas (entre elas o facto de os Estados Unidos da América, à época da independência, desconhecerem a pobreza, nomeadamente a pobreza classista europeia), podemos dizer que os ensinamentos de Rousseau, muito presentes nos revolucionários franceses, identificavam o Estado com a Nação e faziam daquele o instrumento de uma vontade naturalmente una da Nação. Enquanto isso, os Pais Fundadores, nos Estados Unidos, tendo estudado aturadamente Montesquieu (1689-1750), e beneficiado de uma relação anterior com a coroa britânica já de cariz socialmente “contratualizado”2, conforme John Locke, aprenderam da divisão de poderes no tempo pujante da República 1 ARENDT, Hannah, On Revolution, cit. por SOROMENHO-MARQUES, Viriato, A Revolução Federal – Filosofia Política e Debate Constitucional na Fundação dos E.U.A., Colibri, Lisboa, 2002, pgs. 26 e 43. 2 Os colonos da América setentrional ficaram, em grande medida, entregues a si próprios (ao contrário das colonizações portuguesa ou espanhola, marcadas por uma forte presença do Estado); esse abandono relativo estimulou a tradição de auto- governo, fundamental no antes, no durante e no após a Revolução - SOROMENHO-MARQUES, Viriato, A Revolução Federal – Filosofia Política e Debate Constitucional na Fundação dos E.U.A. cit., pg. 28. Ficou famosa a ideia do político Thomas Paine – “na América, a Lei é o Rei”. 1 Romana que o poder é distinto da soberania – se aquele pertence ao povo, esta deve ser exercida por órgãos diversos, cujo poder se anule mutuamente, embora, paradoxalmente, ao anular-se, gere mais poder e mais legitimidade (divisão de poderes entre o Executivo, o Senado e o Judiciário e divisão de poderes entre a Federação e os Estados que a integram)3. Na Europa, teóricos como Louis Le Fur (La Confédération d´États et l`État Fédéral, Paris, 1896), ou a Escola de Viena (com os seus expoentes Kelsen, Verdross ou Kunz), acentuaram que uma coisa era o tratado “rectius” o contrato estabelecido entre os Estados, outra coisa distinta era a relação jurídica que lhe subsistia, como consequência: o Tratado desaparecia com a sua execução e as relações contratuais cederiam espaço às relações de domínio e de subordinação e ao direito público interno. Posteriormente, estes Autores evoluíram para a distinção entre a soberania tomada em si mesma (a sua substância, que deve ser una e indivisível), e as atribuições da soberania (o seu exercício, que pode ser partilhável, como é, a nível legislativo, administrativo ou judicial). Em particular, Kelsen, rejeitando a teoria da dupla soberania, sustentou que as relações entre a federação e os entes federados seriam de coordenação e não de dependência - só à “ordem total” pertenceria a soberania, isto é, a “competência das competências”. Esta comunidade não pode ser concebida separadamente e mais, “os órgãos do Estado superior são simultaneamente órgãos do Estado global, exercendo o ordenamento central uma inevitável supremacia sobre os ordenamentos periféricos” – daí uma 3 Ajudavam-nos esse “cartesianismo prático inconsciente” aludido em SOROMENHO-MARQUES, Viriato, A Revolução Federal – Filosofia Política e Debate Constitucional na Fundação dos E.U.A., …, pg.10, segundo Tocqueville: “procurar por si e só em si próprio a razão das coisas; tender para o resultado, sem se deixar aprisionar pelo meio; visar o fundo através da forma”. E conforme escrevia Hamilton, em “O Federalista” nº1: “Tem sido frequentemente observado que parece estar reservado ao povo deste país, pela sua conduta e exemplo, decidir acerca da importante questão que consiste em saber se as sociedades humanas são ou não realmente capazes de estabelecer um bom governo a partir da reflexão e da escolha, ou se estão para sempre destinadas a depender do acidente e da força no que respeita às suas constituições políticas”. 2 ausência de paridade entre o poder central e o periférico, tal como Kelsen tinha entendido.4 Num outro contexto político e social, porém, a União Europeia nasce de tentativas pós-nacionais e pós-imperiais de estabelecer a união entre os povos, as nações e os Estados europeus, com o objectivo central de impedir (para sempre…) a guerra na Europa; tais tentativas resultaram de aproximações pragmáticas às situações nacionais dos Estados e começaram então pelo meio mais evidente (e quiçá mais eficaz) de atingir a paz e os bons costumes – o estabelecimento da liberdade de comércio, e, mais tarde, da liberdade de prestação de serviços e, mais tarde ainda, da liberdade de circulação de pessoas (a “liberdade de residência” dos filósofos). As instituições europeias são também instituições fundadas na distinção entre poder e soberania, exercendo-se aquele sobretudo pelos povos ao nível dos seus Estados soberanos, e exercendo-se esta historicamente de acordo com a necessidade do “primado”, de acordo com critérios de distribuição de soberania entrecruzados a diversos níveis, quer horizontalmente (Comissão, Conselho, Parlamento Europeu, Tribunal de Justiça), quer verticalmente, entre as instituições europeias e os Estados Nacionais. Esta divisão de poderes soberanos poderia conduzir a conflitos de delimitação ou de sobreposição, de que têm contudo escasseado os exemplos na história da U.E.5 Nos Estados Unidos, os debates em volta da Constituição consagraram a teoria da dupla soberania, que reconhecia o carácter 4 SILVEIRA, Alessandra, Cooperação e Compromisso Constitucional nos Estados Compostos, Coimbra, 2007, pg. 185 e 192 a 197 e a pgs. 198 – “desde que o juiz Marshall assentou as bases da doutrina da supremacia federal - “McCulloch vv. Maryland”, 1819 - tem-se entendido que quando, em virtude de um título competencial específico, um ente federado venha impedir ou dificultar a prossecução das competências federais, o resultado do conflito deverá ser necessariamente favorável ao poder central”). Os sistemas federativos conseguidos deslocaram-se assim das normas e conceitos ligados à “soberania/poder”, para os conceitos ligados a “cooperação”. 5 SILVEIRA, Alessandra, Cooperação e Compromisso Constitucional nos Estados Compostos, Coimbra, 2007, pg. 185 e 192 a 197 e a pgs. 198. 3 estadual/soberano, tanto à Federação, quanto aos Estados federados. A prazo, esta construção teórica degradou-se em divisões acentuadas, culminando na Guerra da Secessão, iniciada pelos Estados do Sul, sob a capa da soberania dos Estados federados, acentuada na teoria da nulidade de John Calhoun: se os Estados- membros conservavam plenamente atributos de soberania, então era contraditório divisar um “dualismo soberano”, como se fazia desde os artigos de “O Federalista”.6 A União Europeia, tal como reflectida nos seus tratados constitutivos, sucessivamente reformados e aprofundados, é um “império” (Beck) que visa o consenso e a lealdade. Apesar dos conflitos interiores, entre Estados e Instituições Europeias, dos desequilíbrios de poder e das ambições hegemónicas práticas, a União Europeia construiu-se por acordo com a livre escolha dos seus povos e de acordo com uma linha de integração económica; esta, historicamente, arrastou consigo a integração do direito, de acordo com uma consecutiva “política de consequências secundárias” (Beck). O futuro poderá apontar para a da “meta-transformação” das sociedades nacionais (Beck) numa unidade cosmopolítica, desejavelmente sem um plano prévio de conjunto ou uma unidade metafísica (filosófica) ou “meta-jurídica”, simplesmente hoje, como em 1787, “numa opção política que aposta na solução contratual de conflitos, no primado das leis e dos processos formais e transparentes, como fio condutor no desenvolvimento das instituições e na procura de consensos construídos”7. Noutros termos, como para Habermas, deverão ser os direitos do homem, e não o direito internacional, a formar a base jurídica da união 6 SILVEIRA, Alessandra, Cooperação e Compromisso Constitucional nos Estados Compostos, Coimbra, 2007, pg. 180. 7 SOROMENHO-MARQUES, Viriato, A Revolução Federal – Filosofia Política e Debate Constitucional na Fundação dos E.U.A. cit., pg.177. 4 cosmopolítica. Terá então faltado a Kant encarar a liquidação da soberania dos Estados e a supressão do “direito internacional”.8 Não deixarão de se adivinhar dificuldades, na conjugação entre as políticas da União, com efeitos necessários e actuais, v.g., ao nível do socorro aos Estados em dificuldade para gerir a sua dívida, e a forma como esses Estados, a nível interno deverão lidar com as subsequentes situações de restrição orçamental, de menos crescimento económico. O caminho porém encontra-se na solidariedade de bloco para com as zonas da União mais afectadas pela volatilização do dinheiro e dos mercados. Uma palavra se deverá à jurisprudência do Tribunal de Justiça, a qual tem feito prevalecer a autoridade europeia sobre o direito nacional, ao longo dos anos, conduzindo à antecipação dos maiores avanços da integração. A prevalência do acontecimento – do pensar e do agir (Arendt) – sobre quaisquer ideias estabelecidas, mas necessariamente limitadas a vontades maioritárias limitadas no tempo, é desejável que ocorra como espaço e consequência de virtude. Do “poder” (I can), mais que do “querer” (I want). I - Hannah Arendt: Crise do Estado-Nação e Virtude do Federalismo I – a) A Crise do Estado-Nação, até ao fim da IIª Grande Guerra O que é o Estado-Nação? A noção tradicional de Estado é dada pela doutrina portuguesa, em suma, como “um povo, fixado num território de que é senhor, e que dentro das fronteiras desse território institui, por autoridade própria, 8 FERRY, Jean-Marc, La Republique Crépusculaire, Comprendre le Projet Européen in sensu cosmopolitico, Ed. du Cerf, Paris, 2010, pg. 255. 5 órgãos que elaborem as leis necessárias à vida colectiva e imponham a respectiva execução”9. De outro lado, a ideia de Nação remetia tradicionalmente para um ponto de vista histórico-cultural – “pertencem à mesma nação todos quantos nascem num certo ambiente cultural, feito de tradições e costumes, geralmente expresso numa língua comum, actualizado num idêntico conceito de vida e dinamizado pelas mesmas aspirações de futuro e os mesmos ideais colectivos”10. Da mesma forma que, no uso clássico da língua pelos romanos, quer “natio”, quer “gens”, são conceitos opostos a “civitas”, originalmente as nações constituíam comunidades de origem, integradas geograficamente pelo acordo e por relações de vizinhança e culturalmente por uma língua, costumes e tradições comuns, desligadas da organização estadual.11 Modernamente, a universalidade da aplicação do conceito de Estado- Nação, conduziu à justaposição dos conceitos de Estado e Nação, sem que se tornassem sinónimos. Nação passa assim a constituir “um ser colectivo indivisível, titular da soberania, que é composto pela universalidade dos nacionais, todos iguais na sua qualidade de cidadãos, sem nenhuma distinção de raça, de etnia, de língua, de religião ou de sexo”12. Todavia, é no seguimento das modernas revoluções, desde a francesa, até aos nacionalismos emergentes do colonialismo, em meados do século XX, que assistiremos à aspiração de concordância entre Estado e Nação (melhor se 9 CAETANO, Marcello, Manual de Ciência Política e de Direito Constitucional, 6ª ed., I, pg. 122, cit. in AMARAL, Freitas do, Polis – Enciclopédia, Verbo Editora, II vol., pg. 1127. SOROMENHO-MARQUES, Viriato, A Revolução Federal – Filosofia Política e Debate Constitucional na Fundação dos E.U.A., …, pg.177. 10 CAETANO, Marcello, op. cit., pg. 123. 11 HABERMAS, Jürgen, La Inclusión del Outro(Estudios de Teoria Politica), Paidos, Barcelona, 1999, pg. 86. 12 VAN MINH, Tran, Théorie Générale de l´État – Recherches sur la Notion Juridique d´État-nation, Paris, 1980, pgs. 187ss. e 233, cit. in AMARAL, Freitas do, Polis – Enciclopédia, Verbo Editora, II vol., pg. 1139. 6
Description: