Determinantes sociais da saúde no processo de trabalho da pesca artesanal na Baía de Sepetiba, estado do Rio de Janeiro1 Social determinants of health in the work process of artisanal fishing in Sepetiba Bay, State of Rio de Janeiro, Brazil Marcelo Bessa de Freitas Resumo Escola Nacional de Saúde Pública. Departamento de Saneamento e Saúde Ambiental. Rio de Janeiro, RJ, Brasil. Este trabalho analisa as consequências da desterri- E-mail: [email protected] torialização na Baía de Sepetiba, no estado do Rio Silvio Cesar Alves Rodrigues de Janeiro, sobre o processo de trabalho e saúde dos Universidade Federal do Rio de Janeiro. Instituto de Pesquisa e pescadores artesanais desse território. Por meio do Planejamento Urbano e Regional. Rio de Janeiro, RJ, Brasil. conceito de determinantes sociais em saúde, essa E-mail: [email protected] análise aproxima os novos vetores de crescimento da região às condições de vida e saúde desses tra- balhadores. Essa relação explicitou-se por meio de entrevistas semiabertas, grupos focais e questioná- rios estruturados. Os resultados sugerem uma forte associação entre os empreendimentos portuários e as instalações do programa nuclear da Marinha do Brasil com a pesca extrativa tradicional, o que contribui para o aumento do tempo de navegação e dos riscos ocupacionais inerentes à pesca artesanal. Além dos impactos econômicos e ambientais na produtividade e qualidade do pescado, sendo uma consequência direta das obras de dragagem e dos novos fluxos de navegação e de fundeio estabeleci- dos e impostos pelo Estado. Palavras-chave: Determinantes Sociais em Saúde; Desterritorialização; Pesca Artesanal; Riscos Ocu- pacionais. Correspondência Marcelo Bessa de Freitas Rua Leopoldo Bulhões, 1480, sala 518, Manguinhos. Rio de Janeiro, RJ, Brasil. CEP 21041-210. 1 Pesquisa realizada com apoio da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro. DOI 10.1590/S0104-12902015126063 Saúde Soc. São Paulo, v.24, n.3, p.753-764, 2015 753 Abstract Introdução This paper analyses the consequences of deterri- O processo de adoecimento dos indivíduos trans- torialization in Sepetiba Bay, in the state of Rio de corre da reprodução social do meio em que se vive Janeiro, to the work and health process of artisanal e trabalha (Samaja, 2000). Atividades extrativas fishermen of this territory. Through the concept tradicionais, como, por exemplo, a pesca artesanal, a of social determinants of health, this analysis ap- agricultura de subsistência e a extração vegetal, de- proaches the new growth drivers of the region to pendem, demasiadamente, do contexto ambiental na these workers’ living and health conditions. This qual estão inseridas e encontram-se fortemente con- relationship was revealed through semi-structured dicionadas aos ecossistemas em que se reproduz o interviews, focus groups and structured question- trabalho. Essas atividades sofrem maiores impactos naires. The results suggest a strong association of em territórios refuncionalizados produtivamente, port developments and the facilities of the Brazilian que assumem, por conseguinte, novas configurações Navy’s nuclear program with traditional extractive socioeconômicas, características de um processo de fishing, which contributes to increase shipping time desterritorialização (Haesbaert, 2004). and the occupational risks inherent in artisanal Compreender essas transformações em territó- fishing. In addition, there are the economic and rios de ecossistemas marinhos implica no reconhe- environmental impacts on productivity and fish cimento de que os processos de trabalho associados quality, a direct consequence of dredging and of the a esses espaços produtivos, em particular a pesca new navigation and anchoring flows established and artesanal, estão sujeitos a assumir outras funções imposed by the State. ou configurações diferentes daquelas historica- Keywords: Social Determinants of Health; Deterrito- mente estabelecidas. As principais consequências rialization; Artisanal Fishing; Occupational Risks. de um novo contexto socioeconômico e produtivo, imposto por agentes públicos e privados, podem ser representadas tanto pelo esmaecimento da ati- vidade extrativa tradicional no arranjo produtivo local, como pelos efeitos adversos sobre a saúde do trabalhador que atua na pesca artesanal. Sendo as- sim, a determinação social das doenças associadas a essa atividade produtiva estaria na dependência do grau e magnitude da refuncionalização e da re- configuração territorial. Para Milton Santos (1985), um processo de re- funcionalização não se relaciona apenas com o bojo das transformações que determinam novas funções a um território, mas, sobretudo, a uma nova organi- zação espacial aos lugares. Ainda, segundo Santos, “sempre que a sociedade (a totalidade social) sofre uma mudança, a forma ou objetos geográficos (tanto os novos como os velhos) assumem novas funções; a totalidade da mutação cria uma nova organização espacial” (1985, p.49). Embora a forma constitua-se de uma dimensão estritamente material, estética, visível de um objeto e que, por si só, não seja passível de refuncionaliza- ção, quando considerada a noção de forma conte- údo, ela une processo e resultado, forma e função, 754 Saúde Soc. São Paulo, v.24, n.3, p.753-764, 2015 passado e futuro, objeto e sujeito, natural e social, 1) configuram-se em cinco níveis interdependentes e supõe o tratamento do espaço como um conjunto que atuam direta e indiretamente sobre o processo inseparável de sistema de objetos e sistema de ações saúde-doença de grupos e indivíduos. No nível mais (Santos, 1996, p. 66). externo estão o macrodeterminantes, ou condições Nesse sentido, a refuncionalização do espaço é socioeconômicas, culturais e ambientais; no nível entendida como a própria história das formas, ou subsequente, os determinantes intermediários, que seja, simplesmente as que passam a não existir, as são as condições de vida e de trabalho, representados que permanecem como forma meramente residual pelo acesso aos serviços públicos, educação, habi- e as que assumem novas funções estabelecidas, tação, saneamento, saúde, produção de alimentos, condicionadas por valores sociais e associadas às emprego e renda. A partir do nível intermediário, estruturas existentes em cada tempo e lugar. estão os determinantes associados aos estilos de A noção de reconfiguração implica a existência vida individuais, situados na fronteira dos micro- de uma pluralidade de indivíduos que disputam, de determinantes sociais, compreendidos por fatores modo interdependente, as mesmas formas e funções hereditários, idade e gênero. Ainda, segundo Dahl- do território. Para Elias e Scotson (2000), as con- gren e Whitehead (1991), a compreensão do processo figurações que se estabelecem são irredutíveis na saúde-doença decorre da análise dos micro e macro- relação indivíduo-configuração, o que caracteriza determinantes e das suas formas de correlação e me- fortemente esta interdependência. Ainda, segundo diação, atribuindo ao contexto social as chamadas os autores, este conceito pode ser aplicado onde quer doenças não transmissíveis, como, por exemplo, as que se formem conexões e teias de interdependência que se relacionam ao âmbito ocupacional (Solar; humana, isto é, em grupos relativamente pequenos Irwin, 2007; Samaja, 2000; Castellanos, 1997). ou em agrupamentos maiores. Tanto a refunciona- Diante disso, o artigo apresenta e discute os lização como a reconfiguração de territórios são resultados da pesquisa “Impactos de grandes em- elementos estruturantes da determinação social preendimentos projetados para a região da Baía de em saúde. Sepetiba nas condições de vida e situação de saúde No modelo proposto por Dahlgren e Whitehead dos trabalhadores da pesca das Colônias de Pedra de (1991), os determinantes sociais da saúde (Figura Guaratiba (Z-14), Sepetiba (Z-15) e Itacuruçá (Z16)”. Figura 1 – Modelo de determinação social da saúde, segundo modelo de Dalh- gren e Whitehead (1991) Extraído de: Brasil, 2008. Saúde Soc. São Paulo, v.24, n.3, p.753-764, 2015 755 A pesquisa teve como objetivo avaliar as condições Segundo esse mesmo levantamento, o estado do de vida e saúde do trabalhador da pesca artesanal, a Rio obteve um valor de produção de R$ 216.871.670,00. partir do contexto socioambiental em que se insere Nesse mesmo período, a pesca artesanal foi respon- esta atividade tradicional extrativa na Baía de Se- sável pela produção de 20.636,5 toneladas de peixes, petiba, estado do Rio de Janeiro. crustáceos e moluscos, ou seja, 25% do total, gerando O estudo centralizou seu recorte no sistema um faturamento bruto de R$ 62.839.289,00 ou 28,97% hidrográfico da Baía de Sepetiba, estado do Rio de do valor total produzido. Do volume total de pescado, o Janeiro, a qual possui, aproximadamente, 305 km2 e modo artesanal foi responsável por 23,77% de peixes, abrange três municípios, sendo que boa parte de seu 80% de crustáceos e 18,70% de moluscos. Dados que espelho d´água está contido no perímetro urbano da reforçam a importância dessa atividade econômica cidade do Rio de Janeiro, e o restante nos municípios na manutenção dos arranjos produtivos locais de Itaguaí e Mangaratiba. Considerando toda a área No entanto, em relação à pesca artesanal na Baía de influência, o sistema abrange 11 municípios, onde de Sepetiba, os dados apresentam pouca consistên- vivem 467.046 habitantes em áreas urbanas e 41.709 cia analítica, uma vez que as estatísticas oficiais não habitantes em áreas rurais, com uma densidade consideram os números específicos da captura nesse populacional de 180,4 hab/km2. domínio. Segundo a Fundação Instituto da Pesca do Estado do Rio de Janeiro (FIPERJ), somente a partir de agosto de 2010, a partir de um convênio com o A pesca artesanal no Brasil MPA (Ministério da Pesca e Aquicultura), a FIPERJ A pesca artesanal tem uma importância econômica realizou ações de estatística pesqueira no estado. fundamental na manutenção de arranjos produtivos O monitoramento é feito nos principais pontos de locais de modo extrativo, tanto em ecossistemas desembarque de cinco municípios: Angra dos Reis, litorâneos como fluviais, no território brasileiro. De Niterói, São Gonçalo, Cabo Frio e São João da Barra. acordo com Diegues (1973), a prática constituiu-se Ou seja, não inclui a região da Baía de Sepetiba. como atividade econômica ainda no período colonial, Essas lacunas e intermitências alargam-se pelo fato após a falência dos ciclos açucareiro e cafeeiro, de os levantamentos não observarem as diferenças como necessidade de exploração de outros meios de escala entre a pesca industrial e a artesanal, ou recursos. práticas completamente diferentes tanto na sua ori- Por definição, a pesca artesanal é aquela que, na gem quanto nos métodos empregados. Desse modo, captura e desembarque de toda classe de espécies suprimem-se as últimas informações apuradas no aquáticas, os trabalhadores atuam sozinhos e/ou Boletim Estatístico da Pesca e Aquicultura, dispo- utilizam mão de obra familiar ou não assalariada, nível no site do Ministério da Pesca e Aquicultura explorando ambientes ecológicos localizados pró- (MPA), que não especifica os números registrados da ximos à região costeira, com embarcações de pouca pesca artesanal, referindo-se de forma generalizada autonomia. A captura é feita por meio de técnicas de a um só conjunto, como pesca extrativa marinha reduzido rendimento relativo e sua produção é total entre os anos de 2010 e 2011. ou parcialmente destinada ao mercado (Clauzet; Ramires; Barrella, 2005). A saúde dos trabalhadores na Segundo o Ibama (2007), a pesca extrativa ma- pesca artesanal rinha (que inclui a artesanal e a industrial) movi- mentou no estado do Rio de Janeiro um volume de A Organização Internacional do Trabalho (OIT) 82.528,5 toneladas, incluindo peixes, moluscos e refere-se à pesca como uma das mais desgastantes crustáceos, tornando esse estado o maior produtor e perigosas atividades desenvolvidas pelo homem. de pescado da região sudeste e o segundo do Brasil, Vários estudos apontam para os aspectos relaciona- ficando atrás apenas do estado de Santa Catarina. dos à segurança e saúde do trabalhador do setor da Em 2007, o estado registrou um crescimento na pesca (Bezerra, 2002; Barbosa, 2004; Dall’Oca, 2004; produção de pescado em 23,3%. Garrone Neto; Cordeiro; Haddad, 2005). 756 Saúde Soc. São Paulo, v.24, n.3, p.753-764, 2015 Em 2006, a Secretaria Especial de Aquicultura e bordo. Essas situações vivenciadas pelos pescadores Pesca da Presidência da República (SEAP/PR) divul- são naturalizadas em seu cotidiano de trabalho e gou a existência de 390.761 pescadores artesanais expressas em relatos afirmando que “o pescador registrados no país. está acostumado” (Rosa; Matos, 2010). No Brasil, os artesãos da pesca se formalizaram Nesse processo de trabalho, há ainda um forte a partir da criação, em 1950, pelo Governo Federal, componente psicossocial de sofrimento e estresse da Confederação Nacional dos Pescadores (CNP), da vinculado à baixa produtividade da pesca, ao afas- Federação Estadual dos Pescadores (FEPAS) e das tamento da família e a casos de violência e crimina- Colônias de Pesca. Esse sistema confederativo, que lidade no mar (Barbosa, 2004). se fixou na jurisdição do Ministério da Agricultura, definiu os estatutos básicos para a existência das Métodos colônias de pescadores, mas sem apresentar condi- ções que legitimassem o exercício representativo e Com o intuito de balizar metodologicamente a aná- autônomo (Mello, 1995). lise em função do esquema proposto por Dahlgren A partir de 2008, a classe é reorganizada nos ter- e Whitehead (1991), a condução investigativa do mos da Lei nº 11.699, que dispõe sobre as Colônias, estudo optou por uma abordagem quanti qualitativa Federações e Confederação Nacional dos Pescadores. do objeto. Por conseguinte, houve o recorte da in- Por meio desse instrumento normativo, essas en- vestigação em duas fases, utilizando instrumentos tidades se tornaram reconhecidas como órgãos de distintos de coleta de dados e informações. classe dos trabalhadores do setor artesanal da pesca, É válido destacar que a abordagem metodológi- com forma e natureza jurídica próprias, obedecendo ca empregada na pesquisa de campo foi aprovada ao princípio da livre organização previsto no Artigo pelo comitê de ética da Escola Politécnica de Saúde nº 8 da Constituição Federal. Joaquim Venâncio, da Fundação Oswaldo Cruz, aten- Apesar dessa lei, a realidade expõe um quadro dendo à Resolução nº 196/96, por meio do Protocolo relevante de precarização do acesso ao sistema nº 2007/000.0028. previdenciário e de seguro social, o que contribui Na fase quantitativa da investigação optou-se para o aumento da informalidade e exclusão social pela aplicação de questionários semiestruturados, da categoria (Brasil, 2009). Tratando-se de uma a fim de obter o registro de informações objetivas atividade onde os riscos à saúde são inerentes a um a respeito das condições de vida e saúde dos pes- processo de trabalho extenuante e extremamente cadores, no âmbito do processo de trabalho que informal, sem proteção e garantias trabalhistas, a envolve tal atividade extrativa. O questionário foi situação de exposição aos riscos e ocorrências de elaborado em torno de quatro campos de inquéritos: danos ocupacionais se agrava. identificação pessoal do pescador; dados relativos Observando os processos de trabalho de pesca- às condições de moradia; informações relativas à dores artesanais, diversos estudos (Dall’Oca, 2004; saúde do indivíduo; e informações sobre a saúde e Brasil, 2009; Gonçalves; Nogueira; Brasil, 2010; segurança do processo de trabalho. Rosa; Matos, 2010) afirmam que a atividade está No total, foram aplicados 109 questionários abran- exposta à intensa radiação solar, intempéries, baixa gendo as três colônias de pescadores, representando luminosidade devido ao trabalho noturno, acidentes um percentual de 6,5% do universo de 1.676 pescado- com apetrechos da pesca e animais com potencial de res, entre 323 mulheres e 1.353 homens, cadastrados ocasionar cortes e perfurações, ruídos contínuos de nas três colônias. Esse número absoluto foi obtido a motorização, afogamentos e sobrecarga de peso, que partir da contagem das fichas de registro dos pescado- podem levar ao afastamento da atividade por dias ou res residentes em cada uma das colônias. Considerou- meses. Soma-se ao quadro, a inexistência de insta- -se a amostra como aleatória simples e homogênea, o lações sanitárias nas embarcações de médio porte, total de entrevistas foi representativo, com um grau como por exemplo, as traineiras, o que contribui de confiabilidade de 95% e um erro amostral de 9,1% para o aumento das condições de insalubridade a (Cochran, 1977; Bolfarine; Bussab, 2005). Saúde Soc. São Paulo, v.24, n.3, p.753-764, 2015 757 Na fase qualitativa foram utilizadas entrevis- os indicadores de saúde, que não necessariamente tas semiabertas e grupos focais como forma de se comportam de modo constante e linear (Buss; apreender, a partir dos atos de fala dos pescadores, Pellegrini Filho, 2007). conteúdos fundamentais que abarcassem os proble- Essas mediações entre as camadas de determi- mas, sociais, políticos e ambientais associados ao nantes e condicionantes da saúde dos grupos popu- processo de reconfiguração e refuncionalização do lacionais localizados em um determinado território território por meio de suas percepções, atitudes e podem apresentar vetores de sentidos coincidentes representações sociais existentes. ou contraditórios, por exemplo, o investimento na Durante a pesquisa de campo, realizada entre os criação de um terminal portuário de minérios é um anos de 2011 e 2012, procurou-se manter encontros vetor positivo no nível global/nacional, mas negativo frequentes com os sujeitos da pesquisa, o que contri- no nível local na medida em que dificulta ou inviabi- buiu para um reconhecimento das suas realidades. A liza a realização de atividades ligadas aos arranjos aproximação de significados, sistemas simbólicos, produtivos locais da pesca artesanal. códigos, práticas, valores, atitudes, ideias e senti- mento (Minayo, 1994), que constituem fenômenos Resultados não reduzidos à operacionalização de variáveis exatas, é um argumento substancial para empreen- Pesquisa quantitativa der a análise das relações sociais entre a práxis e o A análise dos dados quantitativos abarcou a po- contexto histórico daquele território. pulação (n) de 109 questionários, portanto, todos Recorreu-se a três encontros para a realização os resultados obtidos consideram uma frequência dos grupos focais, envolvendo em cada grupo cinco constante da totalidade da amostra, ou seja, 100%. representantes convidados de cada uma das três colônias de pescadores, Z14, Z15 e Z16, entre julho Dados sociodemográficos e outubro de 2012. Para os grupos focais, foi utili- Com relação aos dados de identificação, 40% desse zado um guia de entrevistas (Flick, 2004) reunindo grupo situa-se na faixa etária de 45 e 60 anos. A questões e estímulos narrativos, centralizados no escolaridade dos trabalhadores da pesca artesanal problema e orientados pelo objeto e pelo processo da é baixa, 54% possuem apenas o ensino fundamental pesquisa. As seguintes questões e estímulos narrati- incompleto e 21% o ensino médio completo. vos foram projetadas durante os grupos focais: a) o Com relação ao gênero, a atividade da pesca ar- que você pensa sobre os empreendimentos existen- tesanal é uma função social majoritariamente mas- tes na região da Baía de Sepetiba; b) como você vê a culina, 94% dos pescadores são homens e apenas relação entre os pescadores, entre os pescadores e 6% mulheres, que em geral trabalham como maris- o poder público e entre os pescadores e as empresas queiras e/ou tripulantes de apoio nas embarcações. instaladas na região; c) em sua opinião, como está Dados sobre saúde e hábitos de vida o meio ambiente na Baía de Sepetiba; d) você acha que isso afeta a sua saúde, sim ou não e por quê; e Com relação aos dados de saúde, 57% dos trabalhadores e) como você vê o futuro da sua região. da pesca artesanal declararam não possuir nenhum A abordagem metodológica proposta reconhece tipo de problema de saúde. Dos 43% dos pescadores o desafio de identificar as possíveis mediações que declararam possuir algum tipo de problema de existentes entre os diferentes fatores de natureza saúde, 38% admitiram sofrer de hipertensão arterial social, econômica, política, que, na perspectiva da sistêmica (HAS), 15% de problemas respiratórios, determinação social, incidiriam sobre a situação de outros 15% de problemas estomacais, 11% apontaram saúde de grupos e pessoas. Porém, é o conhecimen- para problemas osteomusculares e/ou articulares e to desse complexo de mediações que permite uma 6% para diabetes. Os 15% restantes foram distribuídos melhor compreensão a respeito de correlações entre por diferentes tipos de enfermidades. Entre os 109 os macroindicadores de riqueza de uma sociedade, pescadores, o consumo de bebidas alcoólicas e tabaco como, por exemplo, o PIB (Produto interno bruto), e corresponde a 26% e 52%, respectivamente. 758 Saúde Soc. São Paulo, v.24, n.3, p.753-764, 2015 Dados sócio ocupacionais e de saúde do trabalho mesmos. O tempo de navegação até os pontos de captura varia de uma a duas horas segundo 39% Com relação ao perfil profissional, todos os entre- dos entrevistados, e de 20 a 60 minutos para igual vistados afirmam a identidade de pescador como proporção. Enquanto para 16% dos entrevistados principal atividade ocupacional, 65% se define como esse tempo se prolonga entre duas a quatro horas. pescador artesanal, outros 26% simplesmente como pescador, os demais se definem como marisqueiros Com relação às possíveis variações no tempo de e/ou pescadores aposentados. 73% desses trabalha- deslocamento das embarcações, considerando que dores atuam há mais de 20 anos na pesca artesanal as mudanças possam estar de alguma forma asso- e apenas 7% está há menos de 10 anos no ofício, ciadas às modificações nos fluxos de navegação na vale destacar que 68% dos pescadores declaram ser Baía, constatou-se que para 55% dos entrevistados a pesca a sua única jornada de trabalho, enquanto esse tempo sofreu um aumento, entretanto, 40% 32% disseram dividir a pesca com outra atividade, não perceberam quaisquer variações significativas, para complementar a renda salarial. e apenas 5% não souberam responder à questão. Quase a totalidade, ou seja, 91% possuem a Car- Para 97% dos pescadores, a quantidade na apanha teira de Trabalho e Previdência Social (CTPS), toda- de pescado diminuiu acentuadamente desde que via 46% não contribuem com a previdência social. começaram a pescar, e somente 3% afirmaram que Deste universo, 82% possuem carteira expedida pela não houve nenhuma alteração. Secretaria Especial de Aquicultura e Pesca, docu- Com relação às diferentes modalidades de pesca mento obrigatório para pessoas físicas ou jurídicas artesanal praticadas na Baía, e relacionadas pela que exercem atividade de pesca e aquicultura com Fiperj (2011), encontraram-se as seguintes formas fins comerciais. Com relação à origem da matrícula de captura: a rede de espera ou emalhe tem sido dos pescadores às colônias, 76% estão matriculados praticada por 63% dos pescadores entrevistados, em uma das três colônias da área de abrangência da 15% atuam no arrasto de fundo e 8% praticam duas Baía de Sepetiba: 48% dos pescadores possuem suas modalidades (rede de espera e linha de mão), enquan- matrículas expedidas pela colônia Z16, 19% estão to 3% praticam o arrasto de fundo e a espera. Os 11% associados à Z14 e 14% à Z15. Os 19% restantes decla- restante distribuem-se por diferentes modalidades, raram não estarem associados a nenhuma colônia. tais como a catação de mariscos e crustáceos, pesca A Lei 11.699 que reconhece as colônias de pesca- de curral, caça submarina etc. dores, como órgãos de classe dos trabalhadores do As embarcações utilizadas nestas modalidades setor artesanal da pesca, é desconhecida por 87% de pesca são principalmente canoas, caícos ou bo- dos entrevistados. tes, 80% dos entrevistados utilizam estes tipos de Com relação à renda salarial, verificou-se a exis- embarcação na região, que podem ser motorizados tência de apenas três extratos de rendimento: 39% ou movidos a remo. Apenas 14% utilizam traineira recebem apenas um salário mínimo, 53% entre um e como principal embarcação, 3% dos pescadores não três salários mínimos e apenas 8% do total possuem fazem uso de barcos, e outros 3% não se pronuncia- renda acima de três salários mínimos. ram a respeito. Com relação ao processo de trabalho e sua dinâ- Com relação aos dados relativos à saúde e segu- mica diária, como era esperado, verificou-se que 56% rança do trabalho na pesca artesanal, verificou-se dos pescadores iniciam sua jornada de atividades que 71% dos pescadores utilizam algum tipo de na madrugada, outros 26% iniciam suas jornadas equipamento de proteção individual, os mais citados no período vespertino. A duração dessa jornada pelos entrevistados foram luvas (31%), capas (31%) e de trabalho é superior a 8 horas por dia para 74% coletes (17%), e os menos citados foram botas (9%), dos pescadores e menos de 8 horas para 23% dos chapéu, toca ou boné (7%). Apenas 30% dos pescado- mesmos, apenas 3% trabalham até 8 horas por dia. res declararam fazer uso de bloqueadores solar. Com Os pontos de interesse para a captura do pes- relação à segurança na embarcação, 70% dos entre- cado são considerados de longa distância por 50% vistados afirmaram que suas embarcações possuem dos pescadores e de curta distância para 33% dos material de salvamento no barco, tais como boias e Saúde Soc. São Paulo, v.24, n.3, p.753-764, 2015 759 coletes, itens obrigatórios pela Capitania dos Portos. e cortes com anzóis (9%), quedas e contusões no bar- Com relação à ocorrência de acidentes de traba- co (9%), mutilações, cortes e perfurações envolvendo lho, 85% dos pescadores relataram terem sofrido hélices, motor de barco e outros perfurocortantes algum evento que caracterizasse um acidente, 20% (8%) e naufrágios (6%) (Gráfico 1). desses acidentes ocorreram nos seis meses ante- riores à entrevista, e 16% entre um e dois anos. Vale Resultados ressaltar que 19% não se lembravam da última vez em que se acidentaram. Em geral, pequenos cortes, Pesquisa qualitativa perfurações e ferroadas, não são considerados aci- Os resultados da pesquisa qualitativa, obtidos por dentes de trabalho pelos pescadores. meio dos grupos focais e entrevistas semiabertas, Com relação ao período do dia em que ocorrem permitiram estabelecer, a partir da percepção socio- os acidentes, 43% declararam que se acidentaram ambiental, as seguintes categorias mais recorrentes durante a manhã e 18% à tarde, e não à noite ou de nas falas dos pescadores: a) percepção sobre mu- madrugada como era de se esperar, devido às condi- danças espaciais e temporais relativas à navegação ções de luminosidade. Durante a noite ou madrugada ocorreram 22% dos acidentes. 17% do total não se e captura; b) conflitos com grandes embarcações, lembrava em qual período se acidentaram. como, por exemplo, embarcações militares, de con- Para os 85% dos pescadores que relataram aci- têineres e dragagem, relacionados aos novos fluxos dentes na pesca, as partes do corpo mais atingidas de navegação impostos pelo estado do Rio de Janeiro, foram: mãos e braços (65%); pés e pernas (15%); que impedem o uso dos fluxo habituais; c) conflitos pernas e mãos (10%); dorso e cabeça (4%); todo do relacionados com os órgãos estaduais e federais, que corpo (3%); e outros 3% não souberam informar ou intensificam a fiscalização apenas nas embarcações não se lembraram. de pesca artesanal; d) conflitos relacionados à pesca Com relação à tipificação dos acidentes, as maio- industrial que imprime um ritmo de competição de- res ocorrências, segundo os pescadores, estavam sigual com a pesca artesanal; e e) percepções sobre associadas a cortes e perfurações envolvendo peixes, problemas ambientais relacionados à poluição da crustáceos, e mariscos (74%), seguido de perfurações água da Baía, associada às atividades de dragagem Gráfico 1 – Proporção (%) de pescadores artesanais segundo tipificação dos acidentes ocorridos, Baia de Sepetiba, RJ, 2011/2012 760 Saúde Soc. São Paulo, v.24, n.3, p.753-764, 2015 de fundo, para o aprofundamento do canal de acesso Outro fator importante de degradação desse ecos- de grande embarcações e ao derramamento de água sistema marinho tem sido associado às constantes de lastro e óleo dos navios. Para efeito prático opta- dragagens realizadas no entorno da península da mos pela extração de alguns destes depoimentos. Ilha da Madeira, visando o aprofundamento dos Os novos empreendimentos na Baía de Sepetiba, canais de acesso aos portos. Essas intervenções têm apontados como macrodeterminantes socioeconô- alterado efetivamente a qualidade da água da Baía, micos, estão representados pelas obras de ampliação por meio da ressuspensão dos sedimentos de fundo do Porto de Sepetiba e pela construção e instalação (Rodrigues, 2012). do Porto Sudeste MMX (Mineração e Metálicos S.A.). [...] essa draga leva a lama, sabe, ela leva a lama Além disso, no âmbito da política de defesa territo- de lá, pra lá. Mas aí ela não tem itinerário certo pra rial, está em curso o Programa de Desenvolvimento passar, entende, ela tem os canais dela passar, ela de Submarinos, Estaleiro e Base Naval da Marinha passa por um canal, às vezes passa fora do canal, do Brasil (PROSUB EBN), que tem como meta a aí está com rede lá que leva, é um abraço, se pegar instalação de uma unidade militar que viabilizará aí pega rede, pega tudo [...] (Pescador 2). a produção do primeiro submarino brasileiro de propulsão nuclear e de mais quatro submarinos Além dessas externalidades negativas ambien- convencionais de motor diesel-elétrico. tais, não mitigadas e cumulativas, assiste-se a uma Nesse contexto de desterritorialização, novos demasiada exploração daquele ecossistema, na lógica fluxos de circulação são definidos e impostos por produtivista da pesca, onde o território se abre para a agentes públicos, como a Capitania dos Portos e o intensificação da captura, extrapolando e desafiando Instituto Estadual de Meio Ambiente do Estado do sua capacidade suporte, sua condição natural, seu Rio de Janeiro (INEA) (Rodrigues, 2012). É nesse sen- equilíbrio e sua resiliência que poderiam estar in- tido que percebem-se tais imposições em algumas seridos em uma lógica sustentável e solidária dessa falas dos entrevistados. cadeia produtiva costeira. Desse modo, a chegada de novos empreendimentos pesqueiros, vindos de outras [...] não precisávamos ir tão longe pra pegar o pei- regiões do país, imprime um ritmo de competição ex- xe, que nós saíamos aqui perto, em frente e já tremamente desigual com as colônias de pescadores conseguíamos, mas o que ocorre de um tempo tradicionais. Alguns dos entrevistados apontaram a pra cá é que os grandes empreendimentos se pesca predatória como um dos principais impactos instalaram na nossa baía e esse empreendi- ambientais na Baía de Sepetiba. mento causou várias restrições na nossa área de pesca [...] (Pescador 1). [...] vem grandes embarcações de fora e chega aí e acaba com tudo [...] Tem a pescada que a gente não Em função da nova territorialidade imposta, tem, porque vêm as grandes traineiras, e não dá observa-se que as restrições aos antigos fluxos de mais as anchova, a sororoca, peixes que davam an- navegação das embarcações de pequeno porte, uti- tigamente, era abundante aqui agora não dá mais, lizadas na pesca artesanal, potencializaram novos peixe tainha ou parati e esse camarão maluco que riscos, por exemplo, acidentes com óbitos, devido dá aí de vez em quando [...] (Pescador 5). ao aumento do tráfego marítimo de embarcações de grande porte. E nessa competição, o Estado não exerce seu poder regulador e fiscalizatório, e se exerce, o faz de [...] têm as boias, o pescador respeita, só que modo falho e ineficiente. Fato que é percebido nos eles não respeitam. Esse ano (2012) mataram seguintes depoimentos: um pescador em Coroa Grande. É, porque veio outro, veio pelo lado [...] Um navio no canal [...] é porque a pesca proibida e a pesca de balão são e do outro lado chegou outro [...] Pra mim foi os grandes barcos que fazem e eles não respeitam um crime, porque eles sabem que não podia tá ninguém, não tem fiscalização que segure eles [...] andando daquele jeito [...] (Pescador 8). (Pescador 8). Saúde Soc. São Paulo, v.24, n.3, p.753-764, 2015 761 “...a quem recorrer?” “Ah, é ao INEA [Instituto balho devido aos novos fluxos de navegação, uma vez Estadual de Meio Ambiente do Estado do Rio de que o pescador necessita de um tempo maior para Janeiro]” aí vamos lá no INEA, o INEA pede uma manter uma produtividade mínima condizente com série de documentos que nós não conseguimos ter a pesca, e para tal, necessita avançar para pesqueiros [...] (Pescador 3). mais distantes que os de hábito. Como sustentado nos estudos sobre riscos ocupacionais da pesca A relação assimétrica que se impõe entre pes- artesanal, dessa forma, aumenta-se a oportunidade cadores, Estado e empreiteiros da pesca conflagra de ocorrer acidentes de trabalhos e adoecimentos um tipo de conflito socioambiental presente em relativos à carga laboral, considerando os riscos praticamente toda a costa litorânea brasileira. Per- intrínsecos a esse tipo de pesca, principalmente meável à prática de modalidades pesqueiras pouco os casos de perfurações, cortes e lesões devido ao sustentáveis para os sistemas ecológicos existentes. esforço repetitivo. Considerando as características das correntes mari- Como elementos estruturantes da determinação nhas e feições geomorfológicas e oceânicas desses social da doença, os fenômenos de desterritoria- ecossistemas litorâneos. lização e reconfiguração agudizam essa relação, tornando plausíveis os nexos causais patológicos as- Discussão sociados ao processo de trabalho da pesca artesanal. A desterritorialização representada, nesse caso, por Com relação aos resultados obtidos, podemos su- uma transformação abrupta e intensiva do arranjo gerir que o quadro da pesca artesanal na Baía de econômico local, de caráter extrativo-subsistente Sepetiba aponta para o declínio ou estagnação, em para uma economia de commodities de mineração. um cenário menos pessimista. Essa conclusão fun- Soma-se a esse fato, o passivo ambiental histórico da damenta-se por meio das conjunturas socioeconômi- Baía de Sepetiba, ônus da antiga planta de produção ca e ambiental predominantes naquele território. A de zinco metálico da Companhia Mercantil Ingá e da presença de externalidades negativas tais como, a inexistência de ações eficazes de saneamento am- poluição ambiental, a competição com a pesca pre- biental da Baía que contribuíram indubitavelmente datória e de grande porte praticada ilegalmente na para a degradação daquele ecossistema. O resultado Baía, assim como as alterações nos fluxos e locais desse novo arranjo social, completamente assimé- de captura, impostos por novos arranjos políticos e trico, no stricto sensu dos poderes locais, é uma econômicos, tem influenciado novos hábitos entres nova configuração de redes sociais, debilitada no os pescadores artesanais. conjunto de suas práticas produtivas tradicionais. Os novos fluxos têm contribuído para alterar Revela-se, assim, um cenário promovido e imposto a rotina da pesca artesanal e a produção do pes- pelo Estado, identificado como principal vetor ou cado, uma vez que o processo implica a restrição macrodeterminante econômico a ter influência da navegação e da captura de espécies em locais negativa no padrão ecológico suporte, mister ao tradicionais. A principal consequência econômica, trabalho extrativo e, subsequentemente, função da de acordo com os relatos obtidos nos depoimentos, deterioração das condições de vida e saúde desse tem sido a queda na renda mensal das famílias que grupo de trabalhadores. tem a pesca como principal fonte de subsistência no arranjo produtivo local. A pesquisa revelou uma enorme vulnerabilidade Referências social da atividade da pesca artesanal, assim como BARBOSA, S. R. C. S. Identidade social e dores da fizeram outros trabalhos recentes (Barbosa, 2004; alma entre pescadores artesanais em Itaipu, RJ. Brasil, 2009; Dall’Oca, 2004; Garrone Neto; Cor- Ambiente e Sociedade, Campinas, v. 7, n. 1, p. 107- deiro; Haddad,. 2005; Gonçalves; Nogueira; Brasil,. 131, 2004. 2008; Rosa; Matos, 2010). De acordo com os dados e informações contidos nos questionários, sugere-se, BEZERRA, B. P. A saúde mental no nordeste da de fato, a ocorrência de uma sobrecarga maior de tra- Amazônia: estudo de pescadores artesanais. 2002. 762 Saúde Soc. São Paulo, v.24, n.3, p.753-764, 2015
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