DEMOCRACIAS ESPECTRAIS Por uma Desconstrução Da Colonialidade MARCELO JOSÉ DERZI MORAES AGRADECIMENTO E DEDICATÓRIA APRESENTAÇÃO Rafael Haddock-Lobo INTRODUÇÃO 1 REPETIÇÕES ESPECTRAIS 1.1 Repetir, repetir até ficar diferente 1.2 Precisamos aprender a conviver com os fantasmas 2 ESTADO E SOBERANIA: UMA HISTÓRIA DE FANTASMAS 2.1 Soberanias espectrais 2.2 O mito da democracia ateniense 2.3 Egito: o espectro do Ocidente 2.4 Como se criam fantasmas 3 BESTAS, MÁQUINAS E DEUSES 3.1 Os devires bestiais 3.2 Máquinas de vadiar 4 A DEMOCRACIA ESPECTRAL: ENTRE HÓSPEDES E INTRUSOS 4.1 Políticas espectrais 4.2 Tempo de violência 4.3 Epistemicídio: geopolítica da violência 4.4 O racismo narcisista em Filosofia 4.5 Rastros de parasita e hospitalidade 4.6 Democracia por vir: uma possibilidade vinda do im-possível 5 RESISTÊNCIAS ESPECTRAIS: A FILOSOFIA UBUNTU 5.1 A Filosofia ubuntu 5.2 Solidariedade, Justiça e Responsabilidade: a Ética Ubuntu 5.3 Ancestralidade em diáspora: quilombos CONSIDERAÇÕES FINAIS REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AGRADECIMENTO E DEDICATÓRIA Esse livro não seria possível sem meus protetores: Oxóssi e Exu. Não seria possível sem os que passaram por mim, os que estão comigo e os que ainda estão por vir. Não é possível falar de todos aqui, mas não posso deixar de agradecer e dedicar in memoriam ao meu irmão Marcos Vinícius e à minha mãe Maria Cristina, vítimas dessa democracia espectral. Agradeço e dedico ao meu pai Mario Octavio, à minha filha Karine Couto, ao meu neto Felipe. Não posso esquecer de agradecer e dedicar aos meus amigos Adriano Negris, João Carlos, Dirce Solis, Mariane Biteti, Marinazia Cordeiro, Júlio Nogueira, Rafael Haddock-Lobo, Renato Noguera, Patricia Elaine, Luís Antonio, Gilberto Mota, Lalita Kraus, Carolina Oliveira, Fabio Borges, Elaine Oliveira e os professores e estudantes do Mario Quintana e da UERJ. APRESENTAÇÃO O ACONTECIMENTO DAS DEMOCRACIAS ESPECTRAIS Rafael Haddock-Lobo O livro que aqui se apresenta só pode ser pensado à luz da noção de acontecimento no pensamento de Jacques Derrida: é novo, na medida em que sua repetição do outro produz a diferença; é violento, pois rompe, ao mesmo tempo e num só golpe, com toda a estrutura de espera e expectativa vigente; e é generoso, já que a novidade e a violência se dão justamente a fim de que outras trilhas sejam abertas a partir das leituras acadêmicas de Jacques Derrida, tecendo o dentro e o fora da academia, os centros e as periferias, as metrópoles e as colônias, os asfaltos e as favelas. “Democracias espectrais”, em primeiro lugar, é o resultado de uma verdadeira tese em filosofia que se dedica a pensar a partir da obra do filósofo franco-argelino Jacques Derrida. Não se reduz à tese, pois, revisado e reescrito mais de um ano após sua defesa, o texto aqui apresentado é mais potente e mais conciso do que o anterior, despido dos excessos acadêmicos e focado nos aspectos mais importantes para se pensar, hoje, nossa sociedade. A tese de Marcelo Moraes, sobretudo sob essa nova roupagem, vestida ao mesmo tempo com o Mariwo de Ogum e com as roupas e as armas de Jorge, marca um novo momento na recepção da obra de Derrida em nosso país. Se eu e minha geração (Dirce Solis, Carla Rodrigues, Rachel Nigro, Ana Maria Continentino, André Borges, Alice Serra…) tínhamos a tarefa de apresentar os aspectos filosóficos da obra do pensador, ainda que sempre em relação a outros autores ou outros campos do saber (Nietzsche, Lévinas, Heidegger e a fenomenologia, mas também o feminismo, a arquitetura, o direito, a educação e a psicanálise), esse segundo momento, do qual a tese de Marcelo é atualmente a maior expressão, não precisa mais provar a filosoficidade de Derrida, podendo, para além disso, pensar em que medida a desconstrução é um pensamento fundamental para nós, hoje, em nosso país. Este livro, nesse sentido, é a tentativa de fazer ecoar para além dos corredores acadêmicos o acontecimento filosófico que o pensamento de Moraes produz, ao alinhavar os motivos tão próximos, compatíveis e de necessária união entre a desconstrução e o pensamento descolonial. Marca, aliás, o percurso de Derrida como um filósofo desde sempre crítico da colonialidade e, ao mesmo tempo, sua importância para a solidificação de tais estudos. A desconstrução da colonialidade, assim, aliança entre o pensamento da desconstrução e sua preocupação desde sempre descolonial, reverbera em cada frase deste livro, desde seu início, em que o mito grego da origem da filosofia é confrontado por espectros egípcios e iorubanos, mostrando, à luz de Derrida, como a metafísica não passa de uma produção branca e mitológica do ocidente, até seu final, quando a filosofia ubuntu e o quilombismo de Abdias e Nego Bispo parecem apontar à necessidade de a política desconstrutora atentar mais cuidadosamente às tentativas de resistência produzidas no hemisfério sul. Se, como diz Renato Noguera, a filosofia é o ursinho de pelúcia do qual o ocidente não quer de modo algum abrir mão, este livro parece ter como tarefa não o esgarçamento violento das vísceras de algodão do mimo ocidental, mas ao apontamento de, por um lado, o quanto é infantil essa atitude da filosofia europeia de rebaixar outras produções filosóficas. Por outro, ao mostrar como essa atitude infantil da filosofia é autoritária, além de pobre e monótona, Marcelo Moraes nos abre a outros tantos mimos possíveis, para além da mitologia branca, rumo a tantas cores, matizes, texturas, sons e batuques. Assim, entram em cena galinhas d’angola, serpentes, cotias, onças e jacarés, músicas, culturas e pensamentos que só podem ser conduzidas pelo ofá daquele que sabe que a filosofia começa pelas matas. Começando com um problema filosófico por excelência, o da identidade e da diferença, “Democracias espectrais” já o anuncia através das noções de espectros, o que, antecipando o tema da ancestralidade, conduz o leitor por um percurso que, seguindo o leito dos rios riscados por Oxumarê, passeia pelas noções de soberania, animalidade até alcançar propriamente a questão da democracia. Contudo, e isso é a beleza mais sensível desta obra, esse mesmo percurso nos temas da filosofia parece seguir um movimento que parte da velha Europa, cruza o Mediterrâneo, chegando ao Magrebe de Derrida. E, pegando seu filósofo pela mão, como um delicado guia ao filósofo-cego, leva-o a caminhar pelo Saara, por tempos e espaços outros, chegando à África subsaariana e apresentando-o às filosofias banto e nagô. Esse passeio, que é também o trajeto de Marcelo se fazendo filósofo, transborda para além do Atlântico e chega às nossas terras, através de um profundo flerte com as questões políticas e coloniais do Brasil e da América Latina. Temas como soberania, hospitalidade, animalidade, já entretecidos na letra de Derrida, ganham, na interpretação única de Marcelo Moraes, a face carioca da vadiagem: fazendo-se valer da tradução para o português de États voyous (os Rogue states ) para Estados vadios e, a partir do debate sobre o terror e a intolerância aos imigrantes, o livro chega à boemia e denuncia a própria constituição higienista da cidade do Rio de Janeiro. Lidos à sombra da bestialidade, vadios e vadias, malandros, prostitutas, cafetões e todo o povo das ruas representam a ameaça à ordem na medida em que seus corpos, seus gestos, sua malemolência são a recusa do capital e da instalação da ordem colonial. “O vadio não tem lugar, nem tem regras, suas regras são feitas em momentos de decisão, ele decide pelas regras (um completo estado de exceção). Sendo soberano de suas próprias decisões, o vadio se torna um delinquente, algo imoral e fora da norma. Entretanto, o vadio coloca a democracia em xeque, uma vez que se ela pretende abranger a todos, ela não pode excluir o vadio”, escreve Moraes. O livro é, por isso também, um manifesto de denúncia à política de extermínio nas favelas, nos presídios e nas aldeias indígenas, ecos do desprezo pela lógica da “vadiagem” e da política coronel-capitalista de nosso país, que toma as vestes da saúde, da limpeza, e mesmo por vezes da preocupação social – da qual a figura de Madame Satã é, por sua vadiagem afetiva, política, sexual e econômica, a vítima mais emblemática. Não obstante, é preciso sublinhar, o estilo de Marcelo, com toda essa força que provém da revolta de um aluno que lutou tanto para entrar e permanecer em uma universidade (e que luta até hoje, como professor para que mais corpos pretos, pardos e pobres nela permaneçam), é também marcado por uma cadência poética e pilíntrica que, aos tamborins e atabaques, repiques e viradas, parece sempre ecoar aquela que, talvez, seja sua grande mestra, para além e aquém de Derrida: “Assim canta Leci Brandão, esse maravilhoso vagabundo que faz da esquina seu gabinete (…) acorda para o mundo sem som de clarim ”. Por tudo isso, eu arrisco dizer que a tese que, aqui, se torna livro é, ao mesmo tempo, uma pesquisa sobre e a partir da desconstrução, mas também uma obra de filosofia política brasileira. Um gesto filosófico como este de Marcelo Moraes, em meio à crise política de nossos tempos, mas em meio também à dificuldade de se encontrar um pensamento potente, interessante a qualquer um e acessível a todos, é o que permite que a filosofia se mantenha viva e que, entre tanta repetição infértil, nos faz ver que os espectros democráticos das diferenças ainda sobrevivem, nos assombram e nos convocam a pensar e a agir. INTRODUÇÃO Este livro é o esgotamento de uma tese de doutorado, que para se tornar real foi preciso uma economia de saberes e conhecimentos, além da necessidade de dizer o que não poderia ser dito no trabalho de doutoramento. Completamente mergulhado na lógica da desconstrução e do indecidível, é em si espectral, ele é e não é a tese de doutorado defendida no ano de 2018. Este livro não é mais nem menos que uma tese, é uma escritura. Todo nosso pensamento parte da experiência da desconstrução e da desconstrução da colonialidade, agenciando algumas noções da teia filosófica do filósofo magrebino Jacques Derrida, (1930-2004). A expressão “desconstrução da colonialidade”, cunhada por Rafael Haddock-Lobo, é crucial para o movimento deste livro que tem, como princípio, a tentativa de descolonialidade. Este livro não é sobre a descolonialidade em si, mas uma tentativa de descolonização do nosso pensamento e de nossas práticas, a partir do Brasil, do sul do mundo. Assim, considerando a impossibilidade da descolonização em toda sua amplitude, acreditamos que a desconstrução da colonialidade é, nesse momento, nossa melhor resposta. A democracia é espectral, por esse motivo, a partir da lógica da repetição podemos abrir movimentos que coincidem com a proposta de uma democracia por vir. A democracia nunca foi e nunca será presente, mas possui uma estrutura de promessa que se projeta em direção a um futuro que nunca chegará. Esses movimentos seriam práticas, modos de existências, problematizações que colocariam a democracia presente em xeque, inclusive a ideia de presença, contribuindo para o seu alargamento e extensão. Não obstante, devido ao seu caráter espectral, não é possível falar de uma democracia plena, em que se pode perceber certas contradições e limitações da ideia de democracia, entre essas, o fascismo, a demagogia, a xenofobia, o racismo, as desigualdades sociais, o sexismo, a destruição do meio ambiente e todos os tipos de violências promovidas ao outro que não é o eu . Para pensar o aspecto espectral da democracia, é preciso considerar o acontecimento desconstrução de forma soberana por toda a dimensão ético- política da democracia. Em primeiro lugar, levar em conta o caráter da repetição, ou seja, que não há um momento originário, uma ideia fundadora a qual se movimenta a partir de um comando primeiro, uma arque . Em segundo lugar, reconhecer que a soberania nunca é totalizante, isto é, que algo sempre escapa, nunca se apreende algo em toda sua totalidade, dimensão ou finitude. Afirmar a impossibilidade da soberaneidade é compreender que estamos sempre abertos à chegada do novo. A partir disso, pensar as aberturas possibilitadas por uma falta de origem e de fundamento, que nos direciona a um porvir no qual a presença e a não- presença (enquanto estrutura incondicional da realidade), a disseminação da soberaneidade, a abertura a outros devires e a possibilidade de pensar a diferença a partir dela mesma rompem com o logocentrismo. Assim, no momento em que a desconstrução provoca um deslocamento da estrutura clássica hierárquica entre os saberes e os sujeitos, aproveitamos deste movimento para que o outro possa falar, escrever, dançar, guerrear e cantar. No primeiro capítulo, tratamos da noção de repetição e de espectro, e como estas duas noções se relacionam entre si e abrem toda uma possibilidade de porvir, pois, retira-se o solo consolidado e seguro das edificações filosóficas e políticas, no qual, o fundamento primeiro se torna um abismo, Ab-grund , sem fundo, permitindo que toda origem seja em si, uma repetição. Quando há repetição, há, assim, a chegada do novo. A repetição enquanto iterabilidade permite a ausência de uma arque fundadora e originária que implique em um telos finalista. Pois, a repetição em democracia não parte de uma origem, nem de um assentamento, não tendo, portanto, um fim como objetivo. A democracia se lança a um por vir que nunca será presente, nem na formação nem no fim, devido ao seu caráter espectral. A lógica espectral operante do mundo está presente em todos os espaços, textos, discursos e práticas. Esta lógica, na medida em que assombra, é a possibilidade de uma justiça pois sempre retorna, já que o recalcamento, mesmo violento, não é suficiente. O espectro, ou, os espectros, são assombrações necessárias com as quais precisamos aprender a conviver, que não sendo nem vivo nem morto, é aquele que nos retira das zonas de conforto e nos deixa em plena vigília, diante do por vir. No segundo capítulo, mostramos o quanto a repetição se deu, retornando em um espectro da soberania em política, na forma do Estado, na figura da democracia e da monarquia – como a história do Ocidente, enquanto história de um espírito, é, também, a história de espectros e fantasmas. Ao regressarmos ao Egito Antigo, percebe-se uma operação espectral que fora fundamental na edificação do Ocidente. Para além da dicotomia helenista- hebraica, ou do preconceito judaico-cristão, um espectro africano rondou essa relação, sendo conjurado a partir de um racismo epistemológico, para garantir o Egito como o outro do grego. Além disso, ver o quanto a Grécia era assombrada por fantasmas, pois o suposto berço da democracia vivia obsidiado por espectros. No terceiro capítulo, abordamos a ideia de espírito relacionada com as de Estado e soberania, e o quanto estas estão contaminadas pela presença do espectro e se repetem de forma espectral na história do Ocidente. Devido ao caráter espectral, toda essência e fundamento remetente a uma origem ou a um significado essencial se mostram desconstruídos. Em vista disso, provoca-se aberturas das mais variadas formas, dentre elas, a violência operada pelo devir-animal do homem e do Estado-colonial-policial-de-direito. No quarto capítulo, tratamos de ações políticas de caráter espectral que comprometem a democracia, e, desconstruídas, podem abri-la ao seu por vir. A presencialidade da democracia neutraliza as suas possibilidades e promove as mais violentas ações no campo da alteridade, sobretudo, no campo onde se pressupõe a maior máquina de se fazer justiça é onde se operam as grandes injustiças, a saber: o direito, compreendendo-o como uma máquina da economia da violência, que, mesmo diante de seu alcance, nacional, regional ou internacional, é a grande máquina jurídica que quer reger o mundo; juntamente com a economia, abafando o político, ou seja, neutralizando o que seria de ordem política e tomando uma soberania que rompe com a diferença e as singularidades do outro. Ademais, a filosofia operada pelo logocentrismo é racista, contribuindo para a manutenção da exclusão e do rebaixamento do negro, desde a modernidade até um plano de racismo de Estado-Colonial-Policial-de-direito necroempoderado, que se abre a um plano da ordem da geopolítica mundial e constitui uma política de morte, uma necropolítica, na qual os grupos minoritários sofrem diante do predomínio violento da identidade forjada: o homem branco europeu heterossexual. No quinto capítulo, tratamos da nova ordem mundial, o neocapitalismo, que assombrando através do discurso de globalização, contaminado pela cristianização e latinização do mundo, é o fantasma que espectra as sociedades democráticas com discursos de acolhimento e de desenvolvimento, para, no fim, controlar e manter as hierarquias. O desenvolvimento não passa de uma manutenção do poder de um grupo, de uma raça e de uma classe dominante, para manter o controle mundial nas mãos das grandes potências estatais soberanas ou das grandes empresas multinacionais, que se abrem ao livre comércio, deixando morrer, nas fronteiras marítimas e terrestres, o estrangeiro indesejável. Por fim, tratamos da filosofia ubuntu do povo bantu e sua relação de ancestralidade com o por vir da diáspora no alargamento da democracia. A filosofia ubuntu é a possibilidade de expandir a democracia para além dos seus fundamentos eurocentrados. Perceber nos modelos de quilombos uma possibilidade da desconstrução da colonialidade do modelo de Estado ocidental, é pensar uma resistência à nova ordem mundial, à manutenção do racismo, das desigualdades, do feminicídio e da destruição da natureza em curso. A filosofia ubuntu é outra forma de falar de democracia, uma vez que tem como fundamento a preservação da natureza e o respeito ao outro, como nos ensina a máxima xosa: umuntu ngumuntu ngabantu ¹ . REPETIÇÕES ESPECTRAIS Conta uma tradição oral de matriz africana que no princípio havia uma única verdade no mundo. Entre o Orun (mundo invisível, espiritual) e o Aiyê (mundo natural, material) existia um grande espelho. Tudo que estava no Orun se materializava e se mostrava no Aiyê e tudo que estava no mundo espiritual se repetia no mundo material . Conto Yoruba Un esprit efficace est sourd à ce qu’il sait . Papyrus Ramésséum II, vers 1800 avant J.-C . 1.1 Repetir, repetir até ficar diferente Começamos, mas na repetição, a partir de dois operadores da desconstrução, a saber, spectre (espectro) e répétition (repetição), que em suas estruturas, possuem uma simbiose que inicialmente não se fecha em si, mas se entrelaçam e potencializam um no outro sem partir de um momento inicial e originário, produzindo aberturas a um futuro que não é o futuro a ser presenciável. Nesse sentido, vamos pensar toda a realidade política da democracia a partir desse contexto, no qual a democracia possui em sua formação os elementos de repetição e espectro, pois a democracia sempre foi espectral e, devido à repetição, se lança a um por vir, ao seu à venir em relação ao outro, o que nos permite falar de uma democracia por vir. Na história da filosofia, procedimentos de repetição sempre ocorreram de diversas maneiras e com nomes diferentes, estando presentes em um modo espectral, sempre rondando, obsidiando a filosofia, mas sem serem tratadas ou mencionadas diretamente. Em momentos históricos em que todos achavam que faziam uma grande transformação ou uma revolução, não se davam conta de estarem reproduzindo mais do mesmo, reforçando uma nostalgia originária, um narcisismo identitário, e a manutenção do imperialismo do logos , operando segundo um fundamento familiar, uma cena de família. Estando presente desde a antiguidade, a repetição é um tema clássico presente nos mitos e na filosofia desde os gregos, em Platão (teoria das ideias) e Aristóteles (teoria da significação). Na verdade, muito antes, com os egípcios na África, ao abordarem a temporalidade (eternidade- djet; eternidade-neheh e a reminiscência. Na mitologia grega, encontramos elementos que nos explicam o funcionamento da repetição no mito de Sísifo, em que este foi condenado eternamente a empurrar uma pedra gigantesca de mármore para o alto de uma montanha e depois vê-la rolar novamente e, assim, iniciar novamente o mesmo processo, repetindo isso infinitamente. Na mitologia egípcia, a luta diária de Rá, o deus do sol, com Apep ou Apophis, uma grande serpente, entendida por vezes como o próprio Kaos , que tenta destruir toda a vida. Rá sempre consegue matar Apep, estabelecendo a ordem. Entretanto, a grande serpente acaba sempre retornando e o combate se repete infinitamente. O curioso é que essa serpente vai proporcionar a mudança, a transformação. Nesse sentido, Rá aparece como a racionalidade identitária, pois quer impor, por segurança, a ordem e estabilidade, a imobilidade fixa. Ainda na África, há um outro lado da serpente, que vem com Oxumarê da cultura africana Yoruba e Jeje, proporcionando a mudança e a transformação como algo afirmativo. Além disso, a própria estrutura do real do pensamento yorubano se constitui a partir de duas realidades que se projetam. Tanto Heródoto quanto Diógenes Laêrtios deixam claro que a teoria da reminiscência de Platão possui bases egípcias. Além disso, no Livro de Sair à Luz , traduzido por Livro dos Mortos (entre diversos outros textos egípcios), o que chamam de mundo das ideias, ou teoria das ideias, que está associado à questão da reminiscência em Platão, fazia parte da constituição da realidade egípcia, entendendo o mundo em duas partes. Essa dualidade de mundos que promove um movimento de repetição e de retorno está presente na cultura Yoruba, na conexão entre o Orun (Mundo invisível; inteligível) e o Aiyé (Mundo real; físico) promovido por Oxumarê e Exu. Esses orixás mantêm a conexão entre os dois mundos. A partir de sua dança serpenteada, Exu promove a comunicação com os duplos que se repetem nos dois mundos. Segundo Helena Theodoro, cada indivíduo na Terra é proveniente de uma entidade de origem que lhe transmite suas propriedades materiais e seu significado simbólico (…) possuem dupla existência: enquanto uma parte vive no orun – o espaço infinito do mundo sobrenatural, a outra parte está no indivíduo, em regiões particulares de seu corpo (1996, p. 73). Na modernidade europeia, toda a teoria do conhecimento sucumbe em um tipo de repetição. Seja pela maneira mesma de seus meios e métodos de investigação, ou pelos modos de apreensão e cognição acerca do objeto, tanto em racionalistas quanto em empiristas – Hume, Locke, Descartes, Kant; até a contemporaneidade, como em Husserl (epochê) e Heidegger, que apesar de suspenderem e revolucionarem a relação direta entre sujeito e objeto, ainda dependem, inclusive, de uma apreensão do fenômeno por parte de um sujeito. Ao longo da história, sempre se valorizou a presença, o puro e o original, mas a repetição sempre foi tratada por muitos filósofos de modo negativo, recebendo um valor inferior, vista como algo ruim, sendo-lhe atribuídos valores pejorativos, tais como fraco, sem valor, falso e até despotencializado, sendo entendida como cópia, falso, simulacro, outro, diferença, representação, aparência, deformação e fantasma. Essas foram sempre entendidas como a repetição do mesmo, e de forma secundária se referiam a uma identidade plena e primeira, original. Assim, repetindo, não repetia o puro nem o verdadeiro, sendo, este sim, presente, essencial e indispensável. A repetição nesse sentido, mantém a estrutura da repressão e do recalque, da exclusão e do rebaixamento, tendo no falogocentrismo seu maior representante. Rafael Haddock-Lobo explica que: Ao ser repetida, o algo que se repetiu não é mais o mesmo algo antes de ser repetido. (…) Faz desaparecer a identidade a si da origem e, com isso, toda identidade a si, toda presença a si (2008, p. 158). Assim, somos conduzidos ao não- fundamento, à não-explicação, à falta de sentido e de origem, ao abismo, como diz Dirce Solis: não há solo sustentável, fundo ou fundamento de conforto aparente, o mundo é desconfortável, instável, vivemos num abismo renitente, apenas superficialmente o mundo se mostra como celeiro de estabilidades afortunadas (2016, p. 21). A definição de história da filosofia é clássica e tradicional, procura dar conta, mas não consegue, de uma totalidade de fatos e de margens abandonadas e excluídas. Por sempre privilegiar alguns elementos centrais e superiores, cai em uma repetição do mesmo, provocando uma dupla injunção. Ao mesmo tempo que exclui, mantém sempre o mesmo, exclui porque quer se manter o mesmo e se mantém o mesmo porque não tolera o outro, daí a obsidiação espectral. A repetição sempre carrega um outro, seu estranho familiar ( unheimlich ). Desconsiderar a repetição sem essa contaminação essencial, mantém a filosofia debatendo sempre a partir da