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Diário de ana bolena PDF

183 Pages·2009·0.87 MB·Portuguese
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Diário Secreto de Ana Bolena Por Deus! - vociferou Isabel. - Não podereis dar-me um dia de descanso desta enfadonha questão? Já me haveis causado uma dor de cabeça. Os conselheiros da rainha mal podiam acompanhar o passo daquela mulher extraordinariamente alta e esguia que se deslocava com grandes passadas pelo extenso relvado de Whitehall, em direcção à sua montada. William Cecil, seu principal conselheiro, homem sério e firme já de meia-idade, encontrava-se dividido entre o desespero e a admiração que sentia pela sua jovem rainha, vestida com um fato de montar de veludo cor púrpura, com o cabelo loiro-avermelhado a esvoaçar ao vento. Aos vinte cinco anos, Isabel Tudor era mais do que decidida e teimosa. A sua ousadia não conhecia limites e possuía um espírito arguto e uma sinceridade arrojada, pouco próprios de um monarca inglês. Porém, via-se forçado a admitir que era senhora de uma inteligência extraordinária. Falava seis línguas com a mesma fluência que a sua e possuía o magnetismo que o pai, Henrique VIII, irradiara durante toda a sua vida longa e atribulada. Se ao menos, pensava Cecil, não sentisse um prazer tão perverso em ofender os grandes senhores, que nomeara seus conselheiros. Cecil atreveu-se a enfrentar a raiva da rainha. - Suplico a Vossa Majestade que preste mais atenção ao arquiduque Carlos. Para além de ser o melhor partido da Cristandade, diz-se que é um homem belo e bem constituído. - E o que é mais importante - acrescentou Isabel com um ar decididamente lascivo -, tem belas coxas e belas pernas. - Disseram-me que os seus ombros curvados não se notam quando monta a cavalo - acrescentou lorde Clinton na esperança de ganhar algum terreno. Porém, Isabel deteve-se bruscamente e voltou-se para eles de tal 8 modo que os conselheiros chocaram um com o outro, como actores num palco a representar uma comédia. - E a mim disseram-me que é um monstro com uma cabeça enorme! Cristo seja louvado, que terríveis escolhas me ofereceis para marido. Não me tentam a mudar de estado matrimonial. - O príncipe Eric é um... - Um sueco tolo - concluiu Isabel. - Mas é muito rico, Majestade, e extremamente generoso. - E essa ridícula delegação que apareceu aqui na corte com vestes carmesins e corações de veludo bordados e atravessados por uma flecha...? - Isabel revirou os olhos. - Pedis-me que considere o rei de França que nos roubou Calais, o único porto que nos restava no continente... e Filipe, esse espanhol moreno, viúvo de minha irmã e um católico tão devoto e firme? Vamos, meus senhores, decerto poderíeis sugerir melhor. - Preferis então pretendentes ingleses? - Pretendentes ingleses? Os olhos de Isabel pareceram mais doces e um leve sorriso esboçou-se aos cantos da sua boca escarlate. Voltou-se e a passo mais lento retomou o caminho que a levava ao seu alazão castanho, ajaezado com um caparazão debruado a ouro e para o jovem bem constituído e de porte confiante e atlético que a aguardava junto ao animal com as rédeas na mão. Cecil olhou para Robert Dudley, o mestre-cavaleiro da rainha com silencioso enfado. Fora decerto Dudley que fizera surgir o sorriso nos lábios da soberana e a cadência quase langorosa no seu andar, enquanto percorria o caminho que a levava à montada. - Prefiro realmente os meus pretendentes ingleses - afirmou numa voz aveludada. Cecil ouviu os conselheiros resmungarem discretamente e em surdina, ao verem Robert Dudley. A corte impúdica que esse nobre arrogante fazia à rainha e a aceitação ainda mais escandalosa da parte dela, criavam um clima de imoralidade que punha em perigo as possibilidades de Isabel casar honradamente ali ou no estrangeiro. Dudley, que muitos diziam ser amante da rainha, era um homem casado. Cecil afastou do pensamento a ideia de que o comportamento duvidoso de Isabel era o seu modo de garantir que nunca teria de casar, mantendo antes uma série de amantes durante todo o seu reinado; pior, a rainha poderia mostrar certas parecenças com a mãe. O sangue dos Bolena estava manchado de perversidade. Assim, todos - desde os conselheiros reais de Isabel que lhe ofereciam inúmeros pretendentes, até a senhora Kat Ashley, sua aia desde a infância que implorava todos os dias a Isabel que fosse razoável 9 - exigiam que, por sua honra e para bem do reino, casasse e entregasse as rédeas do governo a um esposo fiel. Isabel aproximou-se de Dudley que, erguendo-se depois de uma profunda reverência, se manteve de pé com gàlhardia, feições fortes e olhar límpido, obrigando o próprio Cecil a admitir que o mestre-cavaleiro era uma bela figura de nobre virilidade. Dudley olhou fixamente a rainha. Sem pensar na expressão reprovadora dos seus conselheiros, Isabel estendeu os longos dedos pálidos e afagou-lhe lentamente a face e o queixo, terminando com uma breve carícia no pescoço. - Como está o meu belo alazão? - perguntou reprimindo um sorriso. Talvez fossem as escandalizadas exclamações e forte respiração que escutou nas suas costas que a fizeram dar uma sonora palmada no flanco enorme do cavalo castanho, poupando aos estupefactos conselheiros a distante mas grata possibilidade de que a observação da rainha não fosse a vulgaridade que suspeitavam ter ouvido. Voltou-se para Cecil e lançou aos seus conselheiros um sorriso caloroso e travesso. - Meus senhores Clinton Arundel e North, aprecio de sobremaneira os vossos amáveis conselhos e estimo-os de todo o coração - permitiu que Robert Dudley a erguesse sobre o cavalo e sentou-se olhando-os majestosa. - A minha escolha de marido e rei não será feita de ânimo leve e requer de mim muita reflexão. Assim, peço que perdoem a hesitação de uma pobre e fraca mulher em se comprometer. Mas prometo-vos que, quando tomar a decisão, sereis os primeiros a saber. Bom-dia, meus senhores. Partiu, tocando rapidamente com o calcanhar o flanco do cavalo. Dudley inclinou a cabeça aos conselheiros com ar trocista, saltou para o seu próprio cavalo e partiu à desfilada atrás da rainha que seguia já num rápido galope. Cecil e os outros conselheiros voltaram-se contrariados e, sem quererem encarar-se, empreenderam, a passo lento, o caminho do palácio real. A tarde ia já adiantada quando os primeiros raios de Sol penetraram o céu nublado e entraram pela janela da cabana numa tira dourada sobre os seios nacarados e nus de Isabel. Dudley, reclinado junto a ela, apoiado no cotovelo, delineava preguiçosamente as pequenas rolas com mão áspera mas meiga. Acariciou o mamilo rosado que se moveu sob o seu toque. Um inesperado suspiro soltou-se dos lábios pintados que de 10 tantos beijos, tinham perdido o carmim. Pestanejou por uns instantes e abriu lentamente os olhos. Isabel e Dudley tinham cavalgado a galope pelos campos de Abril, acabando por chegar ao real pavilhão de caça, uma tosca e pequena casa de madeira na orla de Duncton Wood. O casal tinha entrado a rir, ofegante do esforço dispendido mas, com o sangue a correr-lhes nas veias, entregara-se a apaixonados abraços, beijos e outras intimidades em que haviam progredido pouco a pouco, no decorrer dos meses anteriores. - Tomais algumas liberdades com a vossa rainha, meu amor - murmurou Isabel com uma certa aspereza. - E desejo tomar mais, Majestade - afirmou Dudley medindo as palavras e considerando oportuna a sua ousadia. A rainha olhava-o com firmeza, certamente com o propósito de o fazer recuar. Porém, Dudley era um homem excitado e pouco se preocupava. As mangas e o corpete de Isabel estavam abertos em redor do seu tronco esguio, mas, as saias e saiotes continuavam intactos sobre as ancas e as pernas, embora enrugadas pelos vapores escaldantes dos abraços daquela tarde. A mão de Dudley acariciou a cintura estreita de Isabel e as saliências húmidas da sua espinha. Meteu os dedos sob a renda para encontrar a fenda macia entre as suas nádegas e, puxou com força as ancas dela contra as dele. A rainha soltou um súbito gemido de prazer que o encorajou a soltar-lhe a saia e a tentar encontrar-lhe o monte de pêlos virgens. - Robin, basta. Ele respondeu à ordem dela cobrindo-lhe a boca com um beijo feroz. Ela moveu-se debaixo dele, mas sem ardor, e voltou a cara. - Não me detenhais agora, Isabel. - Sim. Detende-vos, já disse! A voz dela alterara-se, perdendo a suavidade. O seu corpo macio tomara a rigidez da madeira. As faces de Dudley coraram de raiva impotente. Retirou a mão de dentro das volumosas saias da rainha. Isabel observou o belo rosto de Dudley enquanto este tentava dominar-se. O seu forte desejo pelo corpo da rainha, que amava e temia, transformara-se, com a ordem dela numa súbita fúria e depois noutra coisa diferente, mais difícil de identificar. Tratava-se da Rainha. Ele era seu súbdito. Os olhos dele mostravam como aquela embaraçosa situação o transtornava. Ela sabia ser a única mulher em Inglaterra a poder exercer tal autoridade sobre um homem. Aquela força exultante era nova, pois a sua coroação tivera lugar havia apenas três meses e Robert Dudley era 11 seu amigo desde a infância. Assim que fora coroada rainha, o afecto dele tinha-se transformado num fervor veemente que lhe fora irresistível. Obedecendo a um impulso nomeara-o mestre-cavaleiro e deixara-o cavalgar, atrás de si, no cortejo da coroação para que todos o vissem. já os julgavam íntimos. Porém, Isabel recusara-lhe, até aí, o último favor. - Robin, meu amor... - acariciou-lhe a face quente e transpirada. - Não me chameis amor - respondeu, com um olhar sombrio. - Chamar-vos-ei o que me aprouver - respondeu a rainha com azedume. A luz desaparecia e ambos sabiam que em breve terminaria o precioso tempo em que podiam estar a sós. Isabel sentou-se, compôs o corpete e tentou abotoá-lo. - Então, ajudai-me com isto - provocou-o com um sorriso sedutor e apesar do seu aborrecimento ele sentiu-se como de costume, perfeitamente enfeitiçado por aquela frágil mulher. Os seus dedos pouco hábeis introduziram os pequenos botões de pérola nas casas de cetim. Por uns momentos, deixou que a mão lhe escorregasse, roçando-lhe o seio já coberto. - Os vossos conselheiros estão extremamente preocupados - disse. Pensam que tencionais casar comigo e fazer-me Rei - sentou-se, fechando a camisa e o gibão, sem a olhar nos olhos. - E dizei-me o que faríamos então com a vossa fiel esposa? - Esposa? Terei eu uma esposa? - perguntou trocista, Ela ergueu-se diante dele, obrigando-o a encará-la. - Se eu me casasse convosco, seria assim tão facilmente esquecida? Ele compreendeu que tinha cometido um erro, ao expor com tanta ligeireza o seu casamento sem amor, recordando-lhe o sangue-frio com que o pai dispusera das suas esposas, entre elas a mãe de Isabel. Mas aquela criança, a sua rainha, Isabel, o seu amor, enlouquecia-o sendo tão imprevisível. Por vezes, abria-se para ele como uma flor ao sol, a rir, a brincar, a fazer maliciosos planos, tal como quando eram crianças. Nesses tempos pareciam embriagados, perfeitamente encantados na companhia um do outro. Pensara mesmo em casar com ele. Por vezes desafiava-o a ser forte com ela, a dominá-la, a ser o seu senhor. Depois, com a brevidade de uma tempestade de Verão, tornava-se dura e sombria, brincando com a sua insignificância, tratando-o como uma peça num tabuleiro de xadrez. - Tenho demasiados pretendentes, Robin... príncipes, reis, imperadores... como posso pensar em vós para me desposardes - disse-o com impertinência, mas ele notou que estava mais branda. Viu-lhe os movimentos enquanto vestia a jaqueta, os ombros levemente curvados, os olhos em alvo, uma quase imperceptível tensão na fronte. Desejoso de a ver 12 recuperar a doçura, ergueu-se diante dela. Levantou-lhe o queixo e perguntou num suave murmúrio. - Pensais não dispor de súbditos leais capazes de dar um herdeiro ao trono de Inglaterra? - Um herdeiro? - O olhar dela quase se incendiou. - Um herdeiro, Robin? É então essa a questão? Não o amor, mas sim a descendência real? O rei Robert, pai de muitos filhos, alto governante de Inglaterra e, oh, sim, quase o esquecia, esposo de Isabel. - Interpretais mal as minhas palavras, não se trata disso! - exclamou. Escolhera mal e voltara a enganar-se. Isabel dirigiu-se à porta da cabana, com o rosto afogueado e escarlate. A sucessão ao trono fora um caminho que deixara para trás mortes horríveis. Robert Dudley era seu amante, não o seu senhor. Parecia-lhe pouco adequado falar de herdeiros naqueles momentos de ternura. Abriu a porta, mas Dudley fechou-a imediatamente. - Deixai-me sair. - Não, Isabel. - Ordeno-vos - vociferou a rainha. Dudley percebeu o violento latejar das veias sobre a branca pele da fronte de Isabel. Viu que estava prestes a chorar. Deixou-se cair de joelhos diante dela. - Majestade... - por momentos não pôde continuar, pois as emoções embargavam-lhe o raciocínio. Ergueu os braços suplicantes e rodeou-lhe a cintura. Sentiu-a estremecer por baixo das muitas camadas de roupa e das barbas do corpete. - Perdoai-me, senhora! Imploro-vos. - Robin, erguei-vos... Não foi minha intenção... - Não, não, deixai-me falar - mesmo com a cabeça curvada, exprimiu-se de um modo tão intenso que cada palavra era nítida e cortante. Conheci-vos ainda criança, Isabel. Nascida princesa real e logo repudiada como bastarda por um pai que apenas queria filhos varões. Afastada da corte para viver na obscuridade e na pobreza. Haveis sofrido sem os seus carinhos. Mas naquela sala de estudo dos aposentos das crianças para onde meu pai me enviava, encontrei um tesouro. Um espírito brilhante, uma alma resplandecente, um rosto belo, pálido como uma rosa do Yorkshire. já então vos amava. Éramos irmão e irmã, amigos, companheiros de estudos. Ríamos, chorávamos e muitas vezes nos ajudámos um ao outro, não foi assim? Dudley não ergueu a cabeça para receber a resposta, mas sabia que ela o escutava. Ao ouvir falar dos tempos idos da infância, Isabel deixara de tremer e a sua respiração era já mais calma. 13 - A frágil-e doce menina sobreviveu ao reinado e à morte do seu amado irmão, ao jugo e falecimento de uma irmã desapiedada... para se transformar na rainha Isabel. A menina já não existe e só no meu espírito permanece viva a companheira de folguedos, a irmã, a amiga. Porém, sinto agora uma ávida paixão pelo corpo da mulher. Estamos unidos Por um laço profundo. É verdade que aos olhos da lei sou casado com Amy Dudley. Contudo foi a vós que desposei, de coração, alma e espírito. - Robin... - Isabel falava agora em voz doce mas, com o olhar apaixonado, Robin ordenou- se que nada mais dissesse. - Deixai-me falar: sou vosso, totalmente vosso... súbdito, vassalo, servo obediente. Se me quiserdes por esposo, continuaria a obedecer às vossas ordens e teria alcançado o céu na terra. Se por motivo de alianças escolherdes outro consorte, hei-de compreender-vos e seguir-vos. Se escolherdes outro homem para amar... parte de mim definhará e acabará por morrer. Mas escutai, Majestade. Qualquer que seja o destino que guardais para mim, amar- vos-ei do mesmo modo que, quando vos vi pela primeira vez. Lutarei e morrerei, deixarei que me despedacem vivo, para salvar esta terra e o vosso direito de a governar como bem vos aprouver. Imediatamente, Dudley rasgou a camisa e o colete, deixando a descoberto o peito que cortou com a lâmina faiscante do seu punhal. - Por Deus, Robin! - Isabel caiu de joelhos, lavada em lágrimas, cobrindo com os dedos a ferida de onde o sangue brotava vivo. - Nunca vos faria morrer por mim. Quero-vos vivo... quero que me ameis. Fazei amor comigo, agora. Robin Dudley obedeceu de bom grado às ordens da sua rainha. Já tinha anoitecido quando franquearam as portas do Palácio de Whitehall e detiveram os cavalos suados à luz dos archotes que iluminavam o pátio. Guardas e lacaios acorreram imediatamente, mas baixaram os olhos quando Dudley ajudou Isabel a descer da montada, os corpos juntos, antes de os pés dela tocarem o chão. A rainha levava posta a longa capa de Robin que ele próprio ajustara, num gesto protector, em redor do seu corpo. Sabia que os homens a observavam discretamente e, logo preocupada com as formalidades, estendeu a mão ao seu mestre-cavaleiro que, de joelho em terra, lhe tomou os dedos e lhos beijou. 14 - Sempre ao serviço de Vossa Majestade. A rainha tocou-lhe no ombro e voltou-se para atravessar, por entre os guardas, a enorme entrada do palácio, seguindo com largas passadas pelo pátio e pela galeria que conduzia aos seus aposentos. Apesar da penumbra do corredor, iluminado apenas por archotes, Isabel não se sentia só, já que os olhos dos seus antepassados York e Tudor vigiavam a sua orgulhosa passagem. Sentia sempre o peso da linhagem que, por vezes parecia trespassar- lhe a pele de alabastro, insuflando-lhe a certeza do seu direito ao trono de Inglaterra. Antes de subir as escadas que conduziam aos seus aposentos, Isabel retirou com uma mão um archote da parede para iluminar o caminho e, com a outra, puxou as saias acima dos tornozelos, pois os degraus de pedra podiam ser traiçoeiros mesmo à luz do dia. A passagem era estreita e escura e o archote lançava sombras estranhas nas paredes. Com o cheiro da humidade nas narinas e a recordação do recente contacto do corpo de Robin, Isabel deu por si transportada a outros tempos, cinco anos antes, em que descia outra escada húmida e escura já noite alta, levando, não um archote, mas uma simples vela, receando ser descoberta naquele acto perigoso e clandestino. Estava prisioneira na torre de Londres, acusada por sua meia-irmã Maria, então rainha, de conspiração contra a coroa. Aterrorizada e débil devido a uma recente enfermidade, Isabel passara os longos dias de encarceramento a estudar e a traduzir os seus amados textos gregos, embora, verdade fosse dita, o trabalho que impusera a si própria, de pouco lhe servira para lhe distrair o espírito do cruel receio de uma sentença de morte. Aquele local terrível assistira a muitas execuções. Havia dezassete anos que a sua própria mãe aí morrera e, em tempos mais recentes, também Catarina Howard, sua prima e quinta mulher de seu pai. Apenas uns meses antes, outra prima, Jane Grey, de dezasseis anos havia sido decapitada em Tower Green, tendo-se comentado, conforme Isabel recordava com um arrepio, que do pescoço brotara mais sangue do que se podia imaginar conter um corpo tão pequeno. Isabel desceu cuidadosamente a estreita escada de Beauchamp Tower, cobrindo a vela com a outra mão para ocultar o mais possível o alcance da luz. Sabia que se a descobrissem tudo se complicaria para si e que pior sorte teria o bondoso guarda que se apiedara da frágil menina cuja vigilância tinha a cargo. Ou talvez, pensava cinicamente Isabel, não a considerasse traidora, mas sim a filha do bom rei Henrique e futura rainha que, quando se sentasse no trono de Inglaterra, haveria de recordar a bondade do velho carcereiro. Em qualquer dos casos, o certo é que consentira 15 em desviar os olhos e que, em mais de dois meses, Isabel conseguira, pela primeira vez, iludir a vigilância dos seus guardiães. A meio da escada ficara paralisada ao ouvir um gemido distante e lastimoso. Por alguns instantes, pensou tratar-se da sua imaginação - ou melhor, desejou que assim fosse - pois eram queixumes terríveis de um homem cuja existência seria certamente uma extensa agonia. Muitos prisioneiros com menos sorte que ela, estavam encerrados em celas sem janelas, escuras e frias, dormindo sobre palha bolorenta, com as articulações doridas e a pele coberta de pústulas das picadas de pulgas e piolhos. - Bom Deus - murmurara repetidamente Isabel, tentando calar aquele som. Ao chegar ao segundo patamar, uma mão surgida das trevas agarrou-lhe o pulso. Voltou-se, sobressaltada, e viu o rosto belo e ousado de Robin Dudley iluminar a escuridão das escadas da torre. - Isabel, graças a Deus! Com um enorme suspiro, pois não havia palavras que exprimissem o profundo alívio, e o amor arrebatado que sentia pelo seu velho amigo, apoiou-se no seu peito, deixando que ele lhe abraçasse o corpo trémulo. Agitada por soluços, molhou com as suas lágrimas escaldantes a capa de Robin que a abraçou com força e lhe falou num apressado murmúrio, sabendo ambos que aquele instante furtivo em breve terminaria. - Tratam-vos bem? - perguntou. - Bastante bem - Isabel fungou, retomando por fim a compostura. E a vós? - espreitou-o à luz vacilante da vela. - Robin, estais tão magro - tocou-lhe a face encovada. - A comida que nos trazem é boa, mas tenho estado adoentado nas últimas semanas. Não o disse, porém Isabel adivinhou que o seu abatimento se devia à execução de seu pai e irmão mais velhos. - Lamento o sucedido a vosso pai e a John. Como estão os outros? - Os meus irmãos estão bem. A prisão não é tão horrível quando se está em companhia da família, mas a mim mantêm-me isolado numa cela por baixo daquela em que eles se encontram. Os Dudley tinham sido encarcerados pela sua participação na frustrada conjura para colocar no trono lady Jane Grey, com intenção de que Guilford, seu próprio filho e marido desta, fosse coroado rei. - Talvez que - reflectiu Isabel em voz alta - o facto de haverdes sido o único dos vossos irmãos a proclamar Jane rainha, na praça de King’s Lynn, tenha ofendido Maria o suficiente para vos mandar isolar. 16 - Que importa! - exclamou Dudley apartando-se relutante do abraço de Isabel e segurando-a a alguma distância. - Dizei-me como estais. Se alguma vez alguém esteve preso injustamente, esse alguém fostes vós. Era verdade. O seu próprio encarceramento era o resultado da revolta do jovem Thomas Wyatt, que, no seguimento da sublevação dos Dudleys se tinha oposto ao noivado de Maria com Filipe de Espanha, um príncipe estrangeiro. - Mas não será lógico que Maria julgue que eu fui cúmplice, Robin? O objectivo da conjura era depô-la e colocar-me a mim no trono. - Sem escutar as razões da própria irmã? - Escrevi-lhe várias cartas, implorei-lhe audiências e nenhuma delas foi respondida ou concedida. Aquele maldito espanhol De Quandra, sempre me odiou. Envenena-lhe o espírito contra mim. Porém, nunca encontrarão prova fiável do meu envolvimento na intriga do pobre Wyatt. - E quem necessita de uma prova fiável? - murmurou Robin com desalento. - É mais provável morrermos pelas palavras falsas do imimigo do que por acusação verdadeira. O terrível lamento ergueu-se mais uma vez das entranhas da prisão, ecoando na escada escura, como que para recordar aos dois jovens prisioneiros qual seria o seu destino. E as corridas das ratazanas junto aos pés, fê-los estremecer de fria repugnância. - Não deveríamos apagar a vela? Se nos encontram juntos aqui, será o nosso fim. Dudley lançou-lhe um olhar desesperado e apagou a vela. A escuridão abateu-se sobre eles como uma cortina de veludo negro que, paradoxalmente, em lugar de amortecer os sons, antes parecia amplificá-los. Temiam que a própria respiração os pudesse denunciar, de modo que se abraçaram de novo. Isabel teve de imediato a consciência da proximidade do corpo de Robin, do calor húmido do seu hálito junto ao rosto, da mão que lhe segurava a cintura, unindo-os como as flores do mesmo ramo. Porém, o que mais a sobressaltou foi o formigueiro que sentiu entre as coxas e que a fez ficar tão afogueada que imaginou poder Robin notá-lo, mesmo na escuridão. Logo foi possuída por um sentimento de culpa e vergonha. - Como vão as coisas com Amy? - perguntou então. Imaginou sentir que o abraço de Robin afrouxara um pouco, como se a pergunta sobre a esposa deste lhe tivesse suscitado remorsos. Mas a voz dele era firme, quando lhe respondeu: - Há quinze dias atrás, permitiram-lhe a ela e as esposas de meus irmãos que nos visitassem. Teme pela minha vida e... - Fez uma pausa, 17 como se não desejasse dar a conhecer o pensamento: - Sente muito a minha falta. Isabel alegrou-se uma vez mais por estar ao abrigo da escuridão que impedia o amigo de lhe ver a emoção gravada no rosto. Ciúmes, disse, incrédula, para consigo mesma. Tenho ciúmes de Amy Dudley! - Isabel - ouviu Robin sussurrar. - Isabel, sinto-me um traidor ao dizer-vos isto, mas à parte o alívio que me trouxe ver um rosto amigo e a gratidão que senti pela comida e presentes que Amy me trouxe, a sua presença pouco me comoveu. Não me atrevi a admitir que raramente pensava nela ou sentia a sua falta e que já não me agradava... fazer amor com ela. Isabel tardou em encontrar resposta para as inesperadas palavras de Robin, pois sentira enorme alívio e uma estranha alegria com aquela triste confissão. Recordava-se que, apenas três anos antes, por alturas da Primavera, fora testemunha do casamento de Robin e Amy. Como pareciam apaixonados e que belo casal formavam. Nessa ocasião, Isabel sentira-se feliz pelo seu amigo de infância, embora se recordasse de uma breve punhalada de dor ao ver Robin beijar a sua bela e jovem noiva. Agora, enquanto ainda procurava palavras de consolo para Robin, interrogava-se se não teria sido de ciúme. - Talvez que a vossa falta de desejo resulte de um efeito desagradável do encarceramento, sobre o vosso corpo e o vosso espírito - sugeriu Isabel simulando estar certa dessa possibilidade. - Porquê, então - perguntou Robin apertando mais a cintura de Isabel e puxando-a para si, de modo que os corpos trémulos se estreitaram um no outro -, sonho constantemente convosco, vejo o vosso rosto na minha imaginação, nada mais desejo que escutar o som da vossa doce voz para dar repouso à minha alma? E porquê, Isabel, vos desejo deitada, junto a mim, na escuridão. Isabel sentiu que continha a respiração, enquanto o escutava, receando que o mínimo sussurro do seu hálito a impedisse de lhe ouvir as belas palavras. Erguera o rosto para o dele e, apesar da profunda escuridão não teve dificuldade em descobrir os seus lábios ansiosos sobre os dele. E ali tinham ficado, esquecidos de dor, medo e culpa, nos braços um do outro até que o murmúrio aflito do carcereiro chegou lá de cima, com a primeira luz da manhã. Agora, já no seu palácio em Whitehall, Isabel entrou no labirinto de câmaras e antecâmaras privadas, onde os alabardeiros guardavam as portas das salas do conselho, do grande salão e a câmara real. Chegou num turbilhão à porta do seu quarto de dormir, agitando as aias num corrupio, como se de folhas secas se tratassem. 18 - Ide, ide-vos daqui, todas vós. Mantinha a capa bem apertada, desejando que aqueles modos bruscos lhe disfarçassem o coração sobressaltado e o tremor das pernas. Num largo movimento perfumado de saias e saiotes sussurrantes, as aias saíram uma a uma, depois de fazerem à rainha uma profunda reverência. A câmara ficou em silêncio, mas Isabel não ficou só. Katherine Ashley encontrava-se junto à lareira, de braços cruzados, com uma expressão triste no rosto preocupado. Apesar de ser rainha, Isabel não se atrevia a ordenar à senhora Ashley que saísse. Preferiu voltar-se de costas e chegar-se ao lume, tentando disfarçar o nervoso com um sorriso. Sem pronunciar palavra, a mulher retirou-lhe dos ombros a capa de lã de Dudley e pô-la no braço. - Não vos preocupeis Kat, o sangue não é meu - disse Isabel voltando-se para a aia, Apesar do aviso, os olhos de Kat abriram-se mais ao ver as manchas acastanhadas que sujavam a jaqueta de montar de Isabel. Em silêncio, cobriu os olhos com a mão enrugada e tentou acalmar-se. Concretizavam-se os seus piores receios. A jovem princesa, que desde pequena estivera a seu cargo, transformara-se numa altiva rainha. Nesse momento fantástico, em que na Abadia de Westminster, sob o resplendor de dez mil velas, a coroa de Inglaterra fora pousada pela primeira vez sobre a cabeça da sua querida menina, a relação entre Kat e Isabel alterara-se. Porém, nada mudara, pensou, ao mesmo tempo que baixava a mão trémula do rosto. Absolutamente nada. Estendeu a mão e começou a desabotoar-lhe a jaqueta de veludo. A rígida postura de Isabel descontraiu-se e deixou cair os braços ao contacto familiar das mãos de Kat. Sabia que a sua aia sentiria o cheiro de Dudley na sua roupa e no seu corpo. Sabia que Kat se esforçava agora por encontrar palavras para exprimir a sua preocupação, sem quebrar as regras de etiqueta, necessárias entre elas. Quando Isabel era uma menina, uma princesa afastada da corte, com poucas possibilidades de subir ao trono, Kat mantivera uma disciplina rigorosa, mas amável. Os seus instintos protectores eram quase felinos, imbuídos de ardor e lealdade. Sempre lhe falara com franqueza e severidade, quando a situação o exigia. Para a menina praticamente abandonada pelos parentes de sangue, Kat Ashley e William, seu marido, eram os únicos portos de abrigo na terrível tempestade da sua jovem existência. E, agora Kat, sentia-se atormentada pela angústia. - Quereis que vos prepare um banho? - perguntou, aparentando calma. 19 - Esta noite, não - replicou Isabel. Desejava manter consigo durante o máximo de tempo possível, os últimos vestígios de Robin Dudley. Kat dobrava com cuidado as peças de roupa da rainha à medida que esta as despia com a sua ajuda. Isabel, coberta apenas pela camisa de renda francesa, tremia de frio e chegou-se ao lume. - Posso falar-vos? - perguntou num tom glacial. - Alguma vez vos pude impedir de o fazer, Kat? A idosa mulher estendeu-lhe um robe de cetim amarelo. Isabel enfiou os braços nas enormes mangas e aconchegou a si o forro de pele. Sentindo-se fraca, deixou-se cair na

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