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Ditos e escritos- vol. V -Ética, Sexualidade, Politica PDF

162 Pages·2006·100.358 MB·Portuguese
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2a edição -- 2006 © Editiotts Ga!!ittlard. J994 Apresentação © Pressas Universilaires de France, i984. Editiotts Ga!!itttard, ]994 e Livraria Manias Fontes Editora. 200], para o \eito Foltcault Traduzido de Dias et écrits Cet ouvrage, public duns !e ladre (!! progranune d'pide à !a pubiicatiott. bénlqficie dtt soutien dt{ IUiitislàw Ftaltçais des Agbires Etrattgêres. de i'An\bassade de Frattce att Brésil et (!e !ct Maisolt de Frat\ce de Rio cie r Construída sob o signo do novo, a obra de Michel Foucault Este livro, publicado no âmbito do programa de participação-à publicação, contou com o apoio do Ministério Francês das Relações Exteriores, da Embaixada da França no Brasil e da Maison de Force do Rio de Janeiro subverteu, transformou, modificou nossa relação com o saber Olwrage pttblié aves I'ai({e dit !Uinistàe Français Cliargé de !a Clttlue -- Cen:n Natiottal dit Livre. e a verdade. A relação da íilosoíia com a razão não é mais a Obra publicada com ü qudu do Ministério Francês da Cultura -- Centro Nacional do Livro mesma depois da História da loucura. Nem podemos pensar da mesma forma o estatuto da punição em nossas sociedades. Foto da capa: Jacques Robes A intervenção teórico-atava de Michel Foucault introduziu tam- CI P-Brasil . Catalogação-na-Fonte bém uma mudança nas relações de poder e saber da cultura Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ. F28.e6de. Foucault, Michcl, 1926- 1 984 contemporânea, a partir de sua matriz ocidental na medicina, Etica, sexualidade,p olítica / Michel Foucault: organização e seleção de textos na psiquiatria, nos sistemas penais e na sexualidade. Pode-se Manoel Burros da Moita; tradução Elisü Monteiro, Inês Autmn Dourado Barbosa. 2.ed. -- Rio de Jancino: Forense Universitária. 2006. dizer que ela colabora para efetuar uma mudança de epísÉe- (Ditos e escritos;V ) me, para além do que alguns chamam de pós-estruturalismo Tradução de: Dits et écrits ou pós-modernismo. ISBN 85-2 1 8-(HO0-8 A edição francesa dos Ditos e escritos em 1 994 pelas Edições 1. Títu1 .l oÉ.t i1c1a. .S 2é.r iSee.xo. 3. Ciência política. 4. Filosofia francesa -- Século XX. Gallimard desempenha um papel fundamental na difusão de 06- 1 94 1 CCDDDU 119 (444) ufímcial, booua epmar tme udiat oosb rcaa dsoo sf iilmóspoofos scíuvjeol a. cAelsésmo adoe p súubalisc og rearnad deis- obras, como Ás palavras e as coisas, História da !oucura, Vi- giar e punk O nascimento da clínica, Raymond Roussel e Hístó- r-ía da sexualidade, Foucault multiplicou seus escritos e a ação dos seus ditos, na Europa, nas Américas, na Asma e no Norte da Afhca. Suas intervenções foram das relações da loucu- ra e da sociedade, feitas no Japão, a reportagens sobre a revolu ção is[âmica em Teerã, e debates no Brasi] sobre a pena]idade e a política. Este trabalho foi em parte realizado através de um Reservados os direitos dc propriedade desta edição pela grande número de textos, intervenções, conferências, introdu- EDI'LURA FORENSE UNIVERSITÁRIA ções, prefácios e artigos publicados numa vasta gama de paí- Rlo de ./aneiro: Rua do Rosário. 1 00 - Centro -- CEP 2004 1 -002 leis./Fax: 2509-3 148 / 2509-7395 ses que vai do Brasil aos Estados Unidos, à Tunísia, à ltália e São Pa#/o: Senador Paulo Egídio. 72 -- slj. 6 - Centro -- CEP 0 1 006-0 1 0 ao Japão. As Edições Gallimard recolheram esses textos numa reis./Fax: 3 1 04-2005 / 3 1 04-0396 / 3 1 07-0842 e-mail: editom@forenseuniversitaría.com.br primeira edição em quatro volumes, com exceção dos livros. A http://www.foren seuni ve rsitari a.com.br estes seguiu:se uma outra edição em dois volumes, que con- Impnsso no Brasil serva a totalidade dos textos da primeira. A edição francesa Prittted iit Brazit pretendeu a exaustividade, organizando a totalidade dos textos publicados quando Michel Foucault vivia, embora sqa prová- LXll Michel Foucault Ditos e E;scritos Sobre a edição brasileira Sumário A edição brasileira é bem mais ampla do que a americana, publicada em três volumes, e também do que a italiana. Sua diagramação segue praticamente o modelo ó"ancas. A única 1978 A Evolução da Noção de "Indivíduo Perigoso na diferença significativa é que na edição francesa a cada ano Psiquiatria Legal do Século )<lX l abre-se uma página e os textos entram em seqüência numera- da (sem abrir página). Na edição brasileira, todos os textos 1978 Sexualidade e Política 26 abrem página e o ano se repete. Abaixo do título há uma indi- 1978 A Filosofia Analítica da Política 37 cação de sua natureza: artigo, apresentação, prefácio, confe- 1978 Sexualidade e Poder 56 rência, entrevista, discussão, intervenção, resumo de curso. 1979 E Inútil Revoltar-se? . 77 Essa indicação, organizada pelos editores, foi mantida na edi- ção brasileira, assim como a referência bibliográfica de cada 1980 O Verdadeiro Sexo 82 texto, que figura sob seu título. 1981 Sexualidade e Solidão . 92 A edição francesa possui um duplo sistema de notas: as 1982 O Combate da Castidade 104 notas numeradas foram redigidas pelo autor, e aquelas com 1982 O Triunfo Social do Prazer Sexual: uma asterisco foram feitas pelos editores franceses. Na edição bra- Conversação com Michel Foucault 119 sileira.. há também dois sistemas, com a diferença de que as 1983 Um Sistema Finito Diante de um notas numeradas compreendem tanto as originais de Michel Foucault quanto as dos editores franceses. Para diferenciá- Questionamento Infinito . 126 las, as notas do autor possuem um (N.A.) antes de iniciar-se o 1983 A Escrita de Si 144 texto. Por sua vez, as notas com asterisco, na edição brasilei- 1983 Sonhar com Seus Prazeres. Sobre a ra, se referem àquelas feitas pelo tradutor ou pelo revisor téc 'Onirocrítica" de Artemidoro 163 naco. e vêm com um (N.T.) ou um (N.R.) antes de iniciar-se o 1983 O Uso dos Prazeres e as Técnicas de Si. 192 texto Esta edição permite o acesso a um conjunto de textos antes 1984 Política e Ética: uma Entrevista 218 inacessíveis, fundamentais para pensar questões cruciais da 1984 Polémica, Política e Problematizações 225 cultura contemporânea, e, ao mesmo tempo, medir a extensão 1984 Foucault 234 e o alcance de um trabalho, de um work in progress dos mais 1984 O Cuidado com a Verdade 240 importantes da história do pensamento em todas as suas di- mensões, éticas, estéticas, literárias, políticas, históricas e fi- 1984 O Retorno da Moral 252 losóficas. 1984 A Etica do Cuidado de Si conto Prática da Liberdade 264 Manoel Barrou da Motta 1984 Uma Estética da Existência 288 1988 Verdade, Poder e Si Mesmo 294 1988 A Tecnologia Política dos Indivíduos 301 Índice de Obras 319 Índice Onónlástico 320 Orgailízação da Obra Ditos e Escritos 323 1978 A Evolução da Noção de "Indivíduo Perigoso" na Psiquiatria Legal do Século XIX "About the concept ofthe 'dangerous individual' in 19'h century legal psychía- try" ("A evolução da noção de 'indivíduo perigoso' na psiquiatíía legal do sécu- lo XIX"), Joumal o#taw and psychüztrl/, vo1. 1, 1978, ps. 1-18. Comunicação ao simpósio de Toronto "Law and Pqrchiatry', Clarke Insütute of Psychiatry, 24 26 de outubro de 1977. Iniciarem relatando algumas frases que foram trocadas recentemente no tribunal do júri de Paras. Julgava-se um homem, acusado de cinco estupros e de seis tentativas de estupro, distribuídas entre fevereiro ejunho de 1975. O réu se mantinha praticamente mudo. O presidente Ihe pergunta: 'Você tentou refletir sobre o seu caso?" Silêncio. Por que, aos 22 anos, desencadearam-se em você essas violências? E preciso que você faça um esforço de análise. Apenas você tem a chave de si mesmo. Explique-me Silêncio. 'Por que você recomeçou?' Silêncio. Um jurado toma então a palavra e exclama: "Mas afinal. defenda-se!' Nada há de excepcional em tal diálogo, ou melhor, nesse monólogo inquisitivo. Poderíamos ouvi-lo seguramen&: em muitos tribunais e em vários países. Porém, se tomamos um certo distanciamento, ele só pode suscitar o espanto do histo- riador, pois temos aqui um aparelhojudiciário destinado a es- tabelecer fatos delituosos, a determinar seu autor e a punir esses atos, infligindo ao autor as penas previstas pela lei. Ora, 2 Michel Foucault Ditos e Escritos 1978 A Evolução da Noção de "Indivíduo Perigoso' 3 temos aqui fatos estabelecidos, um indivíduo que os reconhe- advogado francês em um caso de rapto e assassinato de uma ce e que, portanto, aceita a pena que Ihe será infligida. Tudo criança. Por uma série de razões, esse caso teve grande re- parecia ir da melhor maneira no melhor dos mundos judi- percussão, não somente pela gravidade dos fatos, mas por- ciários. Os legisladores, os redatores do Código do íinal do sé- que se jogava nesse processo a manutenção ou o abandono culo XVlll e início do XIX não poderiam imaginar situação da pena de morte. Pleiteando mais contra a pena de morte do mais cristalina. E. no entanto, a máquina tende a travar, as que pelo réu, o advogado argumentou que se conhecia pouca engrenagens emperram. Por quê? Porque o réu se cala. Ele si- coisa a respeito dele, e que o que ele era quase não havia lencia a respeito de quê? Dos fatos? Das circunstâncias? Da transparecido nos interrogatórios ou nos exames psiquiátri- maneira pela qual eles se desenrolaram? Sobre aquilo que, cos. E íez esta reflexão espantosa (eu a cito de modo aproxi- naquele momento, ter-ia podido provoca-los? De forma algu- mativo): "Pode-se condenar à morte alguém que não se ma. O réu se furta ante uma questão essencial para o tribunal conhece?"i ' ' de hoje, mas que teria soado de maneira bem estranha há 1 50 A intervenção da psiquiatria no âmbito penal ocorreu no anos: "Quem é você?" início do século XIX, a propósito de uma série de casos que ti- E o diálogo que eu citava há pouco prova claramente que, a nham aproximadamente a mesma forma e se desenrolaram essa questão, não basta que o réu responda: "Pois bem, sou o entre 1800 e 1835. autor dos crimes. Isso é tudo. Julguem-me, já que vocês de- vem faze-lo, e me condenem, se quiserem." Pede-se a ele bem Caso relatado por Metzger: um velho militar que vive retira- mais: além do reconhecimento, é preciso uma confissão, um do se apega ao õllho de sua locadora. Certo dia, "sem nenhum exame de consciência, uma explicação de si, um esclareci- motivo, sem que nenhuma paixão, como a cólera, o orgulho, a mento daquilo que se é. A máquina penal não pode mais vingança, estivesse emjogo", ele se aura sobre a criança, atin- funcionar apenas com uma lei, uma infração e um autor res- gindo-a, sem mata-la, com dois golpes de martelo. ponsável pelos fatos. Ela necessita de outra coisa, de um ma- Caso de Sélestat: na Alsácia, durante o inverno muito rigo- terial suplementar; os juízes e os jurados, assim como os roso de 1817, no qual a miséria ronda, uma camponesa se advogados e o Ministério Público só podem realmente desem- aproveita da ausência de seu marido que havia saído para tra- penhar seus papéis se um outro tipo de discurso lhes é forne- balhar e mata sua filhinha, corta-lhe a perna e a cozinha na cido: aquele que o acusado sustenta sobre si mesmo, ou sopa.' aquele que ele permite, por suas confissões, lembranças, Em País, em 1825. uma criada, Henriette Cornier, procu- confidências etc., que se sustente a seu respeito. E se esse discurso vem a faltar, o presidente se obstina, o júri se irrita; ra a vizinha de seus patrões e Ihe pede insistentemente para que ela Ihe confie sua bilha durante algum tempo. A vizinha pressiona-se, incita-se o réu - ele nãojoga ojogo. Ele se asse- melha aos condenados que é preciso levar à guilhotina ou à hesita, mas consente; mais tarde, quando ela vem buscar a cadeira elétrica porque eles tremem de medo. E preciso. certa- mente, que andem um pouco com suas próprias pernas se qfauliesmer uemm vpeorudcaod edier asmi menetsem soesr esex eqcuuitsaedreoms; és eprr jeucligsaod qouse. eles 111.1 ' d1ata etad-isçeã od oõ acanscoe sPaa tdHecstka H oebnirya, s.u stentado pela Sra. Badlnte- r' v- -e-r n"g 205 lo] 2. Caso relatado primeiramente pelo Dr. Reisselsen de Estrasburgo, 'Examen E aquilo que mostra claramente que esse elemento é in- d'un cas extraordinaire d'iníhntlcide". Jàhrbuch der Sfaaísarznetkunde. J. H. dispensável à cenajudiciãria, que não é possível julgar, con- Koop editor, vol. XI. 1817. retomado por Charles Marc ín De Zalolle consídérée denar, sem que ele tenha sido fornecido de uma maneira ou d-lns ses rtif)pores auec Zes questíons médiooludicíaües, Paios. Ballhêre, 1840, de outra, é esse argumento empregado recentemente por um 4 Michel Foucault - Ditos e Escritos 1978 A Evolução da Noção de "Indivíduo Perigoso' 5 criança, Henríette Cornier acabara de mata-la cortando-lhe a São a esses casos e a outros do mesmo tipo que se referem cabeça, que jogou pela janela.' insistentemente os psiquiatras da época: Metzger, Hoffbauer, Esquirol Georget, William Ellis e Andrew Combe.4 Em Viena, Catherine Ziegler mata seu filho bastardo. No Por que, em todo o universo de crimes cometidos, foram es- tribunal, explica que uma força irresistível a impeliu a isso. Considerada louca, é absolvida e libertada da prisão. Mas ela tes que pareceram importantes, por que eles foram o que esta- va em jogo nas discussões entre médicos e juristas? declara que seria melhor manto-la ali, pois recomeçará. Dez 1) Inicialmente, é preciso observar que eles apresentam um meses depois engravida, e também mata a criança; no proces' quadro muito diferente do que havia constituído, até então, a se, declara que apenas havia ficado grávida para matar seu fi- lho. É condenada à morte e executada. jur.isprudência da loucura criminal. Esquematicamente, até o final do século XVlll, o direito penal apenas colocava a ques- Na Escócia, um tal John Howison entra em uma casa onde tão da loucura nos casos em que o Código Civil e o direito mata uma velha que não conhecia, e vai embora sem nada rou- canónico também a colocavam. Ou sqa, quando ela se apre bar e sem se esconder. Preso, nega o crime, apesar de todas as sentava na forma de demência e de debilidade mental, ou sob evidências; porém a defesa argumenta que se trata de um cri- a forma do furor. Nos dois casos, quer se tratasse de um esta- me de um louco, já que é um crime sem interesse. Howison é do deHlnitivo ou de um surto passageiro, a loucura se manifes- executado; retrospectivamente, considera-se como um sinal tava por sinais numerosos e muito facilmente reconhecíveis(a suplementar de loucura o fato de ele ter dito, nessa ocasião, a ponto de se discutir se havia verdadeiramente necessidade de um funcionário presente, que tinha vontade de mata-lo. um médico para connirmá-la). Ora, o importante é que o de- Na Nova Inglaterra, Abraham Prescott mata, em campo aber- senvolvimento da psiquiatria criminal não se realizou através to, sua mãe adotiva, com quem sempre mantivera boas relações. do aperfeiçoamento do problema tradicional da loucura (por exemplo, discutindo sobre sua evolução progressiva, seu ca- Volta para casa e se põe a chorar diante do pai adotivo; este o in- ráter geral ou parcial, sua relação com as incapacidades ina- terroga e Prescott confessa sem dMculdade seu crime. A seguir. tas dos indivíduos) ou analisando mais pormenorizadamente explica que havia sido tomado por uma súbita dor de dente e a sintomatologia do furor (suas interrupções, recídivas, inter- que não se lembrava de mais nada. O inquérito estabelecerá que valos). Todos esses problemas, com as discussões que prosse- elejá havia atacado seus pais adotivos durante a noite, mas isso guiram durante anos, foram substituídos pelo novo problema íoi atribuído a uma crise de sonambulismo. Prescott é condena- do à morte, porém ojúri recomenda ao mesmo tempo uma co- mutação da pena. Apesar disso, ele é executado. 4. Metzger(J. D.). Gerichtlích-medíchísche Beobachhngen. Kõnigsberg, J. Kanter, 1778- 1780, 2 vol. Hoffbauer (J. C.), Uhtersuchungen über dte Krank- heitenderSeele undderuerwandtenZüsfãnde, Halle, 'ltampen, 1802-1807, 3 3. Em 4 de novembro de,1825, HenHette Cornier corta a cabeça de Fanny Be vol. Esquirol (J. E. D.), l)es maZczdíes menfaZes considérées seus Zes mpporís lon, de 19 meses, que estava sob sua guarda. Após uma prlmeiravistoría con- médícal, hygíéníque et médico-legal, Pane. Bailliêre. 1838, 2 vol. Georget(E.), duzida por Adelon, Esquirol e Léveillé. seus advogados solicitaram um Exames des procês criminais des nommés IZyer, FeZdtmann, lecollÍle, Jean- parecer médico-legal a Charles Marc. Mare (C.), Ck)ruultatton médico-Zégale Herre et Pkzpauoíne, suíuí de queZques consícíéraÉfons médico-ZégaZes sur Za Zi pourHenríefte ComÍer, accusée d'homicida commÍs uolontaírement et auecpré' berté morde, Pane, Migneret, 1825. Hellis(W. C.), A beatíse on #u narre, médilatbn (1826), retomado in De [alolíe, op. cit., t. ]], ps. 71- 130. Cf. também sympfoms, caules and tFea(menu Qfírlsaniíy, wíthpractícal obseruaüons on [u- Georget (E.), Obcussbn médico légale sur lalolíe, ou alíénaHon mentale, suíue natíc asyZurns, Londres, Holdsworth, 1838 (7}aiÉé de !'aZténatün mentaZe, ou cie ['exames du procês crÍminet d'Henríeíte Comier et de plusíers auü'es procês De Za naÍure, des causas, des symíõrnes et du traítement de laloZie, trad. T. dais lesqueZs cette maZadíe a été alZéguée comme moyen de deÓense, País. Archambault, com notas de Esquirol, Paras, J. Rouvier, 1840). Combe (A.), Migneret, 1826, ps. 71-130. Obseruatíons on mental Derangement, Edimburgo, J. Anderson, 1831. 6 Michel Foucault - Ditos e Escritos 1978 A Evolução da Noção de "Indivíduo Perigoso' 7 dos crimes que não são precedidos, acompanhados ou segui- dos de nenhum dos sintomas tradicionais, reconhecidos, visí- inscritas no coração humano e que ligam as famílias e as gera- ções. A forma de crimes que, no início do século XIX, parece veis da loucura. Em cada caso, acentua-se o fato de que nada pertinente para que se coloque a seu respeito a questão da havia previamente, nenhuma perturbação anterior do pensa- loucura é, portanto, o crime contra a natureza. O indivíduo, mento ou da conduta, nenhum delírio; tampouco havia agita- no qual loucura e criminalidade se associam e colocam o pro- ção ou desordem como no furor; e de que o crime havia blema de suas relações, não é o homem da pequena desordem surgido dentro do que se poderia chamar de grau zero da lou- cura cotidiana, a pálida silhueta que se move nos confins da lei e da norma, mas sim o grande monstro. No sécu]o X]X, a psiquia- 2) O segundo traço comum é muito evidente para que se in- sista nele mais demoradamente. Não se trata de delitos leves, tria do crime se inaugurou por uma patologia do monstruoso. 4) Por fim, todos esses crimes têm em comum terem sido mas de crimes graves: quase todos assassinatos, às vezes cometidos "sem razão", isto é, sem interesse, sem paixão, sem acompanhados de estranhas crueldades (o canibalismo da motivo, embora baseados em uma ilusão delirante. Em todos mulher de Sélestat). E importante notar que essa psiquiatriza- os casos que citei, os psiquiatras insistem, parajustinlcar sua ção da delinqüência se fez, de qualquer forma, "pelo alto'. Ela intervenção, no fato de que não havia entre os parceiros do se realizou também em ruptura com a tendência fundamental drama nenhuma relação que permitisse tornar o crime inteli- dajurisprudência precedente. Quanto mais grave fosse o cri- gível. No caso de Henriette Cornier, que decapitara a filhinha me, menos convinha colocar a questão da loucura (durante de seus vizinhos, houve o cuidado de estabelecer que ela não muito tempo recusou-se a leva-la em consideração quando se tratava de um crüne de sacrilégio ou de lesa-majestade). havia sido amante do pai da menina. e que não tinha ando por vingança. No caso da mulher de Sélestat que havia cozinhado Admitia-se de bom grado que existia toda uma área comum à a coxa de sua nllha, um elemento importante da discussão foi: loucura e à ilegalidade para os delitos mais leves - pequenas havia ou não miséria na época? A acusada era pobre ou não, violências, vagabundagem - e se reagia a ela, pelo menos em estava faminta ou não? O procurador dissera: se ela fosse rica certos países como a França, pela medida ambígua da inter- seria possível considera-la louca, mas sendo miserável. ela es- nação. Ora, não foi absolutamente através dessa zona confu- tava com fome; cozinhar a perna com couve era uma conduta sa da desordem cotidiana que a psiquiatria pôde penetrar à com interesse; portanto, ela não era louca. força najustiça penal, mas sim criticando o grande aconteci- mento criminal, extremamente violento e raro. No momento em que se funda a nova psiquiatria e em que se aplicam, em quase toda parte na Europa e na América, os 3) Esses grandes assassinatos têm ainda em comum o fato de se desenrolarem no cenário doméstico. São crimes na famí- princípios da reforma penal, o grande assassinato monstruo- so, sem motivo nem antecedente, a irrupção súbita da contra- lia, em casa, ou ainda na redondeza. Pais que matam sua pro- natureza na natureza é então a forma singular e paradoxal le, filhos que matam seus pais ou protetores, empregados que sob a qual se apresenta a loucura criminal ou o crime patoló- matam o HUho do patrão ou do vizinho etc. Como vemos, são gico. Digo paradoxal, já que o que se tenta apreender é um crimes que colocam frente a frente parceiros de diferentes ge- tipo de loucura que apenas se manifestada no momento e nas rações. O par criança-adulto ou adolescente-adulto quase formas do crime, uma loucura que só teria por sintoma o pró- sempre está presente. Isso porque as relações de idade, de lu- prio crime, e que poderia desaparecer uma vez que este fosse gar, de parentesco valem, na época, como as relações ao mes- cometido. E, inversamente, trata-se de situar crimes que têm mo tempo mais sagradas e mais naturais, também como as mais inocentes, aquelas que, de todas, devem ser as menos por motivo, para o autor, para o "responsável jurídico", aquilo que, de qualquer forma, no sujeito, está fora de sua responsa- investidas de interesse e de paixão. Menos do que crimes bilidade; ou sqa, a loucura que nele se esconde e que ele não contra a sociedade e suas regras, esses são crimes contra a pode dominar, pois muito freqüentemente não tem consciên- natureza, contra essas leis que acreditamos imediatamente cia dela. O que a psiquiatria do sécu]o X]X inventou foi esta 1978 A Evolução da Noção de "Indivíduo Perigoso' 9 8 Michel Foucault - Ditos e Escritos ternação, entre delinqüentes e doentes. Por que voltar a ata entidade absolutamente fictícia de um crime louco, um crime um parentesco que fora tão difícil desatar? que seria inteiramente louco, uma loucura que nada mais é do Não basta invocar não sei qual imperialismo dos psiquia- que crime. Aquilo que, por mais de meio século, foi chamado tras (buscando anexar um novo campo), ou mesmo um dina- de monomania homicida. Não se trata de retraçar aqui os mismo interno do saber médico (buscando racionalizar o antecedentes teóricos dessa noção, nem de acompanhar os campo confuso em que sé mesclam a loucura e o crime). Se o inúmeros debates que ela propiciou entre homens de lei e mé- crime se tornou uma aposta importante para os psiquiatras é dicos, advogados e juízes. Gostaria apenas de enfatizar este porque se tratava menos de um campo a conquistar do que fato estranho: os psiquiatras buscaram, com muita obstina- uma modalidade de poder a garantir e a justificar. Se a psi- ção, tomar parte dos mecanismos penais, reivindicaram seu quiatria se tornou tão importante no século XVlll não foi direito de intervenção não indo buscar, em torno dos crimes simplesmente porque ela aplicava uma nova racionalidade mais cotidianos, os mil pequenos sinais visíveis de loucura médica às desordens da mente ou da conduta, foi também que podem acompanha-los, mas sim pretendendo - o que era porque ela funcionava como uma forma de higiene pública. exorbitante - que havia loucuras que apenas se manifestavam O desenvolvimento, no século XVlll, da demogranla, das es- nos crimes exorbitantes, e em nenhum outro lugar. Gostaria truturas urbanas, do problema da mão-de-obra industrial de sublinhar este outro fato: apesar de todas as reticências em havia feito aparecer a questão biológica e médica das "popula- aceitar a noção de monomania, os magistrados da época aca- ções" humanas, com suas condições de vida, de moradia, de baram aceitando a análise psiquiátrica dos crimes a parar alimentação, com sua natalidade e mortalidade, com seus dessa noção tão estranha e para eles tão inaceitável. fenómenos patológicos (epidemias, endemias, mortalidade in- Por que essa grande ficção da monomania homicida foi a fantil). O "corpo" social deixa de ser simples metáfora jurídi- noção-chave na proto-história da psiquiatria criminal? co-política(como a que encontramos no l.euíatã') para surgir A prüneü'a séüe de questões a propor é sem dúvida a se- como uma realidade biológica e um campo de intervenção mé guinte: no início do século }(IX, quando a tareia da psiquiatria dica. O médico deve ser então o técnico do corpo social, e a era definir sua especificidade no domínio da medicina e fazer medicina, uma higiene pública. A psiquiatria, na virada entre reconhecer sua cientiOicidade entre as outras práticas médicas, os séculos XVlll e XIX, conseguiu sua autonomia e se revestiu nesse momento então em que a psiquiatria se institui como es de tanto prestígio pelo fato de ter podido se inscrever no pecialidade médica (até então ela era mais um aspecto do que âmbito de uma medicina concebida como reação aos perigos um campo da medicina), por que ela quis se intrometer em inerentes ao corpo social. Os alienistas da época puderam dis- uma área na qual, até então, ela havia intervindo com muita cutir interminavelmente sobre a origem orgânica ou psíquica discrição? Por que os médicos se obstinaram tanto em reivindi- das doenças mentais, propor terapêuticas físicas ou psicológi- car como loucos sujeitos que tinham sido até então considera- cas: através de suas divergências, todos eles tinham consciên- dos, sem nenhum problema, simples criminosos? Por que os cia de tratar um "perigo" social, sqa porque a loucura lhes vemos, em tantos países, protestar contra a ignorância médica parecia ligada a condições insalubres de vida (superpopula- dosjuízes ejurados, solicitar o perdão ou a comutação da pena ção, promiscuidade, vida urbana, alcoolismo, libertinagem) , de certos condenados, reclamar o direito de serem ouvidos seja ainda porque ela era percebida como fonte de perigos como peritos pelos tribunais, publicar centenas de pareceres e estudos para mostrar que este ou aquele criminoso era louco? Por que essa cruzada em prol da patologização do crime, e isto 5. Hobbes (1'.), 1,euíathan, or T7e manter,Joml and l)Quer alfa commonweaZfh sob a bandeira dessa noção de monomania homicida? O fato é ecclesÍastícaZ and cíuit, Londres, Andrew Crooke, 1651(1.éuiathan. D'aité de Za ainda mais paradoxal porque, bem pouco tempo atrás, no final rnatíêre, de [alomta etdupouuoírde Za rÉpubZíque eccZésiastfque ef cíuile, trad. do século XVlll, todos os primeiros alienistas(Pinel, sobretudo) F. T\icaud, Paria, Sirey, 1971). protestam contra a confusão, praticada em muitos locais de in- 0 1 Michel Foucault - Ditos e EscHtos 1978 A Evolução da Noção de "Indivíduo Perigoso' 11 (para si mesmo, para os outros, para o meio e também para a aclimatação se deu tão facilmente? Ou, em outras palavras, descendência, através da hereditariedade). A psiquiatria do por que a instituição penal que tinha podido durante tantos século XIX, pelo menos tanto quanto uma medicina da alma séculos prescindir da intervenção médica, que tinha podido individual, íoi uma medicina do corpo coletivo. julgar e condenar sem que jamais o problema da loucura ti- Compreende-se a importância que podia ter para essa psi- vesse sido posto, exceto em alguns casos evidentes, por que qcaui actormia od eam monosntroamr aa neixai shtêonmciiac iddea .a lCgoummpar ceoeinsad etã-ose f apnotráqsutei-, ela recorreu ao saber médico a partir da década de 1 820? Pois não devemos nos enganar: juízes ingleses, alemães, italianos, durante meio século, se tentou incessantemente aplicar essa franceses, da época, muito õeqüentemente se recusaram a noção, apesar de sua pequenajustificativa científica. De fato, seguir as conclusões dos médicos, rqeitaram muitas noções a monomania homicida, se existe, mostra que: que estes lhes propunham. No entanto, eles não foram violen- 1) em algumas de suas formas puras, extremas, intensas, a tados pelos médicos. Eles próprios solicitaram - de acordo loucura é inteiramente crime, e nada mais do que crüne; por- com as leis, as regras, as jurisprudências que variam de país tanto, pelo menos nos limites últimos da loucura, hã o crime; para país - o parecer devidamente formulado dos psiquiatras, 2) a loucura é capaz de acarretar não simplesmente desor- e eles o solicitaram sobretudo a propósito desses famosos cri- dens da conduta, mas o crime absoluto, aquele que ultrapas- mes sem motivo. Por quê? sa todas as leis da natureza e da sociedade; E porque os novos Códigos redigidos e postos em pratica, 3) essa loucura, que pode ser de uma intensidade extraor- um pouco por todo canto, nesse início do século XIX, davam dinária, pode permanecer invisível até o momento em que lugar ao perito psiquiátrico, ou davam uma nova importância eclode; portanto, ninguém pode prevê-la, exceto aquele que ao problema da irresponsabilidade patológica? De forma algu- tem um olhar adestrado, uma longa experiência, um saber ma. E mesmo surpreendente constatar que essas novas legis- bem armado. Em suma, apenas um médico especialista pode lações quase não modificaram o estado de coisas precedente: perceber a monomania (eis por que, de uma maneira que só é a maioria dos Códigos do tipo napoleónico retomava o velho contraditória aparentemente, os alienistas definiram a mono- princípio de que o estado de loucura é incompatível com a res- mania como uma doença que apenas se manifesta no crime, ponsabilidade, e que ele exclui suas consequências; do mes- reservando-se, no entanto, o poder de determinar seus sinais mo modo, a maior parte retomava as noções tradicionais de premonitórios, suas condições predisponentes) . demência e de furor que tinham sido utilizadas nos antigos É preciso, porém, colocar uma outra questão, situando-se sistemas de direito. Nem os grandes teóricos, como Beccaria e dessa vez do lado dos magistrados e do aparelho judiciário. Bentham, nem os que de fato redigiram as novas leis penais Por que eles aceitaram, senão a noção de monomania, pelo buscaram elaborar essas noções tradicionais, nem organizar menos os problemas a ela relacionados? Poderíamos dizer que novas relações entre punição e medicina do crime - a não ser seguramente a grande maioria dos magistrados recusou reco- para afirmar, de modo muito geral, que a justiça penal deve nhecer essa noção, que permitia fazer de um criminoso um curar esta doença das sociedades que é o crime. Não foi "por louco que apenas tinha por doença cometer crimes. Com mui- cima" por intermédio dos Códigos ou dos princípios teóricos ta obstinação e - podemos dizer - com um certo bom senso, - que a medicina mental penetrou na penalidade. Foi antes eles üueram de tudo para afastar essa noção que os médicos 'por baixo" do lado dos mecanismos da punição e do sentido lhes propunham e da qual os advogados se serviam esponta- que lhes foi atribuído. Punir tornou-se. dentre todas as novas neamente para defender seus clientes. E, no entanto, através técnicas de controle e de transformação dos indivíduos, um desse debate sobre os crimes monstruosos, sobre os crünes conjunto de procedimentos orquestrados para modificar os sem motivo", a ideia de um parentesco sempre possível entre infratores: o exemplo aterrorizante dos suplícios ou a exclu- loucura e delinquência pouco a pouco íoi aclimatada ao pró- são pelo banimento não podiam mais bastar em uma socieda- prio exterior da instituiçãojudiciária. Por que, em suma, essa de na qual o exercício do poder implicava uma tecnologia 1978 - A Evolução da Noção de "Indivíduo Perigoso' 15 14 Michel Foucault - Ditos e Escritos imputabilidade de uma inflação, de que seu autor fosse livre, ponsável aparecerá como punível. E a justiça então aceitará consciente, não atingido pela loucura, sem nenhuma crise de se desincumbir dele por ser louco, confiando-o à prisão psi- furor. Atualmente, a responsabilidade não está mais ligada quiátrica. apenas a essa forma da consciência, mas sim à inteligibilida- Ê possível tirar disso várias conclusões: de do ato referida à conduta, ao caráter, aos antecedentes do 1) A intervenção da medicina mental na instituição penal, a indivíduo. O indivíduo aparecerá tanto mais responsável por partir do século )<lX, não é a conseqüência ou o simples de seu ato quanto mais estiver ligado a este por uma detemlina- senvolvimento da teoria tradicional da irresponsabilidade dos ção psicológica. Quanto mais um ato for psicologicamente dementes e dos furiosos. determinado, mais seu autor poderá ser considerado penal- 2) Ela é conseqüência do ajustamento de duas necessida- mente responsável por ele. Quanto mais um ato for de alguma des que decorriam, uma, do funcionamento da medicina como forma gratuito e indeterminado, mais existirá a tendência a higiene pública, e outra, do funcionamento da punição legal desculpa-lo. Paradoxo, portanto: a liberdade jurídica de um como técnica de transformação individual. sujeito é demonstrada pelo caráter determinado de seu ato; 3) Essas duas novas exigências se ligam ambas à transfor- sua irresponsabilidade é provada pelo caráter aparentemente mação do mecanismo de poder através do qual, desde o século não necessário de seu gesto. Com esse paradoxo insustentá XVlll, tenta-se controlar o corpo social nas sociedades de tipo vel da monomania e do ato monstruoso, a psiquiatra e ajusti- industrial. Porém, apesar dessa origem comum, os motivos da ça pena[ entraram em uma fase de incerteza, da qual ainda intervenção da medicina no âmbito criminal e os motivos da estamos longe de sair: osjogos da responsabilidade penal e da justiça penal de recorrer à psiquiatria são essencialmente di- detemUnação psicológica se tornaram a cruz do pensamento ferentes. jurídico e médico. 4) O crime monstruoso, simultaneamente contra a nature za e sem motivo. é a forma sob a qual acabam coincidindo a $ demonstração médica de que a loucura é, no limite, sempre perigosa e a impotênciajudiciária em determinar a punição de Gostaria de me situar agora em um outro momento parti- um crime sem ter determinado seus motivos. A bizarra sinto- cularmente fecundo para as relações entre a psiquiatria e o di- matologia da monomania homicida foi esboçada no ponto de reito penal: os últimos anos do século XIX e os primeiros do convergência desses dois mecanismos. XX, entre o l Congresso de Antropologia Cüminal (1885) e a 5) Encontra se assim inscrito, tanto na instituição psiquiá- publicação por Prins da D(Í#erlse socíaZe (19 1 0).6 trica como na judiciária, o tema do homem perigoso. Cada vez O que se passou entre o período que eu evocava anterior- mais a prática, e depois a teoria penal, tenderá, no século XIX mente e este do qual gostaria de falar agora? e mais tarde no XX, a fazer do indivíduo peügoso o principal Inicialmente, na ordem da psiquiatria propriamente dita, a alvo da intervenção punitiva. Cada vez mais, por seu lado, a noção de monomania foi abandonada, não sem hesitação e re- psiquiatria do século XIX tenderá a procurar os estigmas pa- torno, pouco antes de 1870. Abandonada por duas razões. tológicos que podem marcar os indivíduos perigosos: loucura Em primeiro lugar porque a ideia, em suma negativa, de uma moral, loucura insUntiva, degeneração. Esse tema do indiví- loucura parcial, agindo apenas em um ponto e se desencade- duo perigoso dará origem, por um lado, à antropologia do ho- ando somente em certos momentos, foi substituída pela ideia mem criminoso com a escola italiana e, por outro, à teoria da defesa social representada inicialmente pela escola belga. 6) Porém - outra consequência importante - veremos se 6. 1 Congresso ]ntemaciona] de Anta'apologia Crüninal(Romã, novembro de transformar consideravelmente a antiga noção de responsabi- 1885), Aches du congros, Turlm, 1886. Prins (A.), l,a dé#ense socÍaZe et ies lidade penal. Esta, pelo menos em certos lugares, ainda esta- [rans#i)mtatíons du droíf pénaZ, Bruxe]as, Misch e ']bron, 1910. va próxima do direito civil: por exemplo, a necessidade, para a 1 6 Michel Foucault - Ditos e EscHtos 1978 - A Evolução da Noção de "Indivíduo Perigoso' 17 de uma doença mental que não era necessariamente um dano de sua criminalidade. Daí o labirinto infinito em que se viu en- do pensamento ou da consciência, mas que pode prqudicar a volvido o problemajurídico e psiquiátrico do crime: se um ato afetividade, os instintos, os comportamentos automáticos, é determinado por um nexos causal, é possível considera-lo deixando quase intactas as fomlas do pensamento (o que foi livre; ele implicaria a responsabilidade? Para que se possa chamado de loucura moral, loucura instintiva, aberração dos condenar alguém, é necessário que seja impossível recons- instintos e, finalmente, perversão corresponde a essa elabora- truir a inteligibilidade causal de seu ato? ção que, desde a década de 1840 aproximadamente, escolheu Ora, no pano de fundo dessa nova maneira de colocar o como exemplo privilegiado os desvios da conduta sexual). Mas problema, é preciso mencionar as inúmeras transformações a monomania foi também abandonada por outro motivo: a que foram, pelo menos em parte, sua condição de possibilida- idéia de doenças mentais com evolução complexa e polimorfa de. Inicialmente, um desenvolvimento intenso do esquadri- que podem apresentar esse ou aquele sintoma particular em nhamento policial na maior parte dos países da Europa, o que tal ou tal estágio de seu desenvolvimento, e isto não apenas na acarretou, em paxUcular, um remanejamento e a instituição escala de um indivíduo, mas também na escala das gerações - da vigilância urbana, o que também redundou na perseguição ou sqa, a ideia de degeneração. muito mais sistemática e eficaz da pequena delinquência. Ê Pelo fato de se poder definir essa grande raminlcação evoluti- preciso acrescentar que os conflitos sociais, as lutas de clas- va, já não era mais preciso opor os grandes crimes monstruo- ses, os confrontos políticos, as revoltas armadas - desde os sos e misteriosos, que remeteríam à violência incompreensível destruidores de máquinas do início do século aos anarquistas da loucura e ao pequeno delito, muito freqüente e familiar para dos últimos anos, passando pelas greves violentas, as revolu- que se tenha necessidade de recorrer ao patológco. Desde en- ções de 1848 e a Comuna de 1 870 - incitavam os poderes a as- tão, quer se tratasse de incompreensíveis massacres ou de pe- similar, para desacredita-los, os delitos políticos ao crime de quenos delitos (relativos à propriedade ou à sexualidade), de direito comum. qualquer modo, é possível supor uma perturbação mais ou me E preciso acrescentar a isso um outro elemento: o fracasso nos grave dos instintos ou dos estágios de um desenvolvimento renovado e constantemente apontado do aparelho penitenciá- interrompido (assim, vemos surgir no campo da psiquiatra rio. O sonho dos reformadores do século XVlll e dos filantro- legal as novas categorias da necroíilia, por volta de 1840, da pos da época seguinte era o de que a prisão, desde que ela cleptomania, em torno de 1860, do exibicionismo, em 1876; ou fosse racionalmente dirigida, tivesse o papel de uma verdadei- ainda a consideração, por essa psiquiatria, de comportamentos ra terapêutica penal; a recuperação dos condenados deveria tais como a pederastia ou o sadismo). Há, portanto, pelo menos ser seu resultado. Ora, logo se percebeu que a prisão levava a em princípio, um confínuum psiquiátrico e criminológico, que um resultado exatamente oposto, que ela era antes escola de permite interrogar em termos médicos qualquer grau da escala delinqtlência, e que os mais refinados métodos do aparelho penal. A questão psiquiátrica não é mais situada em alguns policial ejudiciário, longe de garantirem uma melhor proteção grandes crimes; mesmo que se deva dar a ela uma resposta ne- contra o crime, levavam, pelo contrário, por intermédio da pri- gativa, convém situa-la dentre todo um domínio das infrações. são, a um reforço do meio criminoso. Ora, isso tem conseqtlências importantes para a teoriaju Havia, assim. por toda uma série de motivos, uma situação radica da responsabilidade. Na concepção da monomania, a tal em que existia uma fortíssima demanda social e política de hipótese patológica se formava ali onde, justamente, não ha- reação ao crime e de repressão, e na qual essa demanda in via motivo para um ato; a loucura era a causa daquilo que não fluía uma originalidade pelo fato de que ela devia ser pensada Unha sentido, e a irresponsabilidade se estabelecia nessa de- em termos jurídicos e médicos; no entanto, a peça central da fasagem. Porém, com essa nova análise do instinto e da afeti- instituição penal, desde a Idade Média ou sqa, a responsabi- vidade, haverá a possibilidade de uma análise causal de todas lidade -, parecia totalmente inadequada para pensar esse do- as condutas, delinquentes ou não, qualquer que sqa o grau mínio tão amplo e complexo da criminalidade médico-legal.

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