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D:\Estudos Afro-Asiáticos\Estudos Afro-Asiáticos.vp PDF

39 Pages·2001·0.89 MB·Spanish
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As Formas Africanas de Auto-Inscrição* Achille Mbembe Oobjetivodotextoéanalisarecriticarasdiferentesformascomas quaissetentouconstruirerepresentaraidentidadeafricanaapartir,ba- sicamente,deumdiscursonativista,porumlado,eoutroinstrumenta- lista,daÁfricaedeseupovo.Baseadoemumainterpretaçãocríticados diversos essencialismos construídos em torno de uma suposta leitura pan-africanaeconsensualdomundo,oautoralertaparaosperigosad- vindosdabuscairrefletidadeumaalteridadeafricanasemodevidoreco- nhecimento das especificidades culturais, políticas e geográficas em África.Tantooeconomicismoquantoametafísicadadiferençasãohis- toricismosvistospeloautorcomoformasfadadasaofracasso,tendoem vistaapluralidadedesignosecontextoscomasquaissetentouconstruir aautodeterminaçãoeaauto-afirmaçãoafricanasaolongodoséculoXX. Palavras-chave:auto-inscrição;auto-afirmação;self;autonomia;imagi- náriocoletivoafricano;políticasdaafricanidade. * AtoQuaysoeRuthMarshallcriticaramumaversãoanteriordesteartigo.SarahNutal, FrançoiseVergès,CarolGluckeCandaceVoglerforneceramcomentáriosadicionais.Recebi umcontínuoestímulodeBogumilJewsiewicki,PierreNora,CarolBreckenridge,Arjun AppaduraieDilipGaonkar.TrechosdestetextoforamapresentadosemconferênciasnaCi- dadedoCabo,emagostode2000;emPatna(Índia)emfevereirode2001;eemChicago,em março de 2001. Tradução de Patrícia Farias. Estudos Afro-Asiáticos,Ano 23, nº 1, 2001, pp.171-209 RevistaEstudosAfro-Asiáticos 1ªRevisão:16.07.2001 2ªRevisão:30.07.2001 3ªRevisão:12.09.2001 Cliente:BethCobra–Produção:Textos&Formas AchilleMbembe Abstract African Modes of Self-Inscription Theobjectiveofthispaperistoanalyzeandcriticizethedifferent endeavorstobuildanddisplayAfricanidentity,basicallystartingwitha chauvinist discussion on one hand, and an instrumental one on the other,onAfricaanditspeople.Basedonacriticalinterpretationofthe various essential points made regarding a supposed consensual world Pan-Africansurvey,theauthorwarnsagainsttheperilsoriginatingfrom athoughtlesssearchofanAfricanalteritywithoutdulyacknowledging African cultural, political and geographical specifics. Both the economicismandthemetaphysicsofthedifferencearehistoricismsseen by the author as doomed to fail, considering the plurality of signs and contexts on which African self-registration and self-affirmation were basedthroughoutthe20thcentury. Keywords: self-registration; self-affirmation; self; autonomy; imagi- nary;Africancollectiveimaginary;Africanpolitics. Résumé Les Formes Africaines d’Auto-Inscription Danscetexteonchercheàexamineretremettreencauselesdiffé- rents moyens employés dans la construction et la représentation de l’identitéafricaine,àpartird’undiscoursàlafoisnativisteetinstrumen- talistesurl’Afriqueetsonpeuple,surtout.Enprenantappuisurunein- terprétationcritiquedesdifférentsessentialismesbâtisautourd’unepré- suméelecturepan-africaineetconsensuelledumonde,l’auteursignale lesdangersd’unerechercheirréfléchiedel’altéritéafricainequinetien- draitpascomptedesspécificitésculturelles,politiquesetgéographiques dececontinent.L’économismeainsiquelamétaphysiquedeladifféren- cesontdeshistoricismesquel’auteurenvisagecommedescheminsvou- ésàl’échec,faceàlapluralitédesignesetdecontextesdontons’estservi pourconstruirel’auto-déterminationetl’auto-affirmationafricainesau coursduXXsiècle. Mots-clé:auto-inscription;auto-affirmation;self;autonomie;imagina- irecollectifafricain;politiquesdel’africanité. Estudos Afro-Asiáticos, Ano 23, nº 1, 2001, pp.172-209 RevistaEstudosAfro-Asiáticos 1ªRevisão:16.07.2001 2ªRevisão:30.07.2001 3ªRevisão:12.09.2001 Cliente:BethCobra–Produção:Textos&Formas “Aúnicasubjetividadeéotempo...” (Deleuze,1985:110) D uranteosúltimostrêsséculos,temosvistosurgirtendências intelectuaiscujoobjetivotemsidoconferirautoridadesim- bólicaacertoselementosintegradosaoimagináriocoletivoafrica- no.Algumasdestastendênciassedesenvolveram,outraspermane- ceramcomomerosesboços.1Muitopoucassãonotáveisporsuari- queza e criatividade, e em menor número ainda, são aquelas ten- dências dotadas de uma força excepcional. Não há nada que se compare,porexemplo,àfilosofiaalemã,que,deLuteroaHeideg- ger,temsebaseadonãosónomisticismoreligioso,mas,maisfun- damentalmente,nodesejodetransgredirafronteiraentreohuma- no e o divino. Tampouco há algo comparável ao messianismo judaico, que, combinando desejo e sonho, enfrentou, sem nenhuma me- diação, o problema do absoluto e suas promessas, desenvolvendo esteúltimoatésuasmaisextremasconseqüênciasdetragédiaede- sespero,enquantoaomesmotempotratavaasingularidadedoso- frimentojudeucomosendoalgosagrado,correndooriscodetor- ná-lo um tabu (cf. Scholem, 2000; Baer, 2000; Arendt, 1987; Goldberg,2000).Seguindooexemplodestasduasmetanarrativas, asformasafricanasdeescreveropróprioselfsãoinseparavelmente conectadasàproblemáticadaautoconstruçãoedamodernafiloso- fia do sujeito. Entretanto, as similaridades acabam aí.2 Vários fatores evitaram o desenvolvimento de concepções quepoderiamterexplicadoosignificadodopassadoedopresente africanosatravésdareferênciaaofuturo.Oesforçodedeterminar ascondiçõessobasquaisosujeitoafricanopodiaadquiririntegral- mente sua própria subjetividade, tornar-se consciente de si mes- mo, sem ter que prestar contas a ninguém, cedo encontrou duas formas de historicismo que o liquidaram: primeiro, o “economi- cismo”,comsuabagagemdeinstrumentalismoeoportunismopo- lítico; segundo, o fardo da metafísica da diferença.3 A primeira Estudos Afro-Asiáticos,Ano 23, nº 1, 2001, pp.173-209 RevistaEstudosAfro-Asiáticos 1ªRevisão:16.07.2001 2ªRevisão:30.07.2001 3ªRevisão:12.09.2001 Cliente:BethCobra–Produção:Textos&Formas AchilleMbembe correntedepensamento–quegostadeseapresentarcomo“demo- crática,‘radical’eprogressista”–utilizacategoriasmarxistasena- cionalistasparadesenvolverumimagináriodaculturaedapolíti- ca,noqualamanipulaçãodaretóricadaautonomia,daresistência edaemancipaçãoservecomooúnicocritérioparadeterminarale- gitimidade do discurso “africano” autêntico. A segunda corrente sedesenvolveuapartirdaênfasena“condiçãonativa”.Elapromo- veaidéiadeumaúnicaidentidadeafricana,cujabaseéopertenci- mento à raça negra. No centro dessas duas correntes de pensamento repousam trêseventoshistóricos:aescravidão,ocolonialismoeoapartheid. Aesteseventos,umespecíficoconjuntodesignificadoscanônicos foiatribuído.Primeiro,aidéiadeque,atravésdosprocessosdees- cravidão, colonização e apartheid, o eu africano se torna alienado de si mesmo (divisão do self). Supõe-se que esta separação resulta emumaperdadefamiliaridadeconsigomesmo,apontodeosujei- to, tendo se tornado um estranho para si mesmo, ser relegado a umaformainanimadadeidentidade(objetificação).Nãoapenaso eunãoémaisreconhecidopeloOutro,comotambémnãomaisse reconhece a si próprio.4 Osegundosignificadocanônicotemavercomaproprieda- de.Deacordocomanarrativadominante,ostrêseventoscitados acarretaramaausênciadebens,sendoassimumprocessonoqual os procedimentos econômicos e jurídicos levaram à expropriação material.Aistoseseguiuumaexperiênciasingulardesujeição,ca- racterizadapelafalsificaçãodahistóriadaÁfricapeloOutro,oque resultouemumestadodeexterioridademáxima(estranhamento)e de“desrazão”.Estesdoisaspectos(aexpropriaçãomaterialeavio- lência da falsificação) são considerados os principais fatores que constituem a singularidade da história africana, e da tragédia na qual ela se baseia.5 Finalmente,aidéiadadegradaçãohistórica.Aescravidão,a colonização e o apartheid são considerados não só como tendo aprisionadoosujeitoafricanonahumilhação,nodesenraizamen- toenosofrimentoindizível,mastambémemumazonadenão-ser e de morte social caracterizada pela negação da dignidade, pelo profundodanopsíquicoepelostormentosdoexílio.6Emtodosos trêscasos,supõe-sequeoselementosfundamentaisdaescravidão, dacolonizaçãoedoapartheidsãofatoresqueservemparaunificar o desejo africano de se conhecer a si mesmo, de reconquistar seu destino(soberania)edepertencerasimesmonomundo(autono- mia). Estudos Afro-Asiáticos, Ano 23, nº 1, 2001, pp.174-209 RevistaEstudosAfro-Asiáticos 1ªRevisão:16.07.2001 2ªRevisão:30.07.2001 3ªRevisão:12.09.2001 Cliente:BethCobra–Produção:Textos&Formas AsFormasAfricanasdeAuto-Inscrição Seguindoomodelodareflexãojudaicasobreofenômenodo sofrimento, da contingência e da finitude, estes três significados poderiam ter sido utilizados como ponto de partida para uma in- terpretação filosófica e crítica sobre o aparentemente longo vôo emdireçãoaonadaqueaÁfricatemexperimentadodurantetodaa suahistória.Ateologia,aliteratura,ocinema,amúsica,afilosofia políticaeapsicanálisetambémpoderiamtersidoenvolvidosneste processo,masistonãoocorreu.7Naverdade,aproduçãodossigni- ficadosdominantesdesteseventosfoicolonizadaporduascorren- tes ideológicas de pensamento: uma, nativista, outra, instrumen- talista, que afirmam falar “em nome” da África como um todo.8 Nos trechos seguintes, examinarei estas duas correntes de pensa- mento e delinearei seus pontos fracos. Ao longo desta discussão, proporei formas alternativas ao aniquilamento ao qual elas leva- ram a reflexão sobre a experiência africana do self e do mundo. Mostrareicomoasimaginaçõesafricanasatuaissobreoselfnascem a partir de diversas, mas freqüentemente interconectadas, práti- cas, cujo objetivo é não apenas estabelecer debates factuais e mo- rais sobre o mundo, mas abrir o caminho para a construção de um estilo próprio. Fantasias Primais A primeira corrente de pensamento (marxista e nacionalis- ta)estápermeadapelatensãoentreovoluntarismoeavitimização. Ela tem quatro características principais. Primeiro, uma falta de reflexividade e uma concepção instrumental do conhecimento e daciência,nosentidodequenenhumadelaséreconhecidacomo autônoma.Elassãoúteis,namedidaemqueestiveremaserviçoda lutapartidária.9Estalutaé,elaprópria,investidadeumsignifica- do moral, já que se afirma que opõe as forças revolucionárias às conservadoras.10 A segunda característica é uma visão mecânica e reificadadahistória.Acausalidadeéatribuídaaentidadesfictícias e totalmente invisíveis, no entanto consideradas sempre determi- nantes, em última instância, da vida e do trabalho do sujeito. De acordocomessepontodevista,ahistóriadaÁfricapodeserredu- zidaaumasériedefenômenosdesujeiçãointerconectadaemuma continuidade compacta. Considera-se que a experiência africana do mundo é determinada, a priori, por um conjunto de forças – sempreasmesmas,emboraaparecendodediferentesformas–cuja Estudos Afro-Asiáticos,Ano 23, nº 1, 2001, pp.175-209 RevistaEstudosAfro-Asiáticos 1ªRevisão:16.07.2001 2ªRevisão:30.07.2001 3ªRevisão:12.09.2001 Cliente:BethCobra–Produção:Textos&Formas AchilleMbembe funçãoéevitaroflorescimentodasingularidadeafricana,daquela partedoeuhistóricoafricanoqueéirredutívelaqualqueroutro. Como resultado, afirma-se que a África não é responsável pelascatástrofesquesobreelaseabatem.Supõe-sequeoatualdes- tino do Continente não advém de escolhas livres e autônomas, mas do legado de uma história imposta aos africanos, marcada a ferro e fogo em sua carne através do estupro, da brutalidade e de todotipodecondicionanteseconômicas.11Considera-sequeadi- ficuldade de o sujeito africano representar a si mesmo(a) como o sujeitodeumavontadelivre,resultadestalongahistóriadesubju- gação.Istolevaaumaatitudeingênuaeacríticadiantedaschama- daslutaspelalibertaçãonacionaledosmovimentossociais;àênfa- senaviolênciacomoomelhorcaminhoparaaautodeterminação; àfetichizaçãodopoderestatal;àdesqualificaçãodomodeloliberal dedemocracia;eaosonhoautoritárioepopulistadeumasocieda- de de massas.12 Aterceiracaracterísticaéumdesejodedestruiratradiçãoea crença de que a verdadeira identidade é conferida pela divisão de trabalhoquefazsurgirasclassessociais,emqueoproletariado(ru- ral ou urbano) tem o papel de classe universal por excelência.13 A suposiçãodequeaclasseoperáriaéoúnicoagenciamentoprático que pode se engajar em uma atividade emancipatória, resulta na negação das múltiplas bases do poder social.14 Finalmente, este corpodepensamentosrepousaemumarelaçãoessencialmentepo- lêmicacomomundo.Estapolêmicarelaçãobaseia-seemumcon- juntoderituaisretóricos:oprimeiroritualcontradizerefutaasde- finiçõesocidentaisdaÁfricaedosafricanos,apontandoparaasfal- sidadesepreconceitosqueelastêmcomopressupostos;osegundo, denuncia o que o Ocidente fez (e continua fazendo) à África em nome destas definições; o terceiro, fornece as chamadas provas que, ao desqualificarem as representações ficcionais do Ocidente sobreaÁfrica,eaorefutaremaafirmaçãodequeestedetémomo- nopólio da expressão do humano em geral, supostamente abrem umespaçoemqueosafricanospodemfinalmentenarrarsuaspró- priasfábulasemumalinguagemevozquenãopodemserimitadas, porque são verdadeiramente suas.15 Oquepoderiapareceraapoteosedovoluntarismo,parado- xalmenteéacompanhadodeumafaltadeprofundidadefilosófica edeumcultoàvitimização.Filosoficamente,atemáticahegeliana daidentidadeedadiferença,talcomoclassicamenteexemplifica- da pela relação senhor/escravo, é sub-repticiamente reapropriada pelosex-colonizados.Emumatocantelembrançada“operaçãoet- Estudos Afro-Asiáticos, Ano 23, nº 1, 2001, pp.176-209 RevistaEstudosAfro-Asiáticos 1ªRevisão:16.07.2001 2ªRevisão:30.07.2001 3ªRevisão:12.09.2001 Cliente:BethCobra–Produção:Textos&Formas AsFormasAfricanasdeAuto-Inscrição nográfica”, os ex-colonizados atribuem uma série de característi- caspseudo-históricasaumaentidadegeográficaqueestá,elames- ma,subsumidaaumnomeracial.Estascaracterísticaseestenome são,então,utilizadosparaidentificaroutornarpossíveloreconhe- cimentodaquelesque,porpossuíremtaiscaracterísticasouosten- taremtalnome,sãoconsideradoscomopertencentesàcoletivida- deracialeàentidadegeográfica,assimdefinidas.Àguisade“falar comaprópriavoz”,afigurado“nativo”éreiterada.Fronteirasen- treo“nativo”eoOutro,“não-nativo”,sãodemarcadas.Combase nestasfronteiras,pode-se,assim,distinguirentreo“autêntico”eo “não-autêntico”. No trecho que se segue, argumento que (1) as narrativas marxistas e nacionalistas sobre o eu e o mundo têm sido superfi- ciais; (2) como conseqüência desta superficialidade, suas noções deautogovernoedeautonomiatêmpoucabasefilosófica;e(3)seu privilegiamentodavitimização,emdetrimentodosujeito,emúl- timainstânciaresultadeumacompreensãodahistóriacomofeiti- çaria. Auto-afirmação, autonomia e emancipação africanas – em nomedasquaisodireitoaopróprioeuéafirmado–nãosãoques- tões novas. Quando o tráfico de escravos no Atlântico chegou ao fim,dúvidasquantoàhabilidadeafricanaparaseautogovernar,ou seja, de acordo com Hegel, para controlar sua ânsia predatória e suacrueldade,ganharammaisvigor.Taisdúvidasseconectavama outra, mais fundamental, que estava implícita na forma como a modernidaderesolveuocomplexoproblemageraldaalteridadee, dentrodele,ostatusdosignoafricano.Tantoosmovimentosfilan- trópicos,comoaintelligentsiadaépoca,responderamaestadúvi- da a partir do paradigma do Iluminismo.16 Paraquesepossaentenderasimplicaçõespolíticasdestesde- bates,talvezeudevaassinalarque,paraopensamentoiluminista,a humanidadesedefinepelapossedeumaidentidadegenéricaqueé universalemsuaessência,edaqualderivamdireitosevaloresque podemserpartilhadosportodos.Umanaturezacomumunetodos ossereshumanos.Elaéidênticaemcadaumdeles,porquearazão estáemseucentro.Oexercíciodarazãolevanãoapenasàliberda- deeàautonomia,mastambémàhabilidadedeguiaravidaindivi- dualdeacordocomprincípiosmoraisecomaidéiadobem.Fora destecírculo,nãohálugarparaumapolíticadouniversal.Durante a fase pós-abolição, a questão era se os africanos estavam fora ou dentro do círculo, ou seja, se eles eram seres humanos como todos os outros.Emoutraspalavras,seriapossívelencontrar,entreosafrica- Estudos Afro-Asiáticos,Ano 23, nº 1, 2001, pp.177-209 RevistaEstudosAfro-Asiáticos 1ªRevisão:16.07.2001 2ªRevisão:30.07.2001 3ªRevisão:12.09.2001 Cliente:BethCobra–Produção:Textos&Formas AchilleMbembe nos, o mesmo ser humano, apenas disfarçado sob diferentes for- masedesignações?Poderíamosconsideraroscorpos,aslínguas,o trabalhoeavidaafricanoscomoprodutosdeumaatividadehuma- na, como manifestações de uma subjetividade – ou seja, de uma consciênciatalcomoanossa–deformaapermitirqueosconside- remos, a cada um deles individualmente, como um alter ego (um outro eu)? A estas questões, o Iluminismo ofereceu três diferentes res- postascomimplicaçõespolíticasrelativamentedistintas.Umcon- junto inicial de respostas sugere que os africanos poderiam ser mantidosdentrodoslimitesdesuasupostadiferençaontológica.O lado mais sombrio do Iluminismo via no signo africano algo úni- co, e até mesmo indestrutível, que o separava de todos os outros signos humanos. A melhor testemunha desta especificidade era o corpo negro, que supostamente não continha nenhuma forma de consciência,nemtinhanenhumadascaracterísticasdarazãoouda beleza.17 Conseqüentemente, ele não poderia ser considerado um corpocompostodecarnecomoomeu,porquepertenceriaunica- menteàordemdaextensãomaterialedoobjetocondenadoàmor- te e à destruição. A centralidade do corpo no cálculo da sujeição políticaexplicaaimportânciadada,aolongodoséculoXIX,pelas teorias da regeneração física, moral e política dos negros e, mais tarde, dos judeus. De acordo com este lado mais sombrio do Iluminismo, os africanosteriamdesenvolvidoconcepçõesparticularessobreaso- ciedade,omundoeobemqueelesnãocompartilhariamcomou- trospovos.Eocorrequetaisconcepçõesdeformaalgumamanifes- tariam o poder da invenção e da universalidade peculiar à razão. Tampouco as representações, a vida, o trabalho, a língua, ou os atos referentes à morte realizados pelos africanos, obedecem a qualquerregraouleicujosignificadoelespossam,porsuaprópria conta,conceberoujustificar.Porcausadestadiferençaradical,se- rialegítimoexcluí-los,tantodefactocomodejure,daesferadato- talecompletacidadaniahumana:elesnadatêmquepossacontri- buir para o desenvolvimento do universal.18 Uma mudança significativa ocorreu no início da coloniza- ção. O princípio da diferença ontológica persistiu, e a preocupa- ção com a autodeterminação foi conectada à necessidade de se “tornarcivilizado”.Umlevedeslizamentoocorreudentrodavelha economia da alteridade. A tese da não-similaridade não foi repu- diada, mas não mais se baseava somente na vacuidade do signo como tal. Ao signo foi dado um nome: a tradição. Se os africanos Estudos Afro-Asiáticos, Ano 23, nº 1, 2001, pp.178-209 RevistaEstudosAfro-Asiáticos 1ªRevisão:16.07.2001 2ªRevisão:30.07.2001 3ªRevisão:12.09.2001 Cliente:BethCobra–Produção:Textos&Formas AsFormasAfricanasdeAuto-Inscrição eramtiposdiferentesdeseres,eraporqueelestinhamsuaprópria identidade.Estaidentidadenãopodiaserabolida.Pelocontrário, adiferençateriadeserinscritaemumaordeminstitucionaldistin- ta,enquanto,aomesmotempo,estaordemseriaforçadaaoperara partirdeumaperspectivafundamentalmentedesigualehierarqui- zada.Emoutraspalavras,adiferençaerareconhecida,masapenas namedidaemqueimplicassedesigualdades,queeram,alémdisso, consideradasnaturais,nosentidodequeelajustificavaadiscrimi- nação e, nos casos mais extremos, a segregação.19 Mais tarde, o Estado colonial usou a tradição – ou seja, o princípiodadiferençaedanão-similaridade–comoumaformade governoemsimesma.Específicasformasdeconhecimentoforam produzidascomesteobjetivo.Seupropósitoeracanonizaradife- rençaeeliminarapluralidadeeaambivalênciadatradição.20Opa- radoxodesteprocessodereificaçãoeraque,deumlado,eleparecia seroreconhecimentodestatradição,enquantodeoutroeleconsti- tuíaumjulgamentomoral,porque,emúltimaanálise,taltradição setornaraespecíficaapenasparamelhorindicaraextensãonaqual omundodonativo,emsuanaturalidade,nãocoincidia,deforma alguma,comonosso;emsuma,elenãoerapartedenossomundo, e, portanto, não podia servir como base para uma experiência de convivência em uma sociedade civil. A terceira variante tem a ver com a política da assimilação. Aqui,valeapenaumacomparaçãocomaexperiênciajudaica.Tal comoparaafigura“dosnegros”,ainvocaçãodafiguradosjudeus comooarquetípicooutrodoOcidentefoicentralparaanoçãoilu- ministadeBildung(oprocessoformativopeloqualoindivíduose moveemdireçãoàautonomia).Osjudeuserampercebidoscomo anegaçãodapromessailuministadeumaemancipaçãoatravésdo uso da razão. Em princípio, o conceito de assimilação fundou-se napossibilidadedeumaexperiênciadomundocomumatodosos seres humanos, ou melhor, uma experiência de humanidade uni- versal baseada na similaridade essencial entre os seres humanos. Estemundocomumatodosossereshumanos,estasimilari- dade,supostamentenãoestavamdados,apriori,atodos.Onativo emespecialdeveriaserconvertidoaeles.Estaconversãoeraacon- diçãoparaqueelefossepercebidoereconhecidocomonossocom- panheiroe,porcontadesuahumanidade,deixassedeserirrepre- sentáveleindefinível.Dadasestascondições,aassimilaçãoconsis- tianoreconhecimentodeumaindividualidadeafricanadiferente em relação ao grupo. Os sujeitos africanos podiam ter direitos e usufruirdeles,nãoporcausadeseupertencimentoàsregrasdatra- Estudos Afro-Asiáticos,Ano 23, nº 1, 2001, pp.179-209 RevistaEstudosAfro-Asiáticos 1ªRevisão:16.07.2001 2ªRevisão:30.07.2001 3ªRevisão:12.09.2001 Cliente:BethCobra–Produção:Textos&Formas AchilleMbembe dição, mas pelo seu status como indivíduos capazes de pensarem por si mesmos e exercerem sua razão, esta faculdade peculiar aos humanos.21 Reconhecerestaindividualidade,ouseja,estahabilidadeem imaginar metas diferentes daquelas impostas pelos costumes, era seafastardadiferença.Estadeveriaserapagadaeanuladaseosafri- canosquisessemtornar-seiguaisanóstornar-seiguaisanósequi- sessem,assim,serconsideradoscomoalterego.Destaforma,aes- sênciadapolíticadaassimilaçãoconsistiaemdes-substancializare estetizar a diferença, ao menos para uma categoria de nativos (les évolués) cooptados para o espaço da modernidade por terem sido “convertidos”e“cultivados”,ouseja,tornadospassíveisdeseenca- ixarem na idéia de cidadania e do gozo dos direitos civis. Isso en- volvia a passagem da tradição para a sociedade civil – mas, por meio da experiência do cristianismo e do Estado colonial.22 Quando, no período pós-escravocrata, a crítica africana le- vantouaquestãodaautogestão,herdouestestrêsmomentos,mas nãoossubmeteuaumacríticacoerente.Pelocontrário,soboem- blemadaemancipaçãoedaautonomia,elaaceitou,emsuamaio- ria, as categorias básicas que o discurso ocidental usava, então, paraseurelatodahistóriauniversal.23Anoçãode“civilização”foi umadestascategorias.Elaautorizouadistinçãoentreohumanoe o não-humano ou o ainda-não-suficientemente-humano que po- deriasetornarhumanoselhefossedadoumtreinamentoadequa- do.24 Os três vetores deste processo de domesticação eram a con- versão ao cristianismo, a introdução à economia de mercado e a adoção de formas de governo racionais e iluministas (cf. Blyden, 1967). Na realidade, era menos uma questão de compreender o quelevaraàsituaçãodeservidão,eoqueaservidãosignificava,do que de postular, em abstrato, a necessidade de se libertar dela. Paraosprimeirospensadoresafricanosmodernos,aliberta- çãodasituaçãodeservidãoeraequivalente,acimadetudo,àcon- quistadopoderformal.Aquestãofilosóficaemoralfundamental –ouseja,comorenegociarumlaçosocialcorrompidoporrelações comerciais(avendadesereshumanos),pelaviolênciadasguerras sem fim e pelas catastróficas conseqüências do modo pelo qual o podereraexercido–eraconsideradasecundária.Acríticaafricana nãoassumiucomosuatarefaprimordialumareflexãopolíticaefi- losóficasobreocaráterdasdisputasinternasqueacarretaramotrá- fico de escravos. Menos ainda se preocupou com as modalidades dereinvençãodaconvivênciaemumasituaçãonaqual,comrela- çãoàfilosofiadarazãoqueelaafirmavapartilhar,todasaseviden- Estudos Afro-Asiáticos, Ano 23, nº 1, 2001, pp.180-209 RevistaEstudosAfro-Asiáticos 1ªRevisão:16.07.2001 2ªRevisão:30.07.2001 3ªRevisão:12.09.2001 Cliente:BethCobra–Produção:Textos&Formas

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MALAQUAIS, Dominique (no prelo), “Anatomie d'une Arnaque. Feymen et Feymania au Cameroun”. MAMA, Amina; IMAM, Ayesha e SOW, Fatou (eds
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