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Direito à terra no Brasil - As Origens do Conflito (1795-1850) PDF

147 Pages·2012·0.841 MB·Portuguese
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Direito à terra no Brasil A gestação do conflito 1795-1824 Direito à terra no Brasil A gestação do conflito 1795-1824 Márcia Maria Menendes Motta Copyright © 2012 Márcia Maria Menendes Motta Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, que entrou em vigor no Brasil em 2009. Publishers: Joana Monteleone/ Haroldo Ceravolo Sereza/ Roberto Cosso Edição: Joana Monteleone Editor assistente: Vitor Rodrigo Donofrio Arruda Projeto gráfico: Christopher Franquelin Diagramação: Pedro Henrique de Oliveira/ João Paulo Putini Capa: Pedro Henrique de Oliveira Revisão: Daniela Fernandes Alarcon / Rogério Chaves Assistente de Produção: Juliana Pellegrini Imagem da capa: Agrupamento dos índios Bororos do acampamento Pau seco, entre os riachos Paraguai e Jaurú. Aimé-Adrien Taunay, 1827. Aqui vAi fichA dA 2ª edição Para Duda, que me ensinou a ser “menina”. AlAmedA CAsA editoriAl Rua Conselheiro Ramalho, 694 – Bela Vista CEP 01325-000 – São Paulo – SP Tel. (11) 3012-2400 www.alamedaeditorial.com.br S umário Prefácio 9 Abreviaturas 13 Introdução 15 Parte 1 25 Memorialistas e jurisconsultos: agricultura e direito à terra em Portugal As sesmarias: origem e consolidação de um costume 27 O direito em disputa: posse e propriedade em fins do século XVIII 55 Parte 2 79 Sesmarias e poder no período mariano O alvará de 1795: exemplo emblemático do período mariano 81 O governador Francisco Mauricio de Sousa Coutinho 103 e o sistema de sesmarias Parte 3 127 Sesmarias: império e conflito A lei de sesmarias e a ocupação colonial: sobre as leis 129 As concessões no período mariano: mapeamento e indicações regionais 153 A Coroa intervém: as concessões emblemáticas 177 Parte 4 199 Sesmarias e a trajetória da Independência do Brasil Direito e visão sobre sesmarias nos anos vinte 201 A concessão de sesmarias na territorialização da Coroa (1808/1824) 231 Considerações finais 261 Bibliografia 269 Fontes 281 PreFáCIO Q uase não se passa um dia sem que o noticiário brasileiro registre pro- blemas envolvendo o uso da terra entre nós: são os abris vermelhos, os maios vermelhos, numa invocação ambígua que remete ao sangue e ao socialismo, evidenciando o caráter visceralmente conservador da nossa mí- dia e, via de regra, deixando para segundo plano o X da questão. E isso num país imenso, cortado por rios há até bem pouco tempo incontestavelmente caudalosos, sem registros, também até há pouco, de catástrofes climáticas que de fato merecessem essa designação – terremotos, tufões, tsunamis e todo o séquito de flagelos que não poupam outras partes do planeta. Tiradentes achava, conforme os Autos da Devassa da Inconfidência Mineira, que o país era “florente” e poderia ser grande em todos os sentidos, não fossem os portu- gueses a carregar tudo quanto era riqueza para o lado de lá do Atlântico, chupando, como esponjas perversas, o que por aqui se produzia. No processo doloroso de fazer emergir uma nação onde antes tinha havido sujeição política, dependência econômica, mão de obra cativa e vas- tidões incomensuráveis de terra, os brasileiros se acostumaram a culpar os portugueses. Que Tiradentes e outros como ele o fizessem é compreensível: estavam no seu papel e no seu tempo, que era de revolucionários e, logo depois, de nacionalismos, com as antigas estruturas ruindo, como viu Alexis de Tocqueville, por toda a parte; as possessões lusas na América ganhando um vulto impossível de equiparar com a sombra raquítica do paizinho euro- peu, havia muito encalacrado num beco aparentemente sem saída. Que se continuasse, sem descanso, acionando o mesmo argumento – está-se a me- nos de quinze anos de comemorar dois séculos de independência – merece, entretanto, reflexão mais demorada. O atraso? Culpa de Portugal, beirada da Europa sempre prestes a despencar no abismo. A escravidão? Culpa de Portugal, que a reinventou, piorada, na época dos descobrimentos. Tivesse a França Antártica permanecido na Baía de Guanabara, no tempo de Vil- 11 12 Márcia Maria Menendes Motta direito à terra no Brasil 13 legagnon; tivessem as Províncias Unidas dos Países Baixos – como então se manipulavam, acumulando a posse de propriedades para depois batalhar sua chamava a Holanda de hoje – fincado o pé em Pernambuco mesmo após a legalização, como Inácio Correia Pamplona e Garcia Paes Leme. partida de Maurício de Nassau, ou tivesse, quem sabe, a Grã-Bretanha, em O nervo do problema reside no largo espectro de concepções e definições retaliação, ocupado a costa brasileira caso Dom João não houvesse trocado que, ao longo dos séculos, procuraram dar conta do fenômeno sesmarial. A Lisboa pelo Rio e tudo, com certeza, seria diferente. rigor, e antes de tudo, as sesmarias foram, de início, concebidas como por- Como nada disso aconteceu, constituindo, no máximo, matéria para ções de terra doadas pela Coroa com o intuito de incrementar a agricultura, romances ou elocubrações contra-factuais, cabe examinar as evidências his- chicoteada, em Portugal como em todo o Ocidente, pela crise do século XIV. tóricas e tentar avançar um pouco no entendimento do nosso infortúnio. Tinham de ser cultivadas, caso contrário as autoridades competentes podiam Para tanto, Direito à terra no Brasil: a gestação do conflito, de Márcia Maria Me- redistribuí-las para quem as utilizasse devidamente. O reino era pequeno, o nendes Motta, fornece munição das melhores. Com sua tese de doutorado, território bem conhecido e palmilhado, os limites geográficos bem definidos: publicada em 1998, a autora já tinha se consagrado estudiosa do problema na conquista americana, imensa, incógnita e com as fronteiras fluidas ou fundiário no Brasil. Nas fronteiras do poder tratava das questões relativas aos abertas, tudo mudava de figura. Logo as sesmarias, ou melhor, a posse delas, conflitos sociais e políticos associados à posse e à propriedade da terra na concentrou-se nas mãos de poucos, desvirtuando-se o sentido antigo da lei. antiga província do Rio de Janeiro, mais especificamente em Paraíba do Contudo, para complicar as coisas e porque as dimensões das terras doadas Sul, e revelava uma pesquisadora meticulosa que, ao mesmo tempo, não se variavam no tempo e, sobretudo, no espaço, houve pequenos proprietários esquivava dos debates espinhosos próprios ao assunto. Ali, a temporalidade que, da mesma forma, possuíram sesmarias, enfrentando-se com os graú- era a do século XIX, quando o império patinava entre o problema da terra e dos, mas também, como eles, perseguindo o reconhecimento de suas posses, o da mão de obra, esquartejado entre os preceitos liberais e os conservado- enviando para o Conselho Ultramarino, em Lisboa, papéis acumulados por res – que, como se sabe, nem sempre seguiam o ideário original, europeu, gerações de lavradores. alterando a ordem dos fatores e, ao arrepio da aritmética, baralhando os As sesmarias, portanto, tiveram significação distinta de um lado e de produtos. O recorte era mais preciso, a abordagem mais vertical. outro do Atlântico, no reino e nas conquistas, na metrópole e na colônia Nove anos depois, obstinada, como todo historiador digno do nome, em americana. Em Portugal, importaram muito menos que no Brasil, onde, desbravar o passado para melhor entender – e suportar – o presente, Márcia após terem sido um dos vetores do processo de colonização, mantiveram- Motta traz a público uma investigação sobre a genealogia, ou uma das ge- se na gênese do fenômeno da injustiça fundiária. Mesmo assim, a inde- nealogias possíveis, do terrível problema fundiário que flagela o país. A tem- pendência chegou para piorar o panorama, o ideário liberal consagrando poralidade é longa, cinco séculos, mas entrecortada por conjunturas muito a propriedade privada absoluta e varrendo para longe a obrigatoriedade específicas, que funcionam como incisões inscritas sobre um mesmo tecido, dos cultivos, que, aliás, pouco se aplicou nas terras luso-americanas: sua no qual vão deixando marcas: do tempo do rei Dom Fernando, em 1375, ao lógica era outra, remetendo às tradições comunais da Idade Média. Por tempo dos deputados às Cortes portuguesas e da independência, entre 1820 isso, nada há de paradoxal no fato de, em Portugal, o costume valori- e 1824, a lei de sesmarias e a regulamentação da terra se perpetuaram apesar zar a ocupação tradicional das terras e a lei proclamar a obrigatoriedade de releituras, adendos, alterações, ressignificações. Por meio de recortes, a do cultivo, ao passo que, no Brasil, o costume – ou seja, a tradição da autora nos introduz os agentes dessas clivagens, homens que sugeriam al- posse – favorecer sobretudo os poderosos, reforçando ainda mais a sua terações na lei – como Domingos Vandelli, Mello Freire, Francisco Mauricio preeminência. Por isso, também, quando, com a independência, o direito de Sousa Coutinho, José Bonifácio de Andrada e Silva – e homens que a procurou domesticar o costume, a consolidação da propriedade fundiária 14 Márcia Maria Menendes Motta plena teve por objetivo afastar as ameaças potenciais representadas pelos AbreVIAturaS lavradores empobrecidos. Transitando com desenvoltura entre os preceitos da história social de Edward P. Thompson, os estudos sociológicos e antropológicos sobre a terra e uma tradição de historiografia agrária bem enraizada nas universi- dades cariocas e fluminenses, Márcia Motta escreveu um livro esclarecedor, útil, atual e, de quebra, baseado em copiosa pesquisa documental. Um livro ANTT – Arquivo Nacional da Torre do Tombo que desconstrói afirmações bem estabelecidas na historiografia brasileira e, com elegância, avança no entendimento de um dos problemas centrais do AHU – Arquivo Histórico Ultramarino nosso passado, obrigando a pensar. Não adianta seguir imputando inven- tários de desgraças à colonização portuguesa, e, aqui, Márcia é mais que BN – Li – Biblioteca Nacional - Lisboa convincente ao mostrar como desvirtuamos e reinventamos uma lei que, em Portugal, desempenhou papel bem mais digno e, ainda por cima, foi BN – Rj – Biblioteca Nacional - Rio De Janeiro um avanço no seu tempo. Com boa régua e bom compasso, traçamos uma geometria infernal, por nossa conta e risco. IHgB – Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro Uma outra mania nacional é a queixa de que o brasileiro – como se ele fosse uma entidade outra, diversa de nós mesmos – não tem memória. AcL – Academia Real de Ciências de Lisboa Além da história meticulosa dos usos, costumes e práticas de utilização da terra, a pesquisa de Márcia Motta remete às construções feitas sobre es- Amo – Arquivo do Ministério das Obras Públicas sas utilizações, lembrando-nos que somos responsáveis pela nossa história. Oferece-nos, por tudo isso, um trabalho de historiador, na melhor acepção AN – Arquivo Nacional - Brasil da palavra. São Paulo, abril de 2007. Laura de Mello e Souza Universidade de São Paulo 15 IntrODuçãO R esultado de uma conjuntura extremamente complexa, as sesma- rias foram instituídas em Portugal, em 1375 para fazer face à crise do século XIV em seus múltiplos desdobramentos. Em meados daquele século, a crise econômica então presente foi agravada pela peste negra. A doença e os surtos endêmicos posteriores abateram profundamente a sociedade portuguesa, tanto nas áreas urbanas quanto nas rurais. A fuga dos trabalhadores para os centros urbanos, em busca de melhores condi- ções de vida, reverteu-se num agravamento ainda maior da crise, pois a carência de mão de obra no campo reduzia ainda mais a produção agrí- cola. Em todas as regiões de Portugal, do norte ao sul do pequeno país, o despovoamento era a regra. Assim, na intenção primeira de estimular a agricultura, obrigando o cultivo em terras abandonadas, foi promulgada a lei de 1375 – para muitos, uma lei agrária.1 A lei de sesmarias visava coagir o proprietário de terras a cultivá-las, sob pena de expropriação. Ela intentava estimular a produção de cereais e inibir a fuga de trabalhadores rurais, a partir de uma série de procedi- mentos ali expressos. A lei inaugurava o princípio da expropriação da terra, caso não fosse ela aproveitada. Não se referia às terras virgens e em áreas despovoadas. Antes disso, ela visava, sobretudo, repor em cultivo as terras antes trabalhadas. Ao salvaguardar – em princípio – o direito à terra dos antigos proprietários, instituíram-se procedimentos para que eles fossem avisados da intenção de expropriação, garantido assim seu direito pretérito, mas impondo o cultivo de terras abandonadas. Para José Serrão, a lei de sesmarias, “associada às múltiplas disposições de caráter local que se prolongaram até, pelo menos, 1 Segundo as Ordenações Filipinas, “sesmarias são propriamente as datas de terras, casais ou pardieiros que foram ou são de alguns senhorios e que já em outro tempo foram lavradas e aproveitadas e agora não o são”. Livro Quarto das Ordenações Filipinas, p. 822. 17 18 Márcia Maria Menendes Motta direito à terra no Brasil 19 os finais do século XV, tinha o seu aspecto revolucionário, o seu ar de ‘re- vel, ainda que sujeito a algumas restrições. Assim, já em tempos remotos forma agrária’ avant la lettre”.2 a sesmaria transformava-se numa propriedade, subordinada às condições Em trabalho considerado um marco na historiografia portuguesa, Vir- conjunturais, cujo denominador comum teria sido a questão do cultivo. gínia Rau afirmou que “[…] mais como medida de colonização interna do A obrigatoriedade do cultivo implicava também em representações, que como lei agrária as sesmarias sobreviveram, bem que, até certo pon- pedidos e queixas formulados pelos conselhos em relação ao descumpri- to, fossem assaz propícias ao desenvolvimento da agricultura”.3 Mas, ainda mento da exigência. No Algarve, por exemplo, em 1392, “o concelho de assim, fica a pergunta: como verificar sua eficácia no tempo, posto que Tavira insurgiu-se contra aqueles que tendo recebido sesmarias as não ela permaneceu em vigor durante um longo período? Sabe-se ainda muito lavravam e exigiam certa prestação daqueles que o queriam fazer”.8 Em pouco sobre ela, “até que ponto foi cumprida para uma reestruturação da alguns lugares da província do Alentejo também surgiram protestos. Em propriedade e para uma debelação da crise”.4 outras regiões, havia críticas em relação aos procedimentos dos sesmeiros Naquele estudo, Virgínia Rau destacou que a primitiva lembrança da (aqui, refere-se ao que doam a terra), sem que fossem ouvidos os donos aquisição de direitos sobre a terra mediante o cultivo não seria esquecida de bens ali localizados. Ainda segundo Rau, em meados do século XV, “já e teria sido transmitida por séculos.5 Além disso, destacou que a ideia existiam agravos do povo contra a forma por que se davam sesmarias, e de tirar a terra aos proprietários que a não cultivassem era muito antiga contra o fato de não serem dadas também às terras da Coroa ou das igrejas em Portugal. Na verdade, tal noção remontava aos tempos do império quando não aproveitadas”.9 romano e do Código Justiniano, no qual, segundo Gama Barros,6 estava No entanto, a despeito das queixas, há evidências de que as sesmarias presente a determinação. eram bem aceitas pela população em geral. “Tudo quanto sabemos sobre Antes mesmo de ser um instrumento de colonização no ultramar, as ses- as sesmarias, e o próprio silêncio de numerosas vilas e cidades onde elas marias foram utilizadas em Portugal para promover a colonização, inclusive vigoravam, é assaz lucidativo.” E continua Rau: “A não ser em Aveito, que em zonas fronteiriças. Assim, por exemplo, na aldeia de Medelim, no termo da desconhecia e repudiava a sua prática, e Trancoso que contra ela protes- vila de Monsanto, as guerras com Castela provocaram o decréscimo da popula- tou com rara perspicácia, as outras terras do reino quase não reagiram”. ção local em meados do século XV. Para estimular o retorno ou a ida de traba- Apoiando-se no texto de Gama Barros, conclui a autora: lhadores rurais à região, D. Afonso V, em 1450, doou terras de sesmarias.7 A despeito das dúvidas de Virgínia Rau acerca do caráter do direito Para alguns concelhos em particular, as sesmarias mereciam legado pela sesmaria, há fortes indícios de que desde cedo o que se trans- aplauso, pois requeriam ao rei que estendesse o seu uso ao mitia – em grande parte das doações – era um domínio perpétuo e aliená- território deles, ou solicitavam autorização para as mandarem pôr em prática. […] Se, porém não as aplaudiam, também não era, em relação às sesmarias, contra a lei em si mesma que, 2 Joel Serrão. Dicionário de história de Portugal. Porto: Livraria Figueirinhas, s/d, p. 544. em capítulos gerais ou especiais, os concelhos se manifestavam 3 Virgínia Rau, Sesmarias medievais portuguesas. Lisboa, Editorial Presença, 1982, p 143. mais vezes, mas sim contra os executores e os abusos vários 4 Joel Serrão, op. cit. que à sombra dela se praticavam.10 5 Segundo Rau, “o vestígio mais remoto que se conserva de uma terra ter sido tirada ao seu dono por este não a cultivar, é o que foi registrado pelo autor da Memória para a História da Agricultura em Portugal e atribuído ao reinado de D. Afonso I”. Rau, op. cit., p. 69. 8 Ibidem, p. 126. 6 Apud Rau, Ibidem. 9 Ibidem, p. 134. 7 Ibidem, p. 113. 10 Ibidem, p. 141.

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