Universidade de São Paulo Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas Programa de Pós-Graduação em História Social Luis Henrique Menezes Fernandes Diferença da Cristandade A controvérsia religiosa nas Índias Orientais holandesas e o significado histórico da primeira tradução da Bíblia em português (1642-1694) São Paulo 2016 Universidade de São Paulo Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas Programa de Pós-Graduação em História Social Luis Henrique Menezes Fernandes Diferença da Cristandade A controvérsia religiosa nas Índias Orientais holandesas e o significado histórico da primeira tradução da Bíblia em português (1642-1694) Tese apresentada à Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, para a obtenção do título de Doutor em História Social. Pesquisa realizada sob a orientação do Prof. Dr. Adone Agnolin. São Paulo 2016 Luis Henrique Menezes Fernandes Diferença da Cristandade A controvérsia religiosa nas Índias Orientais holandesas e o significado histórico da primeira tradução da Bíblia em português (1642-1694) Tese apresentada à Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, para a obtenção do título de Doutor em História Social. Pesquisa realizada sob a orientação do Prof. Dr. Adone Agnolin. Banca Examinadora Prof. Dr. Julgamento: Instituição: Assinatura: Prof. Dr. Julgamento: Instituição: Assinatura: Prof. Dr. Julgamento: Instituição: Assinatura: Data de Aprovação ___/___/___ Agradecimentos Adone Agnolin Timóteo Cavaco Universidade de São Paulo Sociedade Bíblica de Portugal Luís Filipe Thomaz Claudinei Magno Mendes Universidade Católica Portuguesa Universidade Estadual Paulista Herculano Alves Manuel Cadafaz de Matos Difusora Bíblica Academia Portuguesa de História Tassiana Bieniek Stefan Halikowski-Smith Faculdades Integradas do Vale do Ivaí Swansea University Rita Mendonça Leite António Costa Barata Universidade Católica Portuguesa Sociedade Eduardo Moreira Rúben Baptista de Oliveira João Paulo Henriques Sociedade Eduardo Moreira Sociedade Eduardo Moreira Paula Borges Santos Luís Aguiar Santos Universidade Nova de Lisboa Sociedade Eduardo Moreira Silas Oliveira David Valente Sociedade Eduardo Moreira Sociedade Eduardo Moreira Tiago Pires Marques Peter Verhoef Universidade de Coimbra Seminário Teológico Baptista Jairo Cavalcante Filho Gilberto da Silva Guizelin Universidade Metodista de São Paulo Universidade Estadual Paulista Cacilda Maesima Maria Aparecida Ribas Universidade Estadual de Londrina Universidade Estadual de Maringá André Murteira Hendrik Niemeijer Universidade Nova de Lisboa Universidade de Leiden Vilson Scholz Rudi Zimmer Sociedade Bíblica do Brasil Sociedade Bíblica do Brasil Rui Luis Rodrigues Helder Garmes Universidade Estadual de Campinas Universidade de São Paulo Pedro Puntoni Fernando Torres Londoño Universidade de São Paulo Pontifícia Universidade Católica FAPESP Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo Não há pensamento religioso (e nem pensamento sequer), por mais puro e desinteressado que seja, que não carregue em si a atmosfera de uma época – ou, se se preferir, a ação secreta das condições de vida que uma mesma época cria em todas as suas convenções, em todas as suas manifestações, de que ela constitui o lugar-comum, e sobre as quais imprime a marca de um estilo que não se viu ainda, e que não se verá mais. Lucien Febvre Resumo A primeira tradução da Bíblia em língua portuguesa foi composta a partir de meados do século XVII, em regiões específicas do sudeste asiático sob o domínio da Companhia Holandesa das Índias Orientais. O principal responsável por seu processo de elaboração foi João Ferreira A. d’Almeida (c. 1628-1691), natural do Reino de Portugal, mas residente entre os holandeses desde a juventude. A primeira edição de sua tradução do Novo Testamento foi impressa em Amsterdam, no ano de 1681, ao passo que os livros do Antigo Testamento foram publicados somente a partir do século XVIII, em Tranquebar e Batávia. O ambiente em que foi idealizada essa pioneira versão bíblica portuguesa é caracterizado substancialmente pelo confronto teológico católico-protestante, a princípio intra-europeu, mas potencializado nas Índias Orientais seiscentistas a partir da expansão marítima e comercial holandesa sobre regiões antes sob influência dos reinos ibéricos. Ao lado da própria tradução bíblica, essa conjuntura marcada por conflitos em torno da definição da ortodoxia cristã testemunhou também a produção de uma extensa e singular literatura de polêmica religiosa em língua portuguesa, assinada não só pelo próprio Almeida, mas também pelos missionários católicos que se opuseram à sua obra e doutrina no Oriente. Com isso, o principal escopo deste trabalho é desvendar o significado dessa tradução das Escrituras Sagradas do cristianismo em sua peculiar historicidade, isto é, tendo em vista a relação intrínseca de sua materialização com um contexto de agudos embates religiosos. Perante as resoluções estabelecidas no Concílio de Trento (1545-1563) contra a proliferação de versões bíblicas não autorizadas, esse ato de tradução em si, naquela conjuntura, além de edificado sobre a definição protestante sola scriptura¸ se revelou também resultante de postura radicalmente anticatólico-romana. Enfim, sem perder de vista os movimentos históricos estruturais que perpassam a constituição deste objeto peculiar da Idade Moderna, as diferentes seções deste texto devem convergir para se aprofundar a compreensão histórica de uma tradução da Bíblia amplamente reconhecida e estimada, ainda hoje, em todo o mundo lusófono. Palavras-chave: Controvérsia Religiosa; Reforma e Contra-Reforma; Tradução da Bíblia; Índias Orientais Holandesas; Língua Portuguesa. Abstract The first Portuguese translation of the Bible was done during the second half of the seventeenth century in specific regions of Southeast Asia under the rule of the Dutch East India Company. The main person responsible for this translation was João Ferreira A. d'Almeida (c. 1628-1691), who was born in the Kingdom of Portugal, although he had lived among Dutch missionaries since he was a young man. The first edition of his New Testament translation was published in Amsterdam in 1681, yet the Old Testament books were published only after the mid-eighteenth century in Tranquebar and Batavia. The environment in which this pioneering translation of the Bible was designed is substantially characterized by the Catholic-Protestant theological quarrels, originally intra-European, yet amplified in the East Indies over the seventeenth century due to the Dutch maritime and commercial expansion into regions formerly under the influence of the Iberian kingdoms. Besides the Portuguese Bible translation, this context characterized by conflicts on the definition of Christian orthodoxy noted the production of an extensive and unique literature on religious controversy in the Portuguese language, produced not only by the translator himself, but also by Roman Catholic missionaries who stood up against his work and teachings in the East Indies. Thus, the main purpose of this study is to reveal the historical-religious significance of the Portuguese translation of the Holy Scriptures in its peculiar historicity, considering the intrinsic relationship between its meaning and the surrounding milieu of acute religious conflicts. Taking into consideration the resolutions passed by the Council of Trent (1545-1563) against the proliferation of unauthorized Bible versions, the act of translation by itself, in this context, emerged as the result of a position at the same time Modern, Protestant, and anti-Catholic. Nevertheless, not losing sight of the structural historical movements that underlie the creation of this peculiar object of the Modern Age, the different sections of this work might converge in order to deepen the historical understanding of a Bible translation still widely acknowledged throughout the Portuguese-speaking world. Keywords: Religious Polemics; Reformation and Counter-Reformation; Bible Translation; Dutch East Indies; Portuguese Language. Lista de Ilustrações Differença d’a Christandade (1668) ................................................................................. 11 Primeira edição do Novo Testamento em português (1681) ............................................. 14 Index Librorum Prohibitorum (1564) ............................................................................... 43 Mapa ilustrativo das conquistas holandesas no Oriente...................................................... 48 Representação da Portugese Binnenkerk em Batávia (1724) .......................................... 50 Diogo Barbosa Machado (c. 1730) .................................................................................... 54 Philippus Baldaeus (1671) ................................................................................................. 57 António Ribeiro dos Santos (c. 1790) ............................................................................... 59 François Valentijn (1724) .................................................................................................. 66 Carta Apologetica (1670) .................................................................................................. 71 Novo Testamento em latim, por Théodore de Bèze (1575) .............................................. 75 O governador-geral Joan Maetsuycker (c. 1663) .............................................................. 83 Exemplar manuscrito do Novo Testamento (c. 1651) ....................................................... 86 Primeira edição da Statenvertaling (1637) ........................................................................ 89 Primeira edição do Novo Testamento, corrigida à mão (1681) ......................................... 92 Segunda edição do Novo Testamento (1693) .................................................................... 94 Os Livros Históricos do Velho Testamento de Tranquebar (1738) ................................... 104 O governador Theodoor van Cloon (1733) ....................................................................... 105 Primeiro tomo do Antigo Testamento de Batávia (1748) ................................................. 106 Onderscheydt der Christenheydt (1673) ........................................................................... 112 As Fábulas de Esopo (1672) .............................................................................................. 114 Duas Epístolas e Vinte Propostas (1672) .......................................................................... 118 Dos Tratados de Cipriano de Valera (1599) ..................................................................... 124 Trois Tables Espagnol-Françoises (1601) ........................................................................ 126 Dialogo Rustico e Pastoril (c. 1682) ................................................................................. 127 Luzeiro Evangelico (1710) ................................................................................................ 131 Differença d’a Christandade (1684)................................................................................... 136 A população de Batávia, por Andries Beeckman (c. 1661)................................................ 141 Edição quinhentista da Cartilha Portuguesa (1575)........................................................... 147 Catechismo de Heidelberg traduzido por Almeida (1656).................................................. 162 Appendice ao tratado Differencia dá Christandade (1673)................................................. 180 O governador Rijcklof van Goens (c. 1680)....................................................................... 191 Differença da Christandade, impressa em Tranquebar (1728)........................................... 197 Sumário Resumo ............................................................................................................................... 5 Introdução ......................................................................................................................... 9 Capítulo 1 Um contexto oportuno ..................................................................................................... 27 Capítulo 2 Um indivíduo obstinado ................................................................................................... 52 Capítulo 3 Um objeto singular ........................................................................................................... 80 Capítulo 4 Um conflito subjacente .................................................................................................... 108 Capítulo 5 Uma tradução moderna .................................................................................................... 134 Capítulo 6 Uma tradução protestante ................................................................................................ 161 Capítulo 7 Uma tradução anticatólica ............................................................................................... 189 Conclusão ........................................................................................................................... 215 Referências ......................................................................................................................... 221 9 Introdução A partir da segunda metade do século XVII, foram publicadas nas Índias Orientais algumas edições de um opúsculo protestante intitulado Differença d’a Christandade. Sua linguagem mordaz contra o catolicismo romano, bem característica de toda a obra, já se revela em seu subtítulo, ao denunciar a existência de uma “notória contrariedade entre a sacrossanta Ceia de Cristo e a profana missa do Anticristo”.1 A tônica de todo o texto é, assim, marcada pela tradicional acusação protestante de um suposto afastamento, construído ao longo dos séculos, entre a verdadeira doutrina de Cristo, conservada fielmente nas Escrituras Sagradas, e a falsa e nova dos homens, correspondente à tradição apostólica reivindicada pela Igreja de Roma e reafirmada, no alvorecer da Idade Moderna, pelo Concílio de Trento (1545-1563). A princípio, o estilo contundente das afirmações veiculadas por este escrito polemista não se caracteriza, ao menos aparentemente, por uma completa originalidade. Ataques veementes aos dogmas e aos eclesiásticos católicos, bem como a identificação da instituição papal ao espírito do Anticristo, por exemplo, são elementos mais ou menos constantes no universo discursivo protestante, desde os seus primórdios no século XVI. Todavia, há um traço historicamente peculiar dessa obra literária seiscentista, bem própria da controvérsia teológica católico-protestante europeia, que não pode ser subestimado: o fato de haver sido editada, diversas vezes, em língua portuguesa. Ao longo de toda a Idade Moderna, seja em Portugal, seja em possessões ultramarinas, não há notícias de ataques literários tão vigorosos aos dogmas católicos impressos nesse idioma. Outra particularidade fundamental relacionada à divulgação desse tratado anticatólico no Oriente é a sua íntima relação com o ambiente específico de composição da primeira tradução “completa” das Escrituras Sagradas do cristianismo em língua portuguesa, concebida e materializada, a partir de meados do século XVII, em possessões holandesas no sudeste asiático.2 Nesse sentido, o principal responsável pela divulgação do tratado Differença d’a Christandade nas Índias Orientais foi o português João Ferreira A. d‟Almeida (c. 1628-1691), o mesmo cujo nome se tornou depois bastante celebrado, particularmente no mundo lusófono, 1 Differença d’a Christandade. Em que Claramente se Manifesta, I. A grande Disconformidade entre a Verdadeira e Antiga Doctrina de Deus, e a Falsa e Nova d’os homens... Em Nova Batávia: Por Henrique Brando, e Joao Bruyningo, Anno 1668. 2 O adjetivo aparece entre aspas porque essa tradução bíblica não incluiu os chamados livros apócrifos ou deuterocanônicos do Antigo Testamento, recebidos como divinamente inspirados pelo catolicismo romano, mas rejeitados como tal pela tradição judaica e protestante. Os detalhes relativos ao seu processo de composição manuscrita e publicação impressa serão discutidos minuciosamente no terceiro capítulo.
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