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Descartes - As Paixões da Alma PDF

77 Pages·2008·5.07 MB·Portuguese
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AS PAIXÕES DA ALMA PRIMEIRA PARTE DAS PAIXÕES EM GERAL E OCASIONALMENTE DE TODA A NATUREZA DO HOMEM Art. 1. O que é paixão em relação a agente e o paciente sejam amiúde um sujeito é sempre ação a qualquer muito diferentes, a ação e a paixão não outro respeito. deixam de ser sempre uma mesma coisa com dois nomes, devido aos dois Nada há em que melhor apareça sujeitos diversos aos quais podemos quão defeituosas são as ciências que relacioná-la. recebemos dos antigos do que naquilo que escreveram sobre as paixões; pois, Art. 2. Que para conhecer as paixões embora seja esta uma matéria cujo da alma cumpre distinguir entre as conhecimento foi sempre muito procu suas funções e as do corpo. rado, e ainda que não pareça ser das mais difíceis, porquanto cada qual, Depois, também considero que não sentindo-as em si próprio, não neces notamos que haja algum sujeito que sita tomar alhures qualquer observa atue mais imediatamente contra nossa ção para lhes descobrir a natureza, alma do que o corpo ao qual está todavia o que os antigos delas ensina unida, e que, por conseguinte, devemos ram é tão pouco, e na maior parte tão pensar que aquilo que nela é uma pai pouco crível, que não posso alimentar xão é comumente nele uma ação; de qualquer esperança de me aproximar modo que não existe melhor caminho da verdade, senão distanciando-me dos para chegar ao conhecimento de nos caminhos que eles trilharam. Eis por sas paixões do que examinar a dife que serei obrigado a escrever aqui do rença que há entre a alma e o corpo, a mesmo modo como se tratasse de uma fim de saber a qual dos dois se deve matéria que ninguém antes de mim atribuir cada uma das funções existen houvesse tocado; e, para começar, con tes em nós. sidero que tudo quanto se faz ou acon tece de novo é geralmente chamado pelos filósofos uma paixão em relação Art. 3. Que regra se deve seguir para ao sujeito a quem acontece, e uma esse efeito. ação com respeito àquele que faz com que aconteça1; de sorte que, embora o E nisso não se encontrará grande dificuldade, se se tomar em conta que 1 "Ora, sempre julguei que é uma e mesma coisa tudo o que sentimos existir em nós, e que é denominada ação quando a relacionamos ao que vemos existir também nos corpos termo de onde ela procede e paixão com respeito ao inteiramente inanimados, só deve ser termo no qual ela é recebida." (A Hyperaspistes, agosto de 1641.) atribuído ao nosso corpo; e, ao contra- 228 DESCARTES rio, que tudo o que existe em nós, e que sos corpos dependem da alma3, ao não concebemos de modo algum como passo que se devia pensar, ao contrá passível de pertencer a um corpo, deve rio, que a alma só se ausenta, quando ser atribuído à nossa alma2. se morre, porque esse calor cessa, por que os órgãos que servem para mover o corpo se corrompem. Art. 4. Que o calor e o movimento dos membros procedem do corpo, e os pensamentos, da alma. Art. 6. Que diferença há entre um corpo vivo e um corpo morto. Assim, por não concebermos que o corpo pense de alguma forma, temos A fim de evitarmos, portanto, esse razão de crer que toda espécie de pen erro, consideremos que a morte nunca samento em nós existente pertence à sobrevêm por culpa da alma, mas alma; e, por não duvidarmos de que somente porque alguma das principais haja corpos inanimados que podem mover-se de tantas diversas maneiras partes do corpo se corrompe; e julgue que as nossas, ou mais do que elas, e mos que o corpo de um homem vivo que possuem tanto ou mais calor (o difere do de um morto como um reló que a experiência mostra na chama, gio, ou outro autômato (isto é, outra que possui, ela só, muito mais calor e máquina que se mova por si mesma), movimento do que qualquer de nossos quando está montado e tem em si o membros), devemos crer que todo o princípio corporal dos movimentos calor e todos os movimentos em nós para os quais foi instituído, com tudo o existentes, na medida em que não que se requer para a sua ação, difere dependem do pensamento, pertencem do mesmo relógio, ou outra máquina, apenas ao corpo. quando está quebrado e o princípio de seu movimento pára de agir 4. Art. 5. Que é erro acreditar que a alma Art. 7. Breve explicação das partes do dá o movimento e o calor ao corpo. corpo e de algumas de suas funções. Por esse meio, evitaremos um erro Para tornar isso mais inteligível, considerável em que muitos caíram, de explicarei, em poucas palavras, a sorte que o reputo a principal causa forma toda de que se compõe a má- que até agora impediu que se pudessem explicar bem as paixões e as outras 3 A alma está implantada na máquina do corpo, coisas pertencentes à alma. Consiste mas não é seu princípio de formação nem conserva em ter-se imaginado, vendo-se que ção. "Trata-se simplesmente de íntima associação da alma com o todo e as partes da máquina já fei todos os corpos mortos são privados ta. . . Assim a natureza física realizaria mecanica de calor e depois de movimento, que mente uma máquina muito complicada, com dispo era a ausência da alma que fazia cessar sições tais que uma alma poderia de alguma forma calçá-la, sem que tenha tido algo com a fabricação esses movimentos e esse calor; e assim e a imbricação de suas partes." (Guéroult, II, pág. se julgou, sem razão, que o nosso calor 181.) natural e todos os movimentos de nos- 4 No caso do homem, a deterioração da máquina não conduz apenas à sua destruição, mas também à separação da alma e do corpo. A doutrina da união 2 Lembrança do princípio da distinção das subs da alma e do corpo na separação exclui, assim, radi tâncias enunciado na Meditação Sexta. calmente todo animismo ou vitalismo. AS PAIXÕES DA ALMA 229 quina de nosso corpo5. Não há quem dam de que todas as veias e artérias do já não saiba que existem em nós um corpo sejam como regatos por onde o coração, um cérebro, um estômago, sangue não pára de correr muito rapi músculos, nervos, artérias, veias e coi damente, começando seu curso na sas semelhantes; sabe-se também que cavidade direita do coração pela veia os alimentos ingeridos descem ao estô arteriosa, cujos ramos se espalham por mago e às tripas, de onde o seu suco, todo o pulmão e se juntam aos da arté correndo para o fígado e para todas as ria venosa, pelo qual ele passa do pul veias, se mistura com o sangue que mão ao lado esquerdo do coração; de elas contêm, aumentando, por esse pois segue daí para a grande artéria, meio, a sua quantidade6. Aqueles que cujos ramos, esparsos pelo resto do ouviram falar, por pouco que seja, da corpo, se unem aos ramos da veia que medicina sabem, além disso, como se levam de novo o mesmo sangue à cavi compõe o coração e como todo o san dade direita do coração, de sorte que gue das veias pode facilmente correr essas duas cavidades são como eclu da veia cava para seu lado direito, e sas, através de cada uma das quais daí passar ao pulmão pelo vaso que passa todo o sangue em cada volta que denominamos veia arteriosa, depois faz pelo corpo. Demais, sabe-se que retornar do pulmão ao lado esquerdo todos os movimentos dos membros do coração pelo vaso denominado dependem dos músculos e que estes artéria venosa7, e, enfim, passar daí músculos se opõem uns aos outros, de para a grande artéria, cujos ramos se tal modo que, quando um deles se espalham pelo corpo inteiro. E mesmo encolhe, atrai para si a parte do corpo todos os que não foram cegados intei a que está ligado, o que provoca ao ramente pela autoridade dos antigos, e mesmo tempo o alongamento do mús que quiseram abrir os olhos para exa culo que lhe é oposto; depois, se acon minar a opinião de Harvey no tocan te à circulação do sangue8, não duvi- tece numa outra vez que este último se encolha, leva o primeiro a alongar-se e puxa para si a parte a que eles estão 5 Sendo possível (arts. 3, 4, 5) e indispensável à ligados. Enfim, sabe-se que todos esses inteligência das paixões a distinção entre as funções movimentos dos músculos, assim que dependem do corpo e as funções que dependem da alma, Descartes irá agora descrever sucessiva como todos os sentidos, dependem dos mente as funções essenciais de um e de outro. Até o nervos, que são como pequenos fios ou § 17, as funções do corpo. 6 Cf. Tratado do Homem (Plêiade, págs. 808-809): como pequenos tubos que procedem, devido à fermentação que se produz no estômago, todos, do cérebro, e contêm, como ele, "as partes mais sutis" dos alimentos formam o certo ar ou vento muito sutil que cha quilo, que é levado para o fígado, onde sofre a ação mamos espíritos animais9. da hematose. "Este licor aí se sutiliza. . . adquire cor e toma a forma do sangue. . . Ora, este sangue, assim contido nas veias, só tem uma única passa gem manifesta por onde possa sair delas, a saber, a Art. 8. Qual é o princípio de todas que conduz à concavidade direita do coração." essas funções. 7 Veia arteriosa: artéria pulmonar; artéria venosa: veia pulmonar. 8 Descartes recusava atribuir a ação do coração a Mas não se sabe comumente de que uma contração muscular, mas aderia inteiramente à forma esses espíritos animais e nervos teoria circulatória de Harvey. "A opinião do Sr. Descartes sobre a circulação do sangue", relata contribuem para os movimentos e os Baillet, "granjeara-lhe grande crédito entre os dou sentidos, nem qual é o princípio corpo- tos e contribuíra maravilhosamente para restabe lecer nesta matéria a reputação de William Harvey, que se vira maltratada por diversos médicos dos 9 O Tratado do Homem dirá: "Um certo vento Países-Baixos, a maioria dos quais ignorante ou muito sutil, ou melhor, uma chama muito viva e obstinada em antigas máximas de suas faculdades." muito pura". 230 DESCARTES ral que os faz agir; eis por que, embora mente, em todas as artérias e veias, já tenha tratado algo do assunto em mediante o que leva o calor que adqui outros escritos1 °, não deixarei de dizer re no coração a todas as outras partes aqui sucintamente que, enquanto vive do corpo e lhes serve de alimento. mos, há um contínuo calor em nosso coração, que é uma espécie de fogo aí Art. 10. Como se produzem no cérebro mantido pelo sangue das veias, e que os espíritos animais. esse fogo é o princípio corporal de todos os movimentos de nossos mem Mas o que há nisso de mais notável bros1 \ é que todas as partes mais vivas e mais sutis do sangue que o calor rarefez no Art. 9. Como se faz o movimento do coração entram incessantemente em coração12. grande quantidade nas cavidades do cérebro. E a causa que as conduz para O seu primeiro efeito é dilatar o san aí, de preferência a qualquer outro gue que enche as cavidades do cora lugar, é que todo sangue saído do cora ção; e isso é causa de que esse sangue, ção pela grande artéria toma seu curso tendo necessidade de ocupar maior em linha reta para esse sítio, e que, não espaço, passe com impetuosidade da podendo entrar todo, porque o lugar cavidade direita para a veia arterial, e possui apenas passagens muito estrei da esquerda para a grande artéria; tas, só passam as suas partes mais agi depois, cessando essa dilatação, torne tadas e mais sutis, enquanto o resto se incontinenti a entrar da veia cava para espalha por todos os outros locais do a cavidade direita do coração, e da corpo. Ora, tais partes do sangue artéria venosa para a esquerda; pois há muito sutis compõem os espíritos ani pequenas peles nas entradas desses mais1 3; e não precisam, para tal efeito, quatro vasos, dispostas de tal modo receber qualquer modificação no cére que fazem com que o sangue não possa bro, exceto a de serem separadas das penetrar no coração senão pelas duas outras partes do sangue menos sutis1 4; últimas, nem sair dele exceto pelas pois o que denomino aqui espíritos não duas outras. O novo sangue que entra são mais do que corpos e não têm no coração é aí imediatamente rarefei qualquer outra propriedade, exceto a to, do mesmo modo que o precedente; de serem corpos muito pequenos e se é só nisso que consiste a pulsação ou o batimento do coração e das artérias; 13 Em Galeno (De Usu Partium), os espíritos vitais de sorte que esse batimento se reitera chegam pela carótida aos ventrículos do cérebro, tantas vezes quantas entra sangue onde são transformados em espíritos animais e novo no coração. É também só isso disponíveis para a função sensório-motora. Em Descartes, a distinção clássica entre espíritos ani que dá ao sangue o seu movimento, e o mais (elaborados no cérebro), espíritos vitais (saí faz correr, muito rápida e incessante- dos do coração) e espíritos naturais (produzidos no fígado) é abolida. "Não mais há entre essas três for mas de espíritos diferença qualitativa real, mas 1 ° Nomeadamente na quinta parte do Discurso. somente uma diferença de calibre e mobilidade 1' "Uma observação errónea lhe informa que o entre elementos mais ou menos refinados." (Mes- coração é o mais quente de todos os órgãos. Tem, nard, "Espirit de la Physiologie Cartésienne", portanto, um ponto de partida: o coração é um foco Archives de Philosophie, vol. XIII.) de calor, deve esquentar e dilatar o sangue que o ' 4 "E assim, sem outro preparo ou mudança, exce atravessa." (Osório de Almeida, "Descartes Physio- to que elas são separadas das mais grosseiras e que logiste". Eludes Cartésiennes, Hermann, 1937.) retêm ainda a extrema velocidade que o calor do 12 Cf. a quinta parte do Discurso e Gilson, Le coração lhes deu, deixam de ter a forma do sangue Role de la Pensée Médiévale dans la Formalion du e se chamam espíritos animais." (Tratado do Svstème Cartésien, cap. 2. Homem.) AS PAIXÕES DA ALMA .231 moverem muito depressa, assim como acham, a saber, quando não encon as partes da chama que sai de uma tram passagens abertas para sair, e às tocha; de sorte que não se detêm em vezes correndo para o músculo oposto. nenhum lugar e, à medida que entram Tanto mais que há pequenas aberturas alguns nas cavidades do cérebro, tam em cada um desses músculos por onde bém saem outros pelos poros existentes tais espíritos podem correr de um para na sua substância, poros que os condu 0 outro e que estão de tal modo dispos zem aos nervos e daí aos músculos, tas que — quando os espíritos vindos por meio dos quais movem o corpo em do cérebro para um deles possuem, por todas as diversas maneiras pelas quais pouco que seja, mais força do que os esse pode ser movido1 5. que vão para o outro1 6 — abrem todas as entradas por onde os espíritos Art. 11. Como se fazem os movimen do outro músculo podem passar para tos dos músculos. ele e fecham, ao mesmo tempo, todas por onde os espíritos desse podem pas Pois a única causa de todos os sar ao outro; dessa maneira, todos os movimentos dos membros é que os espíritos antes contidos nesses dois músculos se encolhem e seus opostos músculos se reúnem num deles mui se alongam, como já foi dito; e a única prontamente e assim o inflam e o enco causa que faz um músculo encolher-se lhem, enquanto o outro se alonga e se mais do que seu oposto é que recebe, distende. por pouco que seja, mais espírito do cérebro do que o outro. Não que os Art. 12. Como os objetos de fora espíritos que vêm imediatamente do atuam sobre os órgãos dos sentidos. cérebro bastem por si sós para move rem tais músculos, mas determinam os Resta ainda saber as causas que outros espíritos que já existem nesses levam os espíritos a não correrem sem dois músculos a saírem todos mui pre da mesma forma do cérebro para prontamente de um deles e a passarem os músculos e a se dirigirem às vezes ao outro; dessa maneira, aquele de mais a uns do que a outros1 7. Pois, onde saem torna-se mais longo e mais afora a ação da alma, que é verdadei lasso e aquele no qual entram, sendo ramente em nós uma dessas causas, rapidamente inflado por eles, se enco como direi mais abaixo, há ainda duas lhe e atrai o membro a ele ligado. E outras que não dependem senão do isso é fácil de conceber, desde que se corpo e que é preciso observar. A pri saiba que pouquíssimos espíritos ani meira consiste na diversidade dos mais vêm continuamente do cérebro movimentos excitados nos órgãos dos para cada músculo, mas que em cada sentidos por seu objetos, a qual já foi um há sempre grande quantidade de por mim assaz amplamente explicada outros encerrados no mesmo músculo na Dióptrica; mas, para que os que que nele se movem muito depressa, às vezes girando apenas no lugar onde se 1 6 "Os espíritos", dirá Descartes no artigo seguin te, "nem sempre correm do cérebro para os múscu los da mesma maneira." Esta diferença na força de ' 5 Cumpre imaginar o encéfalo "como uma espé lançamento comanda a regulamentação dos espíri cie de reservatório central, o ventrículo, onde vem tos já contidos nos músculos e, por esse meio, os abrir-se a tubagem dos nervos destinada a engolfar movimentos musculares. todos os espíritos disponíveis: estes filtram-se atra 1 7 Por que esta diversidade no escoamento dos vés dos poros do tecido coroidiano, que reveste espíritos? Primeira causa (arts. 11 e 12): os movi como um dossel o ventrículo". (Mesnard, art. cil.. mentos produzidos no cérebro por ocasião das pág. 207.) impressões sensíveis. 232 DESCARTES virem o presente escrito não tenham disso, é fácil conceber que os sons, os necessidade de ler outros, repetirei odores, os sabores, o calor, a dor, a aqui que há três coisas a considerar fome, a sede e, em geral, todos os obje nos nervos, a saber: a sua medula, ou tos, tanto dos nossos demais sentidos substância interior, que se estende na externos como dos nossos apetites forma de pequenos filetes a partir do internos, excitam também alguns mo cérebro, onde toma origem, até as vimentos em nossos nervos, que se extremidades dos outros membros aos transmitem por meio deles até o cére quais esses filetes estão ligados; depois bro; e além de esses diversos movimen as peles que os envolvem e que, sendo tos do cérebro fazerem com que a alma contíguas com as que envolvem o cére tenha diversos sentimentos, podem bro, compõem pequenos condutos em também fazer, sem ela1 9, que os espíri que ficam encerrados esses pequenos tos sigam mais para certos músculos filetes; depois, enfim, os espíritos ani mais que, levados por esses mesmos do que para outros, e, assim, que condutos do cérebro até os músculos, movam nossos membros, o que prova são a causa de tais filetes permane rei aqui somente através de um exem cerem aí inteiramente livres e estendi plo. Se alguém avança rapidamente a dos, de tal modo que a menor coisa mão contra os nossos olhos, como que mova a parte do corpo à qual se para nos bater, embora saibamos tra- liga a extremidade de algum deles leva tar-se de nosso amigo, que faz isso só a mover, pelo mesmo meio, a parte do por brincadeira e tomará muito cuida cérebro de onde vem, tal como ao se do para não nos causar nenhum mal, puxar uma das pontas de uma corda temos todavia muita dificuldade em move-se a outra18. impedir que se fechem; isso mostra que não é por intermédio de nossa alma Art. 13. Que esta ação dos objetos de que eles se fecham, pois é contra a fora pode conduzir diversamente os nossa vontade, a qual é, se não a única, espíritos aos músculos. ao menos a sua principal ação; assim porque a máquina de nosso corpo é de Expliquei também na Dióptrica tal modo composta que o movimento como todos os objetos da visão comu- dessa mão contra os nossos olhos exci nicam-se conosco apenas porque ta outro movimento em nosso cérebro, movem localmente, por intermédio dos corpos transparentes que existem entre 0 qual conduz aos músculos os espíri eles e nós, os pequenos filetes dos ner tos animais que fazem baixar as vos ópticos que se acham no fundo de pálpebras20. nossos olhos, e em seguida os lugares do cérebro de onde provêm esses ner Art. 14. Que a diversidade existente vos; que os movem, digo eu, de tantas entre os espíritos também pode diversi- maneiras diversas que nos fazem ver Jicar-lhes o curso. diversidades nas coisas, e que não são imediatamente os movimentos que se efetuam no olho, mas sim os que se 1 9 Há, portanto, dois circuitos possíveis: a) movi mento sensorial-sentimento da alma-ação; b) movi efetuam no cérebro, que representam mento sensorial-ação automática. O art. 16 especifi para a alma esses objetos. A exemplo cará o funcionamento desta ação automática. 20 Sobre a teoria cartesiana do reflexo, consultar o livro indispensável de Canguilhem: La Formation 18 Cf. Meditação Sexta, § 35. du Concept de Réflexe. . . AS PAIXÕES DA ALMA 233 A outra causa21 que serve para con lido mais de certas partes do que de duzir diversamente os espíritos ani outras, porque os nervos e os músculos mais aos músculos é a agitação desi que respondem a essas partes o pres gual desses espíritos e a diversidade de sionam ou agitam mais, e porque, con suas partes. Pois, quando algumas de forme a diversidade das partes de onde suas partes são mais grossas e mais vem mais, dilata-se diversamente no agitadas do que as outras, passam coração, e em seguida produz espíritos mais à frente em linha reta nas cavida dotados de qualidades diferentes. des e nos poros do cérebro, e por esse Assim, por exemplo, o que provém da meio são levadas a músculos diferentes parte inferior do fígado, onde está o fel, daqueles para onde iriam se tivessem dilata-se no coração de maneira dife menos força. rente da do sangue oriundo do baço, e este de modo diferente do do prove Art. 15. Quais são as causas de sua niente das veias dos braços ou das per diversidade. nas, e enfim este diferentemente do suco dos alimentos, quando, tendo de novo saído do estômago e dos intesti E essa desigualdade pode proceder nos, passa rapidamente pelo fígado até das diversas matérias de que se com o coração. põem, como se vê nos que beberam muito vinho cujos vapores, entrando prontamente no sangue, sobem do Art. 16. Como todos os membros coração ao cérebro, onde se convertem podem ser movidos pelos objetos dos em espíritos que, sendo mais fortes e sentidos e pelos espíritos sem a ajuda mais abundantes do que aqueles que aí da alma. se encontram comumente, são capazes de mover o corpo de muitas maneiras Enfim, é preciso notar que a má estranhas. Esta desigualdade dos espí quina de nosso corpo é de tal modo ritos pode também proceder das diver composta que todas as mudanças que sas disposições do coração, do fígado, ocorrem no movimento dos espíritos do estômago, do baço e de todas as ou podem levá-los a abrir alguns poros do tras partes que contribuem para a sua cérebro mais do que outros, e recipro produção; pois cumpre principalmente camente que, quando algum desses observar aqui certos pequenos nervos poros está pouco mais ou menos aber insertos na base do coração, que ser to que de costume pela ação dos ner vem para alargar e estreitar as entra vos que servem aos sentidos22, isso al das dessas concavidades, por meio do tera algo no movimento dos espíritos e que o sangue, dilatando-se nelas mais determina que sejam conduzidos aos ou menos fortemente, produz espíritos músculos destinados a mover o corpo diversamente dispostos. É preciso notar também que, embora o sangue 22 O Tratado do Homem descreve com maior pre que penetra no coração provenha de cisão este mecanismo. "Se o fogo A se encontra todos os outros lugares do corpo, toda perto do pé B", as partes do fogo estirarão um nervo e abrirão "no mesmo instante a entrada do poro via acontece muitas vezes ser ele impe- contra o qual este pequeno fio termina. . . Ora, estando assim aberta a entrada do poro, os espíritos animais da concavidade entram nele, e são levados 2' Segunda causa: o efeito de lançamento variável por ele, em parte aos músculos que servem para reti segundo a desigualdade dos espíritos, podendo esta rar este pé deste fogo, em parte aos que servem para desigualdade provir de causas diversas que o artigo volver os olhos e a cabeça a fim de olhá-lo, e em seguinte especificará. A terceira causa: a ação da parte aos que servem para adiantar as mãos e do alma (cf. art. 12) será analisada nos arts. 34-36. brar todo o corpo para defendê-lo." 234 DESCARTES da forma como ele é comumente movi Art. 18. Da vontade. do por ocasião de tal ação; de sorte que todos os movimentos que fazemos Nossas vontades são, novamente, de sem que para isso a nossa vontade con duas espécies; pois umas são ações da tribua (como acontece muitas vezes alma que terminam na própria alma, quando respiramos, andamos, come como quando queremos amar a Deus mos e, enfim, quando praticamos todas ou, em geral, aplicar nosso pensa mento a qualquer objeto que não é as ações que são comuns a nós e aos material; as outras são ações que ter animais) não dependem senão da con minam em nosso corpo, como quando, formação de nossos membros e do pelo simples fato de termos vontade de curso que os espíritos, excitados pelo passear, resulta que nossas pernas se calor do coração, seguem natural mexam e nós caminhemos. mente no cérebro, nos nervos e nos músculos, tal como o movimento de Art. 19. Da percepção. um relógio é produzido para exclusiva força de sua mola e pela forma de suas Nossas percepções também são de rodas. duas espécies: umas têm a alma como causa, outras o corpo2 4. As que têm a Art. 17. Quais são as funções da alma como causa são as percepções de alma. nossas vontades e de todas as imagina ções ou outros pensamentos que dela Depois de ter assim considerado dependem; pois é certo que não pode todas as funções que. pertencem so ríamos querer qualquer coisa que não mente ao corpo, é fácil reconhecer que percebêssemos pelo mesmo meio que a nada resta em nós que devemos atri queremos; e, embora com respeito à buir à nossa alma, exceto nossos nossa alma seja uma ação o querer al pensamentos, que são principalmente guma coisa, pode-se dizer que é tam de dois géneros, a saber: uns são as bém nela uma paixão o perceber que ações da alma, outros as suas paixões. ela quer; todavia, dado que essa per Aquelas que chamo suas ações são cepção e essa vontade são efetivamente todas as nossas vontades, porque senti uma mesma coisa2 6, a sua denomina mos que vêm diretamente da alma e ção faz-se sempre pelo que é mais parecem depender apenas dela; do nobre, e por isso não se costuma cha mesmo modo, ao contrário, pode-se má-la paixão, mas apenas ação. em geral chamar suas paixões toda espécie de percepções ou conheci Art. 20. Das imaginações e outros mentos existentes em nós, porque mui pensamentos que são formados pela tas vezes não é nossa alma que os faz alma. tais como são, e porque sempre os re cebe das coisas por elas representa das23 Quando nossa alma se aplica a ima- 2 4 Arts. 19-20: a) as percepções que têm a alma 23 Trata-se da primeira definição das paixões, como causa. muito geral, pois compreende todas as percepções e 2 5 "Não poderíamos querer coisa alguma sem conhecimentos, isto é, tudo o que, na alma, não tem saber que a queremos, nem sabê-lo a não ser por a alma como única origem. A partir daí, Descartes, uma ideia; mas não afirmo de modo algum que esta por distinções sucessivas, irá delimitar as paixões ideia seja diferente da própria ação." (Cartas, a no sentido estrito. Mersenne, 28 de julho de 1641.)

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