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descentralização e poder local em alexis de tocqueville1 PDF

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REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 15: 83-96 NOV. 2000 DESCENTRALIZAÇÃO E PODER LOCAL EM ALEXIS DE TOCQUEVILLE1 Klaus Frey Pontifícia Universidade Católica do Paraná RESUMO A partir da apresentação de alguns elementos básicos do pensamento de Alexis de Tocqueville – sua concepção de uma democracia liberal, seu conceito de liberdade e a sua teoria do interesse bem compreendido – analisamos neste artigo a concepção tocquevilleana sobre descentralização e poder local sobretudo no que diz respeito à sua contribuição para as teorias democráticas contemporâneas e para a fundamentação teórica de uma abordagem democratizante da descentralização político-administrativa. PALAVRAS-CHAVE: poder local; descentralização; Tocqueville; teoria da democracia I. INTRODUÇÃO No que diz respeito à reflexão teórica acerca do poder local, notam-se déficits referentes à Buscamos neste trabalho analisar a concepção inclusão da dimensão “poder local” na teoria do tocquevilleana sobre descentralização e poder Estado moderno, particularmente por parte da local. Partimos da convicção de que a (re)leitura Ciência Política. Enquanto ainda para Aristóteles dos clássicos do pensamento político cabe não o enfoque central era a cidade, ou seja, a comu- somente enquanto objetivo em si mesmo, não nidade política que “visa ao mais importante de somente pela possibilidade de que o conhecimento todos os bens” (ARISTÓTELES, 1997, p. 13), do modo de pensar de nossos antepassados possa onde o homem enquanto animal social pode chegar contribuir para entender melhor os fundamentos ao auge de seu desenvolvimento e, deste modo, de nosso atual estado de consciência e para participar de uma vida melhor; com o surgimento alcançar um conhecimento mais profundo do do Estado moderno e a diversificação e com- nosso próprio tempo, mas também porque plexificação da sociedade moderna, o poder local supomos que existem problemas e fenômenos que perde seu devido lugar nas concepções teóricas ocorrem reiteradamente na convivência dos sobre o Estado e a democracia. Nunes chega até homens em sociedade, e que têm relevância a falar de um “não lugar das unidades subna- universal para a vida social e sobre os quais autores cionais, em particular do município ou comuna, de tempos remotos fizeram afirmações impor- no pensamento político moderno” (NUNES, 1996, tantes. Isso, sem dúvida, vale para o pensamento p. 32). de Alexis de Tocqueville, justificando portanto uma leitura de sua obra com o mesmo intuito com o Essa afirmação, no entanto, parece-me um qual o próprio Tocqueville realizou seu estudo pouco equivocada face, por exemplo, à utopia sobre a sociedade americana, a saber, a busca rousseauniana de um contrato social baseado na pragmática por “ensinamentos dos quais pu- igualdade e na liberdade, que – inspirada pela déssemos tirar proveito” (TOCQUEVILLE, 1977, democracia vivida por ele na cidade de Genebra – p. 19). pressupõe a unidade pequena, uma comunidade homogênea com uma diversidade limitada de interesses, como também face à asserção de Tocqueville de que a liberdade se efetiva mais 1 Este artigo baseia-se em uma pesquisa sobre “Desen- facilmente em pequenas nações onde as fortunas volvimento sustentável, democracia e gestão municipal: costumam ser mais moderadas, os costumes mais fundamentos teórico-conceituais para um modelo demo- simples e tranqüilos e onde o amor pelo país cratizante de gestão ambiental para municípios”, financiada costuma ser mais intenso: “To choose liberty pelo CNPq. Rev. Sociol. Polít., Curitiba, 15, p. 83-96, nov. 2000 83 DESCENTRALIZAÇÃO E PODER LOCAL EM ALEXIS DE TOCQUEVILLE means to choose a simple life, and the true home Na sua interpretação do processo histórico- of such a life is the small republic” (ALULIS, social, Alexis de Tocqueville parte da tese da 1998, p. 87). “inevitabilidade histórica da democracia” (JASMIN, 1997b, p. 202). O igualitarismo estaria Com Alexis de Tocqueville surge, quase um em vias de se consolidar e de se generalizar, sem século depois de Rousseau e da Revolução Fran- que para isso fossem necessários maiores esforços cesa, um autor tal como Rousseau, movido pela por parte dos atores políticos. O gradual desen- inquietação pela liberdade, mas não mais se atendo volvimento da igualdade enquanto “fato con- ao ideal democrático da pólis e contemplando os sumado” (TOCQUEVILLE, 1977, p. 19) ou “rea- condicionantes da liberdade política no contexto lidade providencial” (idem, p. 13)3 assume função da sociedade moderna de massa. fundamental tanto para a historiografia como para Analisamos neste artigo alguns conceitos teó- a teoria política de Tocqueville. No entanto, ricos básicos da obra de Tocqueville – sua concep- enquanto ainda para Rousseau a condição de ção de uma democracia liberal, seu conceito de igualdade representava um objetivo indubita- liberdade e a sua teoria do interesse bem com- velmente positivo e desejável, em Tocqueville a preendido –, os quais visam o estabelecimento de força irresistível do igualitarismo e da democra- uma ordem social baseada e sustentada por uma tização inspira “um terror religioso” (Georges nova cultura política da liberdade, impulsionada Lefebvre, apud JASMIN, 1997b, p. 203), ao pela própria sociedade civil. Tais elementos da colocar em risco a liberdade e preparar o caminho teoria política de Tocqueville são fundamentais para a servidão ou o despotismo. É a igualdade, e para suas concepções de poder local e descentra- não a liberdade, o aspecto fundamental que lização, as quais serão apresentadas na seqüência. caracteriza a democracia, à qual o liberalismo é Nas considerações finais será enfatizada a impor- condenado a se abrir, a fim de poder preservar e tância do pensamento tocquevilleano para o atual garantir a liberdade para a época da igualdade debate em torno das teorias da democracia. (DÖHN, 1998, p. 218). Uma vez declarado o cres- cente igualitarismo como condição social vitoriosa II. ELEMENTOS BÁSICOS DO PENSAMENTO restam, para Tocqueville, somente duas possíveis TOCQUEVILLEANO PARA SUBSIDIAR alternativas: ou a liberdade democrática ou o UMA TEORIA DO PODER LOCAL E DA despotismo democrático (ZETTERBAUM, 1967, DESCENTRALIZAÇÃO p. 3). A sua expectativa era pessimista. Tocqueville Como Jean-Jacques Rousseau, também Alexis previu a difusão do individualismo moderno, que de Tocqueville vê com bastante desconfiança a conduziria ao isolamento social dos homens e a consolidação da sociedade pequeno-burguesa atitudes alheias à virtude cívica e ao engajamento caracterizada pela predominância da atividade público, devido ao economicismo e ao consumismo comercial e industrial, mas não por ater-se ou iden- que vêm acompanhando o crescente bem-estar tificar-se – como Rousseau – com a simplicidade privado usufruído pela grande massa da popu- e autenticidade da vida natural de comunidades lação. O resultado seria um despotismo moderno tradicionais de caráter rural, mas, ao contrário, “que escraviza as almas sem atormentar os por temer a perda da grandeza, da glória e da liber- dade que o ancien régime ofereceu e proporcionou, pelo menos aos integrantes da aristocracia diri- gente. “Descendente de uma grande família, extraída de um fragmento não publicado, evidencia o dilema Tocqueville oscila, nos seus julgamentos a respeito e a tensão vividos por Tocqueville. da sociedade democrática, entre a severidade e a 3 A discussão em torno de como interpretar a questão da indulgência, entre uma reticência do seu coração Providência na obra de Tocqueville é bastante controversa; e uma adesão hesitante da sua razão” (ARON, ver a respeito JASMIN (1997a; e 1997b). Importante para 1993, p. 210)2. nossa análise é o fato de Tocqueville não questionar o crescente igualitarismo que é considerado uma ameaça à liberdade. Na interpretação de VIANNA (1993), Tocqueville consciente- mente se nega a explicar a Providência para não perder de vista seu objetivo principal, que é, acima de tudo, encontrar 2 “I have an intellectual taste for democratic institutions, na análise do processo de socialização e no estudo das but I am an aristocrat by instinct, which means that I scorn mudanças sociais respostas sobre como preservar a liberdade and fear the crowd” (BOESCHE, 1987, p. 169). Essa citação, num contexto de crescente democratização (p. 165s). 84 REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 15: 83-96 NOV. 2000 corpos” (BORON, 1994, p. 148). direitos, estabelecer-se-ia entre todas as classes uma confiança viril e uma espécie de recíproca O “drama teórico tocquevilleano” (QUIRINO, condescendência, tão distante do orgulho quanto 1998, p. 248) consiste na esperança por ele da humildade servil” (TOCQUEVILLE, 1977, p. depositada na ação política de homens dotados de 15ss). espírito cívico, perseguindo o ideal de liberdade. Essa esperança opõe-se à sua análise pessimista e Tocqueville, em sua “utopia realista”, de certo fatalista do processo histórico4, que é conse- modo abre mão do suposto esplendor da liberdade qüência de sua avaliação de que as condições como sendo própria do regime aristocrático, sociais, econômicas e políticas são fatores deter- esboçando um modelo social que preserva o minantes e condicionantes da atividade pública. A máximo de liberdade, dentro do que lhe parecia preocupação primordial de Tocqueville é um possível no contexto da progressiva demo- suposto declínio da liberdade em conseqüência do cratização das condições sociais: “embora en- aumento do igualitarismo. contremos nesse Estado menos esplendor que no seio de uma aristocracia, também encontraremos Apresentarei a seguir os três elementos básicos menos misérias; os prazeres, dentro dele, serão do pensamento tocquevilleano que me parecem menos extremos, e mais geral o bem-estar; as centrais para subsidiar uma abordagem demo- ciências, menos perfeitas, mas a ignorância, mais cratizante da descentralização político-adminis- rara; os sentimentos, menos enérgicos, porém mais trativa, além de enriquecer os atuais debates – suaves os hábitos; encontrar-se-ão dentro dele teóricos e práticos – em torno das possibilidades mais vícios e menos crimes. [...] Tomada em de uma (re)vitalização das democracias contem- conjunto, a nação há de ser menos brilhante, menos porâneas. gloriosa, talvez até menos forte; dentro dela, Em primeiro lugar, convém frisar as seme- porém, a maioria dos cidadãos gozará de uma sorte lhanças entre a imagem idílica rousseauniana da mais próspera, o povo mostrar-se-á pacífico, não “época mais feliz e a mais duradoura”, na qual a por desesperança de vir a melhorar, mas por saber humanidade teria ocupado “uma posição média que já se acha bem” (TOCQUEVILLE, 1977, p. exata entre a indolência do estado primitivo e a 16). atividade petulante de nosso amor-próprio” e onde Em segundo lugar, é preciso destacar a ênfase o mundo teria vivido sua “verdadeira juventude” ou paixão pela liberdade que figura como motivo (ROUSSEAU, 1973b, p. 270; cf. também norteador da reflexão teórica. Toda a obra de OLDFIELD, 1990, p. 116), e a utopia tocque- Tocqueville é entretecida com a seguinte preocu- villeana da sociedade democrática, que não se pação permanente: “como seria possível adequar tornou vítima do despotismo democrático: “Ima- o que considerava fundamental para a existência gino, então, uma sociedade na qual todos, conside- de qualquer ser humano, a liberdade de cada um, rando a lei como obra sua, ter-lhe-iam amor e a tanto como indivíduo quanto como cidadão, à ela se submeteriam de bom grado; uma sociedade realidade sócio-política existente” (QUIRINO, na qual, por ser a autoridade do governo respeitada 1998, p. 247)? Seu estudo sobre a democracia na como algo necessário e não de natureza divina, o América é motivado pela busca pragmática por amor que se demonstraria ao chefe de Estado não “ensinamentos dos quais pudéssemos tirar seria jamais uma paixão, mas um sentimento proveito” (TOCQUEVILLE, 1977, p. 19), para racional e tranqüilo. Como todos teriam direitos e poder salvaguardar a liberdade nos tempos de lhes seria assegurada a conservação de seus crescente igualdade, tendo ele como objetivo particular preparar a sociedade francesa, onde “o prestígio do poder real desvaneceu-se sem ser 4 No que se refere à inconsistência que caracteriza a tese substituído pela majestade das leis” (idem, p. 16), tocque-villeano da inevitabilidade, compare-se também com para os tempos democráticos. Zetterbaum (1967, p. 12ss). Hannah Arendt até fala no desespero que, em conseqüência da sua análise histórica, Em nítida contraposição à concepção rous- teria acometido Tocqueville em relação ao futuro da liberdade seauniana, na qual a realização da liberdade é da ação política, lembrando-se da asserção tocquevilleana estreitamente vinculada à igualdade social e à de que “desde [que] o passado deixou de lançar sua luz sobre efetivação da vontade geral, a liberdade para o futuro a mente do homem vagueia na escuridão” Tocqueville independe da condição social e (ARENDT, 1997, p. 111ss). 85 DESCENTRALIZAÇÃO E PODER LOCAL EM ALEXIS DE TOCQUEVILLE corresponde basicamente a uma modalidade do como Tocqueville exalta os “grandes corações” e agir político, esta própria dos espíritos mais ele- trata com desdém as “almas medíocres”, ele, de vados. O amor pela liberdade política representa acordo com Manent, não deixa dúvida de que seu o valor mais sublime na concepção política amor pela liberdade “has a foundation that is clearly tocquevilleana, como ele salienta em O Antigo and emphatically inegalitarian and thus anti- Regime e a Revolução: “Muitas vezes cheguei a democratic” (idem). Considerando que Tocqueville me perguntar onde estaria a fonte desta paixão associa o valor da liberdade às antigas instituições pela liberdade política que, em todos os tempos, feudais e ao republicanismo puritano dos imi- levou os homens a realizar as maiores coisas que grantes fundadores das comunas americanas, a a humanidade cumpriu e em que sentimentos está liberdade tocquevilleana não deixa de ser “filha da se enraizando e alimentando” (TOCQUEVILLE, tradição” (VIANNA, 1993, p. 175). Sendo este 1982, p. 160). amor pela liberdade associado à desigualdade, ele contradiz diretamente os fundamentos da demo- Reivindicações de liberdade, no seu entender, cracia. É isso a base para a tensão permanente freqüentemente não passam de críticas à inefi- entre a liberdade e a democracia que tão enfati- ciência e à incapacidade de governantes opressivos camente está presente na obra tocquevilleana. ou a males passageiros produzidos por regimes despóticos: “pensavam amar a liberdade quando Mas Tocqueville não pode deixar de reconhecer na realidade só odiavam o dono” (ibidem). Tam- que essa forma idílica e não democrática de bém descarta Tocqueville a possibilidade de que liberdade, exaltado por ele, não corresponde ao esperanças referentes a um bem-estar melhor ou tipo de liberdade que vem sendo exercida nas ao aumento da igualdade poderiam fomentar o sociedades aristocráticas realmente existentes. Na espírito da liberdade: “Tampouco creio que o ver- sociedade moderna e complexa, caracterizada pelo dadeiro amor da liberdade jamais tenha sido gerado aumento das chances sociais, a visão holística de pela única visão dos bens materiais que oferece, uma sociedade harmoniosa e integrada, onde cada pois esta visão muitas vezes fica turvada [...]. Os segmento da sociedade ocupa seu devido lugar de povos que nela [na liberdade] só apreciam estes acordo com suas habilidades, capacidades e bens nunca a conservaram por muito tempo” particularidades individuais, grupais, raciais, de (ibidem). estamento ou de classe5, se torna sempre menos convincente face às reivindicações sociais da A liberdade só tem chances de perdurar quando população. Ficam sempre mais evidentes os privi- compreendida como um bem em si mesmo: “O légios e interesses particularistas embutidos e que, em todos os tempos, tão fortemente agarrou encobertos nestas representações ideológicas: os corações de certos homens à liberdade é sua “Aristocratic liberty is the ‘enjoyment of a própria atração, seu encanto, independentemente privilege’; it is a noble version of ‘egoism’; it is de suas dádivas; é o prazer de poder falar, agir, inseparable from a proud domination over those respirar sem constrangimento sob o único Deus e who are not free. Aristocratic liberty is not pure” de suas leis. Quem procura na liberdade outra coisa (MANENT, 1998, p. 83). que ela própria foi feito para a servidão [...]. Não me peçam analisar um gosto sublime, que é preciso Portanto, nem na democracia, nem na sentir. Entra por si mesmo nos grandes corações aristocracia existem condições para o desen- que Deus preparou para recebê-lo, enchendo-os volvimento desse amor pela liberdade. Essa visão e inflamando-os. Temos de renunciar a explicá-lo bastante cética referente à possibilidade da preser- às almas medíocres que nunca o sentiram” (idem, vação – ou criação – da tão almejada liberdade p. 160ss). política, porém, não o induz a abrir mão da sua Nessas únicas passagens em que Tocqueville pronuncia-se de maneira explícita sobre sua representação do conceito de liberdade, evidencia- 5 Essa concepção está presente em todo pensamento se a liberdade como um valor sobremaneira conservador, desde Aristóteles aos defensores da democracia “aristocrático”, “a grace granted to a few” elitista, como também nos reputados representantes do (MANENT, 1998, p. 82), que, por se tratar de pensamento social brasileiro, como, por exemplo, em Gilberto Freyre, com sua concepção da democracia racial, imagem uma dádiva divina, só pode ser vivenciada, mas que se evidencia tão vantajosa e cômoda às aristocracias não ser sujeita a uma análise científica. Da maneira dominantes. 86 REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 15: 83-96 NOV. 2000 busca, haja vista que a desistência equivale, no as esferas pública e privada], longe das tentações entender de Tocqueville, a uma decisão pelo holísticas de submissão do indivíduo e do seu caminho da servidão. Pelo contrário, a necessidade interesse a um Estado que encarne a vontade geral de um empenho incondicional a favor da liberdade da sociedade” (VIANNA, 1993, p. 169ss). impõe-se face às ameaças despóticas do iguali- Tocqueville, diante deste dilema, opta pela tarismo que estão prestes a se instituir “quando o conciliação das duas esferas, que só pode ser gosto pelos prazeres materiais se desenvolve num alcançada por meio de uma prática social educadora desses povos mais rapidamente que as luzes e os que leva à transformação do egoísmo em um hábitos da liberdade” (TOCQUEVILLE, 1977, p. “interesse bem compreendido”. Inspirando-se na 412). Consiste exatamente nesta insistência de experiência americana, Tocqueville conclui que só Tocqueville na realização da liberdade enquanto pode se esperar um envolvimento maior por parte valor intrínseco, uma das suas contribuições mais da população na vida política no caso de a prática importantes e originais para o liberalismo, cujos pública integrar-se ao mundo dos interesses pri- fundadores enfocaram muito mais a liberdade vados. Na busca por um fundamento em comum enquanto um meio e um efeito, e muito menos da ordem social, Tocqueville não aposta nos enquanto um valor que deve ser buscado em si interesses que as pessoas têm em comum – tais mesmo. interesses a longo prazo não seriam suficientes; O terceiro ponto que deve ser levantado refere- além do mais, em certas circunstâncias esses se à importância atribuída ao interesse individual interesses poderiam até separar as pessoas. Ele na concepção democrática de Tocqueville. Em mostra-se preocupado com o estabelecimento de todo pensamento liberal o argumento utilitarista uma ordem que seja firmemente ancorada no está presente. Até Rousseau, com sua glorificação pensar, no agir e nos costumes dos cidadãos. O da coletividade (expressa na sua teoria radical de único bem que teria um potencial de unir os soberania popular e na sua insistência na idéia da indivíduos e determinar o pensar, o agir e o vontade geral), não consegue dispensar de recorrer comportamento dos cidadãos seria a liberdade a um “certo individualismo paradoxal e pragmá- (HERETH, 1979, p. 20). Ela manifesta-se na tico” (SOUZA, 1988, p. 64) para justificar sua prática do exercício da cidadania, a única maneira tese da proficuidade da subordinação à vontade possível de garantir a superação do predomínio geral e sua busca por “alguma regra de adminis- do auto-interesse, no sentido mais estreito, e a tração legítima e segura”. Como ele afirma já no sua substituição pelo interesse bem compreendido, parágrafo inicial de O contrato social: “Esforçar- abrindo possibilidades para uma prática de me-ei sempre, nessa procura, para unir o que o perseguição do bem-estar público na sociedade. direito permite ao que o interesse prescreve, a fim Na América, o alto grau de participação na vida de que não fiquem separadas a justiça e a utilidade” política fez que “the citizen was prepared to (ROUSSEAU, 1973a, p. 27). sacrifice immediate private interest in order to preserve the hole of which he was a part” Tocqueville, em contrapartida, reconhece a (OLDFIELD, 1990, p. 140). O governo de- diversidade de interesses, mas não aceita as solu- mocrático desempenhou o papel de educador, ções contratualistas, que de certo modo sacrificam contribuindo para a ampliação dos horizontes a liberdade individual em nome da pacificação dos mentais, para o esclarecimento e um envolvimento conflitos de interesses por meio de um Estado mais criativo do povo nas questões públicas (idem, sobreposto à sociedade. A chave para a arbitragem p. 129-134). de conflitos de interesses Tocqueville não busca em uma força externa – no Estado –, mas sim Acontece que nas sociedades onde o gosto pela dentro da própria sociedade. É a virtude que deve liberdade não consegue acompanhar os avanços ser fomentada para as sociedades poderem chegar do igualitarismo, os homens, “preocupados apenas a alcançar a liberdade, o que na sociedade mer- com o cuidado de fazer fortuna, não percebem o cantil-burguesa só será possível se os cidadãos estreito laço que une a fortuna particular de cada passarem a identificar o exercício da liberdade um deles à prosperidade de todos” (TOCQUE- política na esfera pública com seus próprios VILLE, 1973, p. 412). O desprezo dos homens interesses privados. O problema que se coloca para pelo interesse supremo – “continuar senhores de Tocqueville é “como enfrentar essa cisão [entre si mesmos” (idem, p. 413) – deve-se a uma 87 DESCENTRALIZAÇÃO E PODER LOCAL EM ALEXIS DE TOCQUEVILLE perturbação da capacidade de percepção causada tuições instituídas por um Estado esclarecido. A pelo consumismo, o conformismo e o imediatismo prática do associativismo americano, tão essencial predominantes nas sociedades igualitárias, que logo para a garantia da liberdade política (OLDFIELD, bloqueia a ação política e o engajamento público: 1990, p. 120), não foi e não poderia ter sido “Os homens que têm a paixão pelos gostos ma- implementado por decreto presidencial, mas é teriais descobrem, via de regra, como as agitações resultado de uma “necessidade contínua de asso- da liberdade perturbam o bem-estar, antes de ciação”, presente nesta sociedade democrática e perceber como a liberdade serve para proporcioná- liberal: “a grande liberdade política aperfeiçoava e lo” (ibidem). vulgarizava em seu seio a arte de se associar” (TOCQUEVILLE, 1973, p. 412). A fim de garantir a boa ordem, condição considerada fundamental para o usufruto desen- Para Tocqueville, contudo, as instituições têm freado do bem-estar material, os homens tornam- uma importância apenas relativa: “Não existe nada se prestes a “atirar fora a liberdade” (ibidem), de absoluto no valor teórico das instituições e sua abrindo o caminho para a tirania: “Uma nação que efetividade quase sempre depende das condições não pede ao seu governo senão a manutenção da originais do estado social do povo, no qual foram ordem é já escrava, no fundo do coração; é escra- aplicadas” (Tocqueville, em uma carta para seu va do seu bem-estar e está prestes a surgir o pai, 3.jun.1831, apud HERETH, 1979, p. 20). homem que deve prendê-la com correntes” As instituições teriam só “uma influência (ibidem). secundária no destino dos homens”, o que fun- Nos Estados Unidos, no entanto, apesar de os damenta sua falta de esperança no futuro e na pos- prazeres materiais dos americanos parecerem-lhe sibilidade de uma (re)engenharia institucional poder particularmente violentos, a paixão pelos prazeres proporcionar a liberdade: “Teria mais esperança materiais pelo menos não equivaleria a uma paixão no futuro, porque por acaso poderíamos algum cega, por ser dirigida pela razão, na medida em dia topar com um precioso pedaço de papel que que o amor pelo bem-estar une-se e finalmente contivesse a receita para todos os males, ou com até se confunde com o amor pela liberdade. “Os o homem que conhecesse a receita. Mas infeliz- americanos, na verdade, vêem na sua liberdade o mente tal coisa não existe e eu estou bastante melhor instrumento e a melhor garantia de seu convencido de que as sociedades políticas não são bem-estar. Amam essas duas coisas, uma pela o que suas leis fazem delas, mas o que os senti- outra” (idem, p. 414). mentos, as crenças, as idéias, os hábitos do co- ração e o espírito dos homens que as formaram, Essa concepção utópica de uma democracia as prepararam com antecedência para ser, assim capaz de reconciliar a liberdade com a igualdade, como o que a natureza e a educação fizeram delas” assegurada pelo predomínio do interesse bem (Tocqueville, em uma carta a um amigo, apud compreendido no processo político, pressupõe a DIGGENS, 1999, p. 31). vigência de uma correspondente cultura política, impulsionada por uma nova prática de ação política O surgimento de um novo padrão de ação social e social dentro da própria sociedade civil. capaz de garantir a liberdade e sintonizado com as características de uma sociedade crescentemente Enquanto nos Estados Unidos a liberdade é igualitária exige a transformação paulatina dos imanente ao processo específico de seu desen- costumes e tradições dentro da própria sociedade volvimento histórico, encontrando-se portanto civil6; nesta concepção, “a democracia se define presente nas suas instituições, nos costumes e suas a partir da sociedade civil” (BORON, 1994, p. práticas políticas e sociais, de maneira incon- 128). Como lembra Döhn, “Tocqueville demonstra testada, nos países desiguais do velho continente aos europeus continentais que liberdade e não é possível dispensar um processo educador, democracia não são resultado de constituições, sustentado por uma nova sociabilidade, fomentada pela própria Ciência Política. Porém, os princípios e exigências desse processo educador não podem simplesmente ser determinados por uma razão abstrata, o que significa que o “esclarecimento” 6 Nesse sentido, a posição de Tocqueville se contrapõe à dos interesses particularistas não pode efetivar-se visão idealizadora do Estado em Hegel; ver a respeito Vianna, através do Estado, através de novas leis e insti- (1993, p. 169-173). 88 REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 15: 83-96 NOV. 2000 por mais indispensáveis que estas sejam, mas que participativo é considerado por ambos como elas têm que ser integradas na sociedade como fundamental para manter abertas as chances de, conse-qüência das condições históricas e respectivamente, criar ou salvaguardar a liberdade societais” (DÖHN, 1998, p. 189). e alcançar o bem comum. Tocqueville compartilha com John Stuart Mill Contudo, Rousseau não consegue transpor seu uma postura cética frente ao liberalismo consti- horizonte empírico pequeno-burguês e não con- tucional que se limita a precauções institucionais segue abrir mão da sua representação idílica de para a garantia da liberdade7. É próprio do uma sociedade simples e arcaica. Desconsiderando liberalismo enquanto teoria da dominação burguesa as condições reais da sociedade da sua época, en- abstrair a realidade social e, ao mesmo tempo, contrando-se esta num profundo processo de omiti-la, o que, de acordo com Döhn, representa transformação, Rousseau perde a possibilidade de uma das fraquezas fundamentais de todo o pensar seu modelo da soberania popular e da liberalismo. Tanto Mill como Tocqueville, vontade geral – teoricamente consistente e coe- contrapondo-se a essa concepção formalista do rente9 mas empiricamente insustentável – para a liberalismo constitucional, tematizam a compa- realidade complexa das sociedades modernas. tibilidade das precondições reais da dominação Tocqueville, ao contrário, norteando-se e inspi- social com os teoremas básicos da liberdade, rando-se nas experiências empíricas e mostrando igualdade e da soberania popular. Ambos autores, uma sensibilidade muito grande referentemente às o primeiro salientando as restrições sócio-eco- transformações sociais em curso naquela época, nômicos, o segundo a centralidade da questão dos tanto na América quanto no velho continente, hábitos e valores morais, chegam a exigir a am- esforça-se explícita e declaradamente – ainda que pliação da participação política e uma politização de maneira relutante – em deixar para trás seus do processo político. O exercício empírico da laços e sua simpatia para com o ancien régime, liberdade política deve ser enxergado como um buscando salvar o que de mais valioso, de acordo processo de aprendizagem, imprescindível para com seu juízo, esta ordem antiga representa: a que os homens possam passar a valorizar a liberdade política. liberdade sem dela abusar (DÖHN, 1998, p. 190). Este pragmatismo e perspicácia faz Tocqueville Face às preocupações centrais de Tocqueville avançar no sentido de pensar uma concepção – o declínio da virtude cívica em razão do cres- moderna e liberal de democracia, fazendo dele, de cente individualismo, materialismo e consumismo acordo com DÖHN (1998, p. 217), o primeiro da sociedade moderna, a que se soma o risco de teórico liberal que demonstra empiricamente a perda da liberdade, da autodeterminação e da possível vitalidade de Estados democráticos de dignidade humana, e, finalmente, o reconhe- grande porte. Porém, essa vitalidade é ameaçada cimento de que os valores fundantes de uma or- constantemente pelo avanço do igualitarismo, por dem democrática têm que se basear nos interesses apresentar uma tendência sufocadora da liberdade, individuais –, fica bastante evidente a busca e pois há risco de se instituir uma “tirania da exigência de um corpo político-social apoiado em maioria”. Esse conceito, na compreensão tocque- laços fortes de solidariedade, os quais só podem villeana, refere-se não somente aos efeitos do ser alcançados por uma prática de ampla partici- princípio da maioria no processo de decisão pação da população no processo político – por política, mas abrange também a idéia de uma tirania sinal, uma visão que Tocqueville tem em comum uniformizadora que se estenderia à vida psicos- com o próprio Rousseau. Apesar do ceticismo que social, intelectual e cultural, suprimindo a diver- os dois autores compartilham referentemente à sidade social. As respectivas idéias e sentimentos probabilidade de se chegar à liberdade8, o processo democráticos, por sua vez, influenciam o funcio- namento e as características da sociedade po- lítica10. 7 Disso provém sua crença na insuficiência e ineficácia dos dispositivos constitucionais elaborados pelos formuladores da Constituição americana para proteger ou promover a 9 Hannah Arendt considera Rousseau “o representante mais liberdade; ver também Diggens, (1999, p. 31). coerente da teoria da soberania” (ARENDT, 1997, p. 211). 8 Boron fala, no caso de Tocqueville, de um “pessimismo 10 Ver, sobre os efeitos do igualitarismo para as idéias, esperançoso” acerca do futuro da democracia (1994, p. 127). sentimentos e costumes, as partes I, II e III do segundo livro 89 DESCENTRALIZAÇÃO E PODER LOCAL EM ALEXIS DE TOCQUEVILLE No seu estudo clássico sobre a transformação atribui ao engajamento do cidadão em nível local estrutural da esfera pública, Jürgen Habermas valor fundamental não apenas para a democracia salienta que tanto para Alexis de Tocqueville como local em si, mas também para dar sustentação à para John Stuart Mill o processo da crescente democracia no nível nacional. Todavia, Tocqueville democratização leva à uniformização da opinião não se atém mais ao ideal clássico da pólis como pública e à deterioração da esfera pública. Esta Rousseau, reconhecendo a necessidade de uma “permeia sempre mais esferas da sociedade e perde estrutura federal para viabilizar a democracia na ao mesmo tempo sua função política, a saber, sociedade de massa (WASCHKUHN, 1998, p. submeter os fatos publicados ao controle de um 229). público crítico” (HABERMAS, 1962, p. 171). Um primeiro aspecto importante na concepção Portanto, a opinião pública, determinada pelas tocquevilleana é sua afirmação de que “a cen- paixões das massas, requer uma limpeza por meio tralização será o governo natural” dos povos demo- do juízo abalizado de cidadãos materialmente cráticos. Os sentimentos e os hábitos dos povos independentes. A opinião pública, na teoria bur- democráticos seriam favoráveis à concentração guesa do Estado de Direito, ainda concebida en- de poder. A inexistência de hierarquias e de quanto instrumento de libertação, é considerada, relações de subordinação nas sociedades igualitárias na teoria liberal, como uma instância de opressão, faz com que as pessoas, impulsionadas por “uma o que exige a introdução de elementos restritivos força secreta”, volvam-se sempre mais para si na concepção de esfera pública, “a fim de asse- mesmas. O conseqüente fortalecimento do indivi- gurar a uma opinião pública que se tornou mi- dualismo proporciona a despolitização da vida noritário – e contra as opiniões dominantes – a pública nas sociedades modernas: “A vida privada influência que ela não consegue mais exercer por é tão ativa nos tempos democráticos, tão agitada, si mesma” (idem, p. 167). tão cheia de desejos, de trabalhos, que quase não resta mais energia nem vagar a cada homem para Por outro lado, enquanto Mill se conforma com a vida política” (TOCQUEVILLE, 1977, p. 515). a psicologia social do público de massa e exige uma esfera pública hierarquizada e meramente O problema da falta de ócio para poder se representativa, Tocqueville identifica – ao lado da dedicar à coisa pública – para Aristóteles, o tirania da opinião pública – uma outra tendência argumento central para excluir dos cargos pú- que ameaça a autonomia do cidadão: a centrali- blicos todas aqueles que estão engajados na luta zação do poder governamental e, conseqüen- diária pela sobrevivência – não se restringe mais temente, o despotismo devido à crescente buro- apenas às camadas mais pobres, mas se transfor- cratização do Estado (idem, p. 168). É a partir ma num elemento estrutural das sociedades demo- dessa análise que Tocqueville desenvolve suas cráticas e capitalistas, conseqüência de seu próprio concepções de descentralização e poder local, que êxito material, colocando em risco o dinamismo trazem elementos importantes visando à recon- da vida pública. quista da autonomia da ação política pelo cidadão Devido à preocupação primária pelo bem-estar e à vitalização da vida política e pública. privado e devido à volubilidade da propriedade, “o III. CENTRALIZAÇÃO E DESCENTRALI- amor à tranqüilidade pública é, não raro, a única ZAÇÃO paixão política conservada por esses povos, e se torna entre eles mais ativa e mais poderosa, à Tocqueville, nos seus escritos, valoriza sobre- medida em que todas as outras se apagam e mor- maneira a pequena comunidade política, pois só rem; isso dispõe naturalmente os cidadãos a cons- esta pode proporcionar a solidariedade indispen- tantemente abrir mão de novos direitos ou a deixar sável para a estimulação da virtude cívica e para a que os tome o poder central, que lhes parece ter, preservação da liberdade política. Além disso, ele exclusivamente, interesse e meios para defendê- lo da anarquia, defendendo-se a si mesmo” (ibidem). Porém, o amor pelo poder central, importante de A democracia na América. A influência das idéias e dos sentimentos democráticos sobre a sociedade política são lembrar, pressupõe tempos de igualdade: “Os expostas por Tocqueville na quarta parte do segundo livro homens que vivem nos séculos de igualdade amam da mesma obra. naturalmente o poder central e de bom grado 90 REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 15: 83-96 NOV. 2000 aumentam os seus privilégios; mas, se ocorre que Como então salvar a liberdade cidadã da tirania esse mesmo poder representa fielmente os seus da maioria e de um Estado crescentemente cen- interesses e reproduz exatamente os seus instintos, tralizado e burocratizado? De acordo com Boron, a confiança que nele têm quase não conhece “a plena realização da liberdade – isto é, da demo- limites, e acreditam estar atribuindo a si mesmos cracia política – só é possível em uma formação tudo aquilo que a ele entregam” (idem, p. 520). social na qual tenham sido abolidas as relações sociais de exploração entre os homens” (BORON, Do mesmo modo que a igualdade promove a 1994, p. 146). A crítica de Boron, de que o dis- concentração do poder, o poder centralizado curso tocquevilleano deixaria faltar os elementos mostra-se atento à realização da igualdade. imprescindíveis para tal compreensão, não me Enquanto em sociedades desiguais – podemos parece oportuna, visto que Tocqueville em nenhum pensar no caso brasileiro – “nenhuma desigualdade momento alimentou esperanças, ou não se entre- é tão grande que chegue a chamar atenção [...], a gou à ilusão, de que tal “plena realização” da menor dessemelhança parece chocante no seio da liberdade poderia ser alcançada na sociedade uniformidade geral; a sua visão torna-se mais moderna. Essa suposta falta de perspicácia em insuportável à medida que a uniformidade é mais relação à penetração da democracia política – completa. É natural, pois, que o amor à igualdade qualificação que Boron reserva exclusivamente ao cresça constantemente com a própria igualdade; “gênio Marx” (idem) – explica-se facilmente se ao satisfazê-la, nós a desenvolvemos” (idem, p. verificarmos a essência da Ciência Política 516). Além disso, o próprio poder central é cres- tocquevilleana – que consiste em uma centemente interessado na igualdade e na uni- intencionalidade bastante prática. Tocqueville formidade, “pois a igualdade facilita, estende e pretende identificar as tendências do desenvol- assegura, singularmente, a ação de semelhante vimento social para dessa maneira fornecer poder”, e “a uniformidade poupa-lhe o exame de subsídios para a orientação da ação política. uma infinidade de detalhes com os quais se deveria Waschkuhn qualifica a Ciência Política tocque- ocupar, se fosse preciso fazer a regra para os villeana de “ciência de orientação construtiva” homens, em lugar de submeter indistintamente (1998, p. 230). Todo trabalho teórico-científico todos os homens à mesma regra. Assim, o governo se dá em função da política prática e é orientado ama o que amam os cidadãos, e odeia naturalmente para a política. Contudo, uma compreensão mais o que eles odeiam” (ibidem). A conseqüência é a adequada de sua idéia de liberdade não pode ser centralização e burocratização da vida pública e extraída de uma mera análise teórica, mas tem de da estrutura do Estado: “Tocqueville knew [...] incluir necessariamente o seu próprio modo de that when men turned to the state to enlarge viver, direcionado para a política (HERETH, 1979, democracy and enhance justice, they inevitably p. 24ss; RODRÍGUEZ, 1998, cap. 3). strengthened the centralized government and brought into being a giant bureaucracy” As convicções e afirmações absolutas pre- (COMMAGER, 1993, p. 32). sentes em toda obra marxiana, sua visão deter- minista do processo histórico, dotado de sentido O objetivo da igualdade é estreitamente rela- imanente, opõem-se tanto à visão weberiana cionado com “a idéia de um governo único, uni- quanto à tocquevilleana, nas quais, forme e forte” (TOCQUEVILLE, 1977, p. 517) – respectivamente, a “jaula de ferro” (em conse- uma noção que se opõe claramente aos objetivos que orientam as concepções de descentralização11. anteriormente, não mostra grande interesse pelas instituições como tais, sendo estas, no seu entender, mera conseqüência 11 A centralização político-administrativa acarreta, por sua da cultura e prática política. Compartilhando em princípio vez, um “desmedido crescimento da burocracia” (BORON, os mesmos valores, os pontos de partida de suas preocupações 1994, p. 136), uma preocupação de Tocqueville compartilhada eram distintas; para Weber era o processo da crescente por Max Weber. Mas ao passo que Weber dedica-se ao papel racionalização que podia potencialmente desembocar em das instituições e organizações enquanto meios de dominação uma “jaula de ferro”; para Tocqueville era o igualitarismo que podem fugir ao controle das vontades e intenções que ameaçava levar a um despotismo moderno (idem, p. humanas (na medida em que estes meios podem transformar- 147). “Weber procurou salvar da burocracia a liberdade e a se nos próprios fins, perdendo com isso sua finalidade moral; Tocqueville procurou salvar esses mesmos valores, original), Tocqueville, na verdade, como já mencionamos mas da democracia” (DIGGENS, 1999, p. 32). 91 DESCENTRALIZAÇÃO E PODER LOCAL EM ALEXIS DE TOCQUEVILLE qüência do processo de racionalização) e o “des- de esferas de ação social nas quais o cidadão potismo democrático” (em conseqüência do pro- americano pode livremente exercer sua cidadania, cesso de nivelamento social), devem ser com- aprender a arte da política e pegar o gosto pela preendidas como representações idealizadoras – liberdade política. Comparando com as condições no sentido dos tipos ideais weberianos – de um na França de sua época, onde todas as instituições futuro estado social que, para ambos, ameaça a intermediárias foram destruídas pelo furor da sobrevivência da liberdade. Mas ambos não revolução, Tocqueville chega a reconhecer o valor descartam – apesar do inegável pessimismo pre- fundamental de tais instituições para a sente neles – a possibilidade de a liberdade poder consolidação de uma república verdadeiramente ser preservada no campo político: ou por meio de democrática. Na França, todas as responsabili- uma “democracia plebiscitária” enquanto contra- dades e competências dos antigos poderes locais poder capaz de enfrentar a poderosa burocracia foram se acumulando no poder central, “o qual se (Weber), ou por meio do exercício ativo da tornou herdeiro de todas as competências de cidadania política via participação política, para decisão até então distribuídas em todo país” despertar na população o gosto pela liberdade e (HERETH, 1979, p. 32). Conseqüência dessa acu- fomentar a virtude cívica (Tocqueville). mulação de responsabilidades era uma sobrecarga do governo central, que não conseguiu dar conta A liberdade política, para Tocqueville, era um das múltiplas e contraditórias demandas vindas de valor em si, o valor supremo que sempre deve ser todos os cantos do país. almejado e buscado; mas ele não deixou dúvidas a respeito da ameaça a qual essa liberdade estaria De modo geral, na medida em que numa permanentemente exposta nos tempos da igual- sociedade de massa e em um território vasto todas dade. Logo, a busca pela liberdade será uma tarefa as atenções acabam se direcionando para um poder infinita, um processo que certamente nunca che- único, o sistema político perde estabilidade, gará ao seu fim. Uma vez que os homens dos fazendo que, particularmente em tempos de crise, tempos democráticos estão “sempre prontos a o poder central transforme-se no inimigo geral da atirar fora a liberdade, à primeira desordem” sociedade. Essa inimizade com o governo central, (TOCQUEVILLE, 1977, p. 413) que possa amea- assim como expectativas desmedidas por parte çar o usufruto irrestrito dos prazeres materiais, é da população, podem, segundo Tocqueville, ser indiscutível que a conservação da liberdade exige considerados indícios de uma falta de empenho e esforços ininterruptos e redobrados responsabilidade generalizada que necessariamente por parte de todos os cidadãos, aquela “energia se propaga em uma sociedade cujos membros irrequieta” (DIGGENS, 1999, p. 29) que Tocque- não dispõem de possibilidades de autodeterminar ville alegou ter identificada no povo americano. e deliberar sobre os assuntos de seu próprio interesse. A crescente igualdade de condições Qualquer estratégia que vise a manter vital essa conduz, irresistivelmente, à ampliação das adminis- inquietação e este zelo permanente pela conservação trações centrais, especialmente “se ela se estabe- da liberdade precisa prever “uma recuperação lece num país cujos cidadãos nunca tiveram ou plena da política, a reativação da cidadania, a não têm mais o hábito de tomar juntamente seus reanimação da vida pública” (BORON, 1994, p. assuntos nas próprias mãos além da difícil arte de 148). Mas como proporcionar a vitalização da polí- fazer isto de forma bem-sucedida” (Tocqueville, tica? Na América Tocqueville detectou o júri em uma carta para seu amigo Beaumont, de 1854, popular, os partidos políticos e outras associações apud HERETH, 1979, p. 33). Em um corpo polí- políticas e sociais, assim como o autogoverno local tico de um país de grande extensão territorial só nos townships como instituições fundamentais para poucas pessoas poderão ter acesso à esfera públi- garantir uma vida política ativa e vital. Contudo, a ca. Quanto mais uma comunidade política centra- descentralização é conditio sine qua non para a liza competências e direitos decisórios, tanto me- vitalização da democracia política, mas não garante nor o número de cidadãos dispondo realmente de por si que a liberdade política acabe saindo vito- acesso à esfera pública. riosa. Enquanto na França os revolucionários de 1789 IV. O PODER LOCAL: ESCOLA PRIMÁRIA DA – introduzindo na Constituição de 1791 uma DEMOCRACIA descentralização radical do poder e um desloca- Trata-se no caso das instituições fundamentais mento de competências para os níveis regional e 92

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PALAVRAS-CHAVE: poder local; descentralização; Tocqueville; teoria da democracia plexificação da sociedade moderna, o poder local perde seu Too Many Rights, Too Few. Responsabilities. In : Walzer, M. (org.). Toward.
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