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D:\Estudos Afro-Asiáticos\Estudos Afro Ano 25 nº 2 2003\Estudos Afro Ano 25 nº 2 2003.vp PDF

42 Pages·2004·0.26 MB·Portuguese
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“O que o rei não viu”: música popular e nacionalidade no Rio de Janeiro da Primeira * República Letícia Vidor de Sousa Reis Resumo Nesteartigo,pormeiodoacompanhamentodoprocessodelegiti- maçãodosambacariocaduranteastrêsprimeirasdécadasdoséculoXX, a autora investiga de que maneira esse ritmo deixa, paulatinamente, os redutosnegrosevaisefirmandocomonacional.Talprocessofoiconfli- tuosoeambíguoporestarvinculadoaoreconhecimentosocialdonegro noBrasil.Dessaforma,seoritmofruídoeraomesmo,seussignificadose usoseramdiversos.Observa-se,então,umacisãonasensibilidadeestéti- cadaselitesdoperíodonoqueserefereàessamúsicapopular,oquepro- vocará uma oscilação entre o elogio e o repúdio à mesma. Esta dupla perspectivarelaciona-seaumdosgrandesdilemasdosintelectuaisego- vernantesdaépocaquantoàconstituiçãodocorpopolíticodaPrimeira República.Se,deumlado,oscritériosdarwinistassociaiseramumem- pecilhoàplenaincorporaçãodonegroàesferapública,deoutrolado,as tradiçõesculturaisnegras,preteridascomosinalde“decadência”,eram já parte constituinte da expressão do nacional. Finalmente, investiga comoessedilemasetraduziunainfrutíferatentativadecriaçãodeuma simbologiapopularporpartedajovemRepública,embuscadesualegi- timidadepolítica. *Esseartigoéumaversãomodificadadepartedeminhatesededoutoradointitu- lada“Nabatucadadavida:sambaepolíticanoRiodeJaneiro(1889-1930)”,de- fendidaem1999juntoaoProgramadePós-GraduaçãoemAntropologiaSocialda FaculdadedeFilosofia,LetraseCiênciasHumanasdaUniversidadedeSãoPaulo, sob orientação da ProfaDraPaula Montero. Estudos Afro-Asiáticos,Ano 25, no2, 2003, pp.237-279 RevistaEstudosAfro-Asiáticos 1ªRevisão:28.10.2003–2ªRevisão:12.12.2003 Cliente:BethCobra–Produção:Textos&Formas LetíciaVidordeSousaReis Palavras-chave:músicapopular,PrimeiraRepública,1900-1930,tradi- çõesculturaisnegras,negro,simbologiapopular,sambacarioca. Abstract "What the king hasn't seen": popular music and nationality in Rio de Janeiro during the First Republic. Accompanying the legitimization process of the carioca samba during the first three decades of the 20th Century, the author investigateshowthisrhythmgraduallyhasgonefromblackghettostoa nationalsphere.Suchprocesswasconflictingandambiguousforbeing attachedtoBrazil´ssocialrecognitionofblackpeople.Therefore,ifthe rhythm was the same, its meaning and usage were diverse. The elites' esthetic sensitivity split during the period of time that referred to tath popularmusic,whichhasprovokedanoscillationbetweenrecognition and rejection. This double perspective is related to one of the intellectuals' and governors' great dilemmas concerning the constitution of a political body in the First Republic. If, on one hand, thesocialDarwinistcriteriawereobstaclespreventingtheincorporation of black people in the public sphere, on the other, the black cultural traditions - set aside as a sign of "decadence" - had already become a nationalexponent.Finally,itisinvestigatedhowthisdilemmashowed no results in attempting to create a popular symbolization during the FirstRepublictowardsitspoliticallegitimacy. Keywords: Popular music, First Republic, 1900-1930, black cultural traditions,Negro,popularsymbolization,cariocasamba. Résumé «Ce que le roi n’a pas vu»: musique populaire et nationalité dans le Rio de Janeiro de la Première République À travers l’analyse du processus de légitimisation de la samba carioca pendant les trois premières décades du XXème siècle, l’auteur montrecommentcerytmequitte,peuàpeu,lesredoutesdesNoirspour s’affirmer sur le territoire national brésilien. Un tel processus a été ambiguetpleindeconflitsétantdonnéqu’ilétaitliéàlareconaissance socialeduNoirauBrésil.C’estainsique,sicerytmedelajuissanceétait le même, ses significations et ses usages étaient très diversifiés. On remarque alors une scission dans la sensibilité esthétique des élites, à cette époque-là, en ce qui concerne cette musique. Cette double 238 RevistaEstudosAfro-Asiáticos 1ªRevisão:28.10.2003–2ªRevisão:12.12.2003 Cliente:BethCobra–Produção:Textos&Formas “Oqueoreinãoviu”:músicapopularenacionalidadenoRiodeJaneiro... perspective se rapporte à l’un des grands dilemmes des intellectuels et desdirigeants,àl’époque,pourlaconstitutiond’uncorpspolitiquesous la Première République. Si, d’un côté, les critères sociaux darwiniens étaient une entrave à la pleine intégration du Noir dans la sphère publique, d’un autre côté, les traditions culturelles noires, en tant que signesde«décadence»,faisaientdéjàpartieintégrantedel’expréssionde lanation.Enfin,onyanalysecommentcedilemmesetraduitparl’échec de l’essai de création d’une symbologie populaire par la jeune République,àlarecherchedesalégitimitépolitique. Mots-clés:musiquepopulaire,PremièreRépublique,1900-1930,tradi- tionsculturellesnoires,Noir,symbologiepopulaire,sambacarioca. 239 RevistaEstudosAfro-Asiáticos 1ªRevisão:28.10.2003–2ªRevisão:12.12.2003 Cliente:BethCobra–Produção:Textos&Formas Nãoexisterazão queumsambanãovença étodaminhailusão etambémminhacrença (Batatinha–LulaCarvalho) R elatando as impressões do escritor carioca João do Rio a res- peito do aprofundamento da cisão social provocada pela re- forma urbana sofrida pela cidade do Rio em princípios do século XX, Nicolau Sevcenko (1998b:543) comenta: “Na verdade, [como constata João do Rio], surgiam dois Rios de Janeiro frutos da reforma, o da Regeneração, da nova norma urbanística, racio- nal e técnica, e o outro, o labirinto das malocas, do desemprego compulsório e ‘livre de todas as leis’”. Porém,osdomíniosterritoriaisesociaisdos“doisRiosdeJa- neiro”muitasvezesseconfundiam.Issoprovocavaaindignaçãode alguns, como podemos observar numa crônica de 1906, assinada pelo poeta Olavo Bilac, que lamentava a ‘selvagem’presençanegranarecém-inauguradaAvenidaCentral,princi- palíconedaRegeneração:[...]Numdosúltimosdomingosvipassarpela AvenidaCentralumcarroçãoatulhadoderomeirosdaPenha:enaquele amplo boulevard esplêndido, sobre o asfalto polido, contra a fachada ricadosprédiosaltos,contraascarruagensecarrosquedesfilavam,oen- controdovelhoveículo[...]medeuaimpressãodeummonstruosoana- cronismo:eraaressurreiçãodabarbaria—eraumaidadeselvagemque voltava,comoumaalmadooutromundo,vindoperturbareenvergo- nharavidadaidadecivilizada[...]Aindaseaorgiadesbragadaseconfi- nasseaoarraialdaPenha!Masnão!acabadaafesta,amultidãotransbor- da como uma enxurrada vitoriosa para o centro da urbs [...] (Bilac, 1906) Tentemoscompreenderarazãodesuaira,colocando-nosna perspectivadopoeta:acidadehaviasidoremodeladaparapossibi- litaracirculaçãodeautomóveisebondeselétricos;noentanto,vi- nhaaquela“enxurradavitoriosa”de“romeirosdaPenha”,monta- dos em seu “carroção”, desaguar justamente ali, na Avenida Cen- 241 RevistaEstudosAfro-Asiáticos 1ªRevisão:28.10.2003–2ªRevisão:12.12.2003 Cliente:BethCobra–Produção:Textos&Formas LetíciaVidordeSousaReis tral!Ficaevidenteaidéiadequeocentrodacidade,comsuanova arquitetura e equipamentos urbanos, deveria ser desfrutado ape- nas pelas camadas mais abastadas da população, enquanto o res- tante deveria confinar-se às áreas periféricas. Contudo, essa nova lógica de ocupação do espaço urbano não conseguiria se impor facilmente, como por certo pretendiam seus mentores. Afinal de contas, aquele mesmo território estava tradicionalmente marcado por intensa circulação das camadas maispobresdacidade.Asmaltasdecapoeira,porexemplo,nume- rosas durante o Segundo Reinado, disputaram palmo a palmo a hegemoniasobreosbairroscentraisdacapital.1Asruasdaquelare- gião também eram tomadas pelos populares durante o Carnaval desdemeadosdoséculopassado,sejajogandoentrudo,desfilando fantasiados de velhos, príncipes e diabinhos, de forma autônoma ou como participantes de cordões e zé-pereiras, ou simplesmente assistindo aos préstitos das “grandes sociedades” carnavalescas.2 Alémdisso,haviatambémasfestascívicasereligiosas,quepontua- vam o calendário do período imperial. Ao lado das festas oficiais darealeza,organizou-setambémumaagendadefestaspopulares, como as cavalhadas, congadas, batuques, folia de Reis e festa do Divino. Grande parte das festividades tinham como palco a área central da cidade (Schwarcz, 1998:247-278). Porém, além do privilégio de uso exclusivo do centro da ci- dadepelaselites,ascríticasdeBilacdeixamtransparecertambém uma explícita condenação à cultura popular, aliás um outro item caro à política da Regeneração. Dessa forma, a festa dos romeiros seria uma “orgia desbragada” que, por isso mesmo, deveria se res- tringir ao “arraial da Penha”. Que“almadooutromundo”eraestaquetantooapavorava? Que ameaça traria quando, insistindo em sair do domínio a ela destinado,adentravaocoraçãodaurbs?Ajulgarpelotexto,operi- goeraqueviesseareinstaurarabarbárienolugardacivilização.E, comoareferênciadizrespeitoàFestadaPenha,umlocalprivilegi- adodeencontrosocialeprincipalmentemusicaldenegrosemesti- ços, o alvo é certeiro: a condenação recai aqui sobre as tradições culturais negras. Na verdade, o esforço conjunto das elites e do governo oli- gárquicodaPrimeiraRepúblicaianosentidodecontençãodasas- simdenominadas“classesperigosas”,3especialmentenotocanteà suaherançaafricana.Contudo,apesardasvertigensquecausavaa Bilac e das tentativas de reprimi-la, a presença negra foi, pouco a pouco, se fazendo sentir na cidade. E isso sob as formas culturais 242 RevistaEstudosAfro-Asiáticos 1ªRevisão:28.10.2003–2ªRevisão:12.12.2003 Cliente:BethCobra–Produção:Textos&Formas “Oqueoreinãoviu”:músicapopularenacionalidadenoRiodeJaneiro... sensíveis da música, da festa, do canto, da dança: havia a popular FestadaPenha,afestadoCarnaval,asrodasdesambanacasadas “tias”baianas(emespecialada“tia”Ciata),assedesdassociedades carnavalescas(ranchosecordões),ossalõesdebailespopulareseo teatro de revistas, dentre outros divertimentos. As primeiras décadas deste século marcaram a entrada defi- nitivadoBrasilnachamadamodernidadecomaintroduçãodorá- dio, da gravação de discos, do gramofone e do telefone, entre ou- tros.Contudo,taisbenefíciosestavamdesigualmentedistribuídos pelo conjunto da sociedade, ainda que fossem uma aspiração de todos. Como afirma Sevcenko (1998b), as classes populares vis- lumbravam na modernidade algumas brechas que lhes ofereces- sem alguma oportunidade de ascensão social. Nessesentido,amúsicaoferecia-secomoumapossibilidade deinserçãodasclassespopularesnaeramodernapormeiodaain- da incipiente cultura de massas. Porém, para fazê-lo, não lhes era possívelqueseopusessemfrontalmenteàscensuras,aosconstran- gimentoseàsrestriçõesquelheseramimpostos.Afinaldecontas, comosabiamentealertavaotítulodeumapeçadeteatrorebolado, encenadaem1928,Mandaquempode(J.CristobaleSáPereira). Nesseartigo,procuroentrevercomo,pormeiodamúsica,as classespopularesconquistamaampliaçãodeespaçosocialepolíti- co durante a Primeira República, observando com quem seus agentes se aliam e com quem se indispõem nessa empreitada. Enfrentando-se indiretamente com as censuras e proibições, suas atitudes combinarão, simultaneamente, acato com desacato, isto é,umaaparenteadesãoàordemqueescondesempreumdesrespei- toàmesma.Agalhofaeapilhériaserãorecursoslargamenteutili- zadosporeles,tantoemseusconfrontoscomasautoridadescomo nas querelas que tinham entre si. Nãofoiminhaintençãoaquireconstituirahistóriadamúsi- capopularcariocanastrêsprimeirasdécadasdoséculoXX.Oque procureifazerfoiinterpretaramaneirapelaqualumacertamoda- lidade de samba, produzida no Rio de Janeiro nas primeiras três décadas do século XX, deixa, paulatinamente, os redutos popula- rese,aolongodasdécadasde1930e1940,vaisefirmando,num tempo surpreendentemente breve, como um dos mais destacados íconesnacionais,tantoparadentrocomoparaforadopaís.Osou- trosgênerosmusicaisproduzidosnoBrasilpassarãoentãoaservis- tos como regionais4 (Vianna, 1995:111). 243 RevistaEstudosAfro-Asiáticos 1ªRevisão:28.10.2003–2ªRevisão:12.12.2003 Cliente:BethCobra–Produção:Textos&Formas LetíciaVidordeSousaReis As tradições culturais negras: entre a repressão e a exaltação NoperíodoquemedeiaentreofinaldoséculoXIXeaspri- meirastrêsdécadasdoséculoXX,observa-seumenfoqueambiva- lente por parte de literatos, intelectuais e políticos brasileiros em relaçãoàculturanegra.Deparamoscomumacondenaçãodeprá- ticasconsideradas“bárbaras”e,simultaneamente,comumenalte- cimento das mesmas, exaltadas como produtos da “originalidade nacional”. Por um lado, a cultura negra é apreendida pelo critério da falta:asdançaseosritmosnegrosnãotêm“estéticanemarte”(Frei- tas, 1985 [1921]:153), não possuem “tom nem som” e tampouco gozamde“espíritoegosto”(apudRodrigues,1977[1933]:157).Os instrumentosmusicaisdosnegrossão“rudes”,“bárbaros”efazem uma “algazarra infernal”. Contudo, de outro lado, esboça-se uma visão que tende a conceber essa mesma cultura como dotada de conteúdo, sendo que algumas tradições culturais negras serão, pouco a pouco, re- presentadascomonacionais.Comojánoteiemestudoanteriorso- breacapoeira(Reis,2000),aomesmotempoemqueécriminali- zadapeloCódigoPenalde1890,surgeumarepresentaçãopositiva dessalutaquedeploraosquevêemnelaapenasoquetemde“mau ebárbaro”eareclamacomo“nossagymnasticanacional,herança da mestiçagem no conflito de raças” (Moraes Filho, 1979 [1893]:257). Observe-se que o autor dessa assertiva, o folclorista baiano MelloMoraesFilho,buscaaquiumaassociaçãoentremestiçagem enacionalidade,umavezqueabrasilidadedacapoeiraéatribuída justamenteàsuaorigemhíbrida.Noentanto,acapoeiraquevaise tornando um esporte em âmbito nacional, embora seja uma luta mestiça não é aquela das elites cariocas da virada do século XIX para o século XX, as quais tinham para ela um projeto nacional, mas a capoeira popular baiana, alicerçada em um projeto étnico que ganha importância a partir da década de 1930 em Salvador (Reis,2000).Porém,épossívelnotarumacertaproximidadeentre algumasidéiasepráticasdaquelacapoeirailustradacariocaeaca- poeira popular baiana. Em ambas, por exemplo, ressalta-se uma fortepreocupaçãoemdifundirsuapráticacomoumesporte,em- bora este seja representado de forma diversa. Não existe, assim, uma ruptura entre esses dois modos de “esportização”dacapoeira,observando-seaquiummovimentodi- nâmico de renovação de sentidos sociais que põe em contato as 244 RevistaEstudosAfro-Asiáticos 1ªRevisão:28.10.2003–2ªRevisão:12.12.2003 Cliente:BethCobra–Produção:Textos&Formas “Oqueoreinãoviu”:músicapopularenacionalidadenoRiodeJaneiro... culturasbrancaenegranopaís.Se,deumlado,aculturanegrase embranquece, de outro a cultura branca se enegrece, o que se de- senrola, evidentemente, sob o signo da dominação e tem, como sua necessária contrapartida, a confrontação negra. Para evitar- mos a armadilha de uma redução dicotômica da cultura em dois pólos, o “popular” e o “erudito”, talvez possamos chamar a esse modelohíbridodacapoeirapopularbaiana,quesetornounacio- nal, de uma sorte de “formação cultural de compromisso” (Ginz- burg, 1991).5 Também em relação ao maxixe podemos observar uma du- pla percepção que aponta, simultaneamente, para a admiração e paraacensura.Omaxixe–umadançaeumgêneromusical–teria surgido nos bailes da chamada “pequena África do Rio de Janei- ro”,6porvoltadadécadade1870,tendosevulgarizadoemprincí- pios do século XX. Condenado por ser “lúbrico” e “enquadrar-se admiravelmente dentro da canalhice bárbara” (Efegê, 1974:162) seria,noentanto,levadoaParis,nocomeçodoséculoXX,porDu- que, membro de uma família baiana abastada que se celebrizaria juntamente com suas partenaires nos requebros dela matchiche, a chamada “dança nacional” do Brasil. Esta dupla perspectiva, que marca particularmente a sensi- bilidade estética das elites em relação à cultura popular, relacio- na-seaumdosgrandesdilemasdegrandepartedosintelectuaise governantes no que se refere à constituição do corpo político da Primeira República. Naquele momento, os critérios darwinistas sociaiseramumempecilhoàplenaincorporaçãodonegroàesfera pública. Porém, em contrapartida, as tradições culturais negras, preteridas como sinal de “decadência”, eram já parte constituinte da expressão do nacional. ComoexplicaMariaLúciaMontes(1998)emsuaanáliseso- bre as matrizes barrocas da cultura brasileira, a tradição cultural ibéricabarrocanocontinenteamericano“eracapazdesoldarnum mesmotodooaltoeobaixo,aseliteseagrossamassadopovo,ten- do por mediação fundamental esta forma por excelência sensível, sensual, essencialmente estética, de transmissão de um ethos e de umavisãodemundorepresentadapelafesta”(p.157).Noentanto, apartirdeprincípiosdoséculoXIX,comaformaçãodosEstados nacionaislatino-americanos,essaculturadafestadeherançasbar- rocas,quenãoseparaosagradodoprofano,seráaospoucosprete- rida pelas elites e perderá a hegemonia, permanecendo restrita ao universo das classes populares. 245 RevistaEstudosAfro-Asiáticos 1ªRevisão:28.10.2003–2ªRevisão:12.12.2003 Cliente:BethCobra–Produção:Textos&Formas LetíciaVidordeSousaReis Senobarrocoasexpressõespopularesnegrassecombinavam comapolíticaporqueaesferapúblicanãoseseparavadaprivada,a República brasileira, ao laicizar o Estado, irá abandonar aquela gramáticapolíticaanterioreteráqueseenfrentarcomadificulda- de de criar as regras de um novo pacto social. Essedivórcioentreculturaepolíticaatenua-seapenasquan- do as teorias darwinistas sociais entram em declínio e começa a afirmar-se uma interpretação mais social do país, tendência esta quesetornariadominanteapartirdadécadade30,comapublica- ção dos trabalhos de Gilberto Freyre (1933) e Sérgio Buarque de Holanda (1936), dentre outros. Na pista do “mistério do samba” Osambacarioca,domodocomooconhecemosatualmente, consagrado de norte a sul do país (e mesmo no exterior) como o ritmonacionalporexcelência,naverdadepareceterseconstituído enquanto tal muito recentemente. Entretanto, ainda que pense- mos no samba como um símbolo nacional reconhecido no nível interno,éduvidosoquetenhaconquistadoplenaaceitação.Além domais,esseprocessodelegitimação,aindaemcurso,éambíguo, comooéolugardonegro(oudasmanifestaçõesculturaisnegras) nasociedadebrasileira,oscilandoaindaentreaexaltaçãoeadetra- ção. Ametamorfosedosambademúsicanegraemmúsicanacio- nal ainda é pouco estudada. Hermano Vianna empreendeu uma primeiraanálisemaisaprofundadasobreessetemaemseulivroO MistériodoSamba(1995).Pormeiodoestudodoprocessodena- cionalizaçãodosambanoBrasil,cujaênfaserecaisobreoperíodo compreendido entre as décadas de 1910 e 1930, Vianna enfoca a especificidadedopadrãoderelaçõesraciaisnopaíseavinculação entre a música popular e a construção da identidade nacional. Paraoautor,anacionalizaçãodosambaéacoroaçãodeum processoseculardeinteraçãodaschamadasculturapopulareeru- dita, proporcionada pela atuação de “mediadores culturais”, res- ponsáveis pelo intercâmbio de elementos entre essas duas esferas decultura.Nestesentido,Viannaconsideraemblemáticoumen- contro entre membros da elite intelectual da época e músicos po- pulares para uma “noitada de violão”, ocorrido no Rio de Janeiro em 1926 (1995:19-36). 246 RevistaEstudosAfro-Asiáticos 1ªRevisão:28.10.2003–2ªRevisão:12.12.2003 Cliente:BethCobra–Produção:Textos&Formas “Oqueoreinãoviu”:músicapopularenacionalidadenoRiodeJaneiro... Contudo,comoprocurareimostraraolongodesteartigo,a conquistadalegitimidadedosambafoi(eaindaoé)árduaecarre- gadadeconflitos.7Eissoporquenãosepodedesvinculá-ladopro- cessodereconhecimentosocialdonegronoBrasil.Nofinaldosé- culo XIX, a abolição da escravidão pôs fim às antigas relações se- nhoriais de domínio. Com a ampliação da cidadania para os ex-escravos,atemperaturadatensãoracialentrenegrosebrancos tende a se elevar. Como lembra Lilia Schwarcz (1993), é exata- mente nesse momento, quando a igualdade jurídica é conferida a todos,queasteoriasdeterministasraciaisganhamforçanopaíse, aoestabeleceremdistinçõesbiológicasehereditáriasentrenegrose brancos, acabam por naturalizar a diferença entre as raças. Nesse sentido, é a perfectibilidade da imensa massa de ex-escravos que estavasendopostaemquestãonafundaçãodonovopactopolítico republicano, cujos termos estavam sendo então estabelecidos. Oaprofundamentodaanálisedodebatecientíficodaépoca sobre a questão racial está ausente na análise de Vianna. Ainda que,comoafirmaoautor,tenhahavido,aospoucos,umapositiva- çãodoelementomestiçonopaís,nãosepodeignorarque,desdeas últimas décadas do século XIX até o princípio do século XX, pre- dominava um modelo racial de análise que via na miscigenação um sinal de degeneração. Umcaminhoparaoaperfeiçoamentodaraçanegrafoiapon- tadopelachamada“teoriadobranqueamento”.Adeptosdodarwi- nismosocial,seuspropositorespropugnarãopelobranqueamento dapopulaçãobrasileiraaserobtidoatravésdeumprocessograda- tivodeseleçãonaturalesocial,queconduziriaauma“mestiçagem eugênica”,istoé,àdepuraçãodascaracterísticasnegrasdosmesti- ços. O “homem de ciência” João Batista de Lacerda, diretor do MuseuNacional,convictodasidéiasdoevolucionismosocial,foi o representante oficial no Primeiro Congresso Universal das Ra- ças, realizado em Londres, em 1911, onde apresentou seu ensaio “SurlesmétisauBrésil”.EleparticipoudoCongressocomainten- ção de defender a tese do branqueamento da raça – a ser atingido por intermédio da mestiçagem – como forma de resolução do “problema racial brasileiro”. Contudo, é interessante notar que Lacerda atuava como porta-vozdopresidenteHermesdaFonseca(1910-14),omesmo que,noambientemaisintimistaeprivadodopaláciopresidencial, recebera o rancho carnavalesco Ameno Resedá e cuja mulher to- couaoviolãoocorta-jacadeChiquinhaGonzaganumarecepçãoa 247 RevistaEstudosAfro-Asiáticos 1ªRevisão:28.10.2003–2ªRevisão:12.12.2003 Cliente:BethCobra–Produção:Textos&Formas

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Estudos Afro-Asiáticos, Ano 25, no 2, 2003, pp. 237-279 .. bora a proposição de Antônio Candido sobre a presença da ética da. “dialética da
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