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Delícias do crime : história social do romance policial PDF

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Coleção Capa Preta DELÍCIAS DO CRIME Volume 1 História Social do Romance Policial Dados de Catalogação na Publicação (CIP) Internacional (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) ERNEST MANDEL Mandei, Ernest, 1923- M239d Delícias do crime: história social do romance policial/Ernest Mandei; tradução de Nilton Goldmann. - São Paulo: Busca Vida, 1988. (Capa Preta; V.I) Bibliografia. Tradução Nilton Goldmann 1. Ficção policial e de mistério - História e crítica I. Título. lI. Título: História social do romance policial. III. Revisão Técnica Série. Carlos Antonio Machado 88-0318 CDD-809.30872 índices para catálogo sistemático: I. Ficção policial ede mistério: História ecrítica 809.30872 2. Ficção policial ede mistério: Perspectiva marxista: Histó- ria ecrítica 809.30872 ISBN85-7126-00I-X Copyright Ernest MandeI Título original: Delightful Murder A History of the Crime Story Preparação: Sônia Maria de Amorim Revisão: Serena Pignatari, Fernando B. Gião e Sílvio Neves Ferreira Montagem: Paulo Rogério Akio Kato Capa: Isabel Carballo Direitos adquiridos pela EDITORA BUSCA VIDA Rua dos Pinheiros, 928 05422 - São Paulo-SP Te!.: 815-2311 Em memória de Gisela (20 de junho de 1935 - 14de fevereiro de 1982), que me deu dezesseis anos de amor ecompanheirismo epara quem a espontaneidade e a generosidade em relação a todos os seres humanos ocorriam tão naturalmente quanto a respi- 1988 ração. Publicado no Brasil Sumário Prefácio/9 1. De herói a vilão/15 2. Devilão a heróil31 3. Das ruas para a sala devisitas/45 4. De volta às ruas/57 5. A ideologia do romance policial/69 6. Do crime organizado àdetecção organizada/87 7. Do crime organizado aocrimeestatal/97 OBRAS DO AUTOR PUBLICADAS 8. Produção em massa econsumo em massa/107 EM PORTUGUÊS 9. Diversificação externa/119 10. Diversificação interna/133 11. Violência: explosão eimplosão/145 Capitalismo tardio (Abril Cultural) 12. Do crime aos negócios/155 Introdução ao marxismo (Ed. Movimento) 13. Dos negócios ao crime/167 O lugar do marxismo na história (Ed. Aparte) 14. Estado, negócios ecrime/l77 A teoria leninista da organização (Ed. Aparte) 15. De uma função integrativa a uma função A formação do pensamento econômico de Karl Marx (Zahar) desintegrativa do romance policial/189 Marxismo revolucionário atual (Zahar) 16. Fechando o círculo?/203 Trotsky - um estudo da dinâmica de seu pensamento Bibliografia1213 (Zahar) Prefácio PARA INÍCIO DE CONVERSA, devo confessar que gosto de ler romances policiais. Antigamente achava que eram simplesmente diversões escapistas: enquanto os lemos não estamos pensando emoutras coisas; quando ter- minamos sua leitura não pensamos mais neles e pronto. Porém, este pequeno estudo constitui, por si só, uma pro- va de que este raciocínio é, no mínimo, impreciso. É claro que quando acabamos de ler qualquer romance policial deixamos de nos fascinar por ele, da mesma forma que eu, por exemplo, não posso deixar de ficar fascinado pelo grande sucesso do romance policial como gênero literário. Trata-se obviamente, portanto, de um fenômeno so- cial: milhões de pessoas em dezenas de países, em todos os continentes, lêem romances policiais. Inúmeros autores e um grande número de editores capitalistas setornaram mi- lionários produzindo este tipo de artigo, intuindo com pre- cisão as necessidades que ogênero satisfaz como uso-bene- fício - ou, para colocar em linguagem corrente, a exati- dão com que os editores aferiram a curva da demanda. E por quê? Qual a origem dessas necessidades? Como semo- dificaram através dos anos ecomo serelacionam com a es- trutura geral da sociedade burguesa? Estas são algumas das perguntas que tentarei responder. Meu enfoque é o método dialético clássico como foi desenvolvido por Hegel eMarx. A seguir, transcrevo a des- crição de Hegel sobre o tratamento dado a um problema semelhante: 12 13 Ao encararmos a totalidade da nossa existência, cruzam as grandes curvas da ideologia social e da evolução encontramos na nossa consciência comum a maior social como um todo? variedade de interesses e as formas de satisfazê-los. Por ter tratado a história do romance policial como Em primeiro lugar, a grande área das necessidades fí- um dado social enão literário, ignorei deliberadamente pe- sicas; os grandes mundos das profissões (edos produ- lo menos uma importante dimensão: a personalidade, ca- tos manufaturados) em seus amplos empreendimen- ráter e vida da maior parte dos autores, pois na verdade tos e inter-relações, assim como o comércio, a nave- são inúmeros. Portanto, considerar o lado oferta do ro- gação e as artes técnicas, e a classe operária (para sa- mance junto com o lado demanda tornaria a tarefa in- tisfazer essas necessidades). Além disso (encontra- transponível. Apenas em alguns casos, desviei-me dessa ro- mos), o domínio do direito edas leis,da vida familiar, ta emedetive na psicologia individual do escritor policial. da divisão dos Estados, de todo o campo abrangente Porém, existe outra razão para ignorar as personali- do país. Mais além (encontramos), anecessidade dere- dades, além das idéias dos autores. Em grande parte esse ligião, que pode ser detectada em todos os corações e gênero pertence àquela parcela da produção literária que que recebe lenitivo na vida religiosa. E, finalmente, os alemães chamam Trivialliteratur, que implica um gran- (existe) o exercício da ciência, ela própria subdividida de volume de "escrita mecânica", na qual os autores com- em inúmeros ramos interligados, isto é, a totalidade põem, decompõem e recompõem fiosdo enredo epersona- do conhecimento e da compreensão que tudo abran- gens como seestivessem numa esteira rolante. A personali- ge. dade dos autores, nesses casos, só é relevante na medida em que isso os torna capazes e propensos a escreverem de E, quando surge uma nova ciência, questiona-se tal forma. a necessidade intrínseca de tal carência em relação às Aos que consideram frívolo para um marxista perder outras áreas da vida e do mundo. À primeira vista, tempo analisando romances policiais, só me resta oferecer pois, não podemos fazer qualquer coisa a não ser re- esta desculpa final: o materialismo histórico pode - edeve gistrar a existência desta nova necessidade, nem pode- - se concentrar em todos os fenômenos sociais. Nenhum mos explicá-Ia imediatamente, pois tal explicação deles é, por natureza, menos digno de ser estudado do que acarretaria uma análise mais detalhada. os outros. A grandeza dessa teoria - ea prova da sua vali- O que a ciência (nos) pede é a compreensão so- dade - repousa precisamente na sua capacidade de poder bre a essencial relação íntima (da nova carência para explicá-los. o resto da vida) e suas mútuas necessidades (p. 137e ss., tradução do autor, inclusive aslinhas grifadas). Muito bem. Não serei eu mais do que uma vítima da ideologia burguesa sendo tragado no turbilhão, junto com milhões de outros infelizes, construindo uma elaborada ra- cionalização para um simples vício idiossincrático? A expe- riência pessoal e a negativa em me sentir culpado por me entregar a um prazer proscrito pelos fariseus (pois a revo- lução como a religião possui seus tartufos) me levaram a interrogar profundamente o mais difícil e complexo enig- ma da teoria social: como as leis da psicologia individual De herói a vilão o MODERNO ROMANCE POLICIAL deriva da li- teratura popular sobre "os bons bandidos": de Robin Hood e Til Eulenspiegel, passando por Fra Diavolo, até Rinaldo Rinaldini, de Vulpius, eDieRãuber (Os bandolei- ros) e Verbrecher aus verlorener Ehre (O criminoso da honra perdida), de Schiller. Porém, nisso houve um salto mortal dialético. O herói bandido do passado se tornou o vilão de hoje, e o representante da autoridade vilã do pas- sado, oherói dos nossos dias. A tradição das histórias dos bandidos é venerada no mundo ocidental, começando com os movimentos sociais que contestavam os regimes feudais erecebendo um pode- roso ímpeto com o início da decadência do feudalismo e o surgimento do capitalismo no séculoXVI. Em Rebeldes primitivos (1959) e Bandidos (1969), Eric Hobsbawn mostrou que os "bandidos sociais" são la- drões deuma categoria especial a quem o Estado (eas clas- ses dominantes) encara como fora-da-lei, embora perma- neçam dentro dos limites da ordem moral da comunidade camponesa. Porém, essa tradição literária é, no mínimo, ambígua. Anton Block convincentemente demonstrou que essesrebeldes eram na realidade tudo, menos beneméritos, além de serem capazes de explorar, com perversidade, os camponeses se aliando aos proprietários locais contra o poder central. Éóbvio que émais fácil para um camponês lidar com este tipo de bandido do que com nobres emerca- dores, razão pela qual os camponeses não apoiavam as au- toridades contra estes antigos rebeldes. 19 18 landeses, oriundos, eles próprios, dos pelotões navais Nathan Weinstock, por outro lado, demonstrou que ou dos empregados contratados para as colônias, se- esses bandidos não eram arautos da revolução democráti- qüestrados na Irlanda e vendidos como animais aos co-burguesa, e nem mesmo reformistas agrários. Eram, ricos mercadores ingleses nas costas do continente sim, lumpen pré-proletários empobrecidos e assaltantes recém -desco berto. nômades, cujas qualidades e defeitos eram bastante diver- Passaram a ser conhecidos como os Homens sos dos dos membros da burguesia ou dos assalariados. In- Sem Patrão ... os ingleses enviaram diversas expedi- corporavam uma rebelião populista, pequeno-burguesa, ções navais para capturá-los, mas inevitavelmente es- contra o feudalismo e o capitalismo emergente. Esta éuma sas incursões terminavam em pântanos ou matagais, das razões pelas quais a tradição dos contos e dramas sobre ao lado de caminhos forjados para eles pelos homens os rebeldes e os bandidos é tão extensa dentro da literatura de Kerrivan. mundial, não se limitando apenas à sociedade ocidental. No modo de produção da Ásia, deu margem à obra-prima do épico chinês do século XIII: Shuihu-Zhuan (Na mar- É interessante observar que Sigmund Freud demons- gem do rio)". Porém, é significativo que a Espanha, país trava grande preferência por boas histórias de bandidos e, que considerou a história dos bandidos como um gênero li- segundo Peter Brückner (Freuds Privatlektüre, Kõln, terário - o romance picaresco -, tenha sido o lugar em 1975), traçou um paralelo entre a psicanálise e o romance que a decadência do feudalismo foi mais profunda e o pro- picaresco, comparando-o com um espelho da sociedade cesso de declínio mais protelado, deixando a sociedade visto por baixo, arrastando-se pelas ruas. num impasse durante séculos. (A literatura italiana refletiu Porém, embora "o bom bandido" expressasse uma uma estagnação semelhante, embora menos pronunciada.) revolta populista e não-burguesa contra a ordem feudal, a Do outro lado do Atlântico - onde não existia uma burguesia revolucionária poderia não obstante comparti- ordem social feudal, mas onde o absolutismo inglês reina- lhar o sentimento de injustiça do bandido, diante das for- va com todas as suas arbitrariedades - a revolta populista mas extremas do governo tirânico e arbitrário. Em grande com "os bons bandidos" também surgiu na vida real: parte da Europa e da América Latina, a luta contra o espí- rito da Inquisição e contra a tortura tornou-se a quintes- Peter Kerrivan era um menino irlandês que em sência do combate liberal pelos direitos humanos. A perpé- meados do século XVIII tinha ficado impressionado tua luta do liberal italiano Alessandro Manzoni contra a com a marinha inglesa, onde fora tratado tão cruel- tortura, já no século XIX, é, com justiça, reconhecida. mente como escravo. Fugiu do navio do Novo Conti- Menos comentado éo horror da justiça semifeudal nos pri- nente e se tornou chefe de um bando de proscritos ir- mórdios do século XIX até na Alemanha Ocidental, nas margens do Baixo Reno. O decreto que se segue, por exem- I. Shi Nai'an e Luo Guanzhong, Outlaws of the marsh, Indiana plo, promulgado em 1803, emprega uma linguagem que University Press, Bloomington, Ind., 1981. Robert van Gulik (Willow prenuncia a terminologia nazista: pattern, 1965),diplomata holandês que setornou autor deromances po- liciais,criou um ficcional juiz chinês do século XVII, Jen-Dieh Dee,que alguns críticos erroneamente pensaram setratar deuma figura histórica. Considerando havermos constatado que os po- Entretanto, apesar de ojuiz serum personagem deficção, osenredos de vos ciganos acima mencionados, apesar de todos os van Gulik sãobaseados emregistros judiciários verdadeiros. Não setra- ta, portanto, aqui de "clássicos" romances policiais, uma vezque atra- esforços e precauções, ainda não foram extermina- dição que vanGulik descreve sedesenvolve emtorno daoposição dodo- dos, mas conseguiram se disseminar de um lugar para mínio arbitrário dos mandarins ou de outros opressores, mais do que outro em bandos pequenos ou grandes, além de che- comasolução dosmistérios. 20 21 garem a ponto de resistir à prisão, échegado portanu les que o desafiavam, embora romanticamente e, em últi- o momento de realizar seu total extermínio. ma análise, de maneira ineficaz. Assim que um deles for apanhado pela primeir A tradição de protesto social e rebelião expressa nas vez cometendo uma má ação ou ainda não tendo sid histórias dos bandoleiros emergiu de uma história mitifica- estigmatizado com a letra "M" nas costas, uma reir da e perdurou nos contos folclóricos, canções e formas de cidência irremediavelmente acarretará sua conduçê conhecimento oral. Porém, foi consolidada na literatura ao patíbulo. por autores da classe média, da burguesia e até da aristo- cracia: Cervantes, Fielding, LeSage, Defoe, Schiller, Um cigano estigmatizado, uma vez reconhecic Byron e Shelley. As obras destes autores foram escritas es- indubitavelmente como tal, deverá deixar o territór sencialmente para o público da classe alta - obviamente a dentro de quatorze dias (que lhe serão concedidos p ra partir), sob pena de enforcamento caso o estign única capaz de comprar livros naquela época. Ao lado dos romances desses autores, contudo, sur- tenha sido aplicado neste território ou em outra loc giu uma atividade literária de maior apelo popular: os vo- lidade. Caso o referido cigano volte a este territór lantes lidos e vendidos nos mercados, o famoso Images após ter partido, deverá então ser enforcado. d'Epinal; as grandes tiragens dos complaintes; as crônicas Estes decretos também se aplicarão às mulhen populares como o Newgate Calendar e o melodrama po- ciganas e aos jovens que atingirem a idade de 18ano. pular, que atingiu seu auge nos teatros de Paris do Boule- uma vez que se ligam imprudentemente aos acim vard du Temple. Estas crônicas diferem das histórias dos mencionados bandos, seguindo-os evivendo de assa bandoleiros, uma vez que refletem uma sociedade pré-ca- tos a mão armada e roubo. pitalista baseada na pequena produção de bens com uma De forma geral, todos os nômades, entre eles de ideologia ainda semifeudal, cujo modelo tácito é uma so- vendo-se incluir também os músicos e atores ambu ciedade cristã integrada, onde, como enfatizou Stephen lantes, assim como os mendigos semitas e todos o King, os malfeitores são proscritos que se recusam a execu- mendigos estrangeiros, deverão deixar o territórir tar um trabalho honesto numa comunidade honesta. Esses dentro de quatro semanas a partir da publicação d: bandidos, porém, podem ser redimidos se abraçarem os presente decreto. valores cristãos fundamentais e o castigo que recebem nes- tas diversas histórias representa um apelo para que a comu- Não é ilógico, portanto, que os autores burgueses li nidade se conforme com esses valores. berais ou revolucionários devessem se identificar com I Uma sociedade como esta ainda pode lidar com seus desculpar a revolta do valoroso bandido contra a lei e a ar malfeitores sem especialistas - ou pelo menos é o que dem desumanas, apoiadas por um sistema que eles próprio: acham os ideólogos. Não há necessidade de um herói poli- desejavam subverter. Esses autores não podiam, é claro cial ou de um detetive nestes enredos, apenas uma boa li- justificar os ataques à propriedade particular ou o assassi ção de caridade cristã no epílogo. No século XVIII, é cla- nato dos donos das propriedades (embora o assassinatc ro, isso já estava se tornando rapidamente anacrônico e al- dos tiranos fosse uma outra história), mas podiam muite gumas das histórias do Newgate Calendar já começavam a bem compreender que atos de desespero nasciam de ums demonstrar os primeiros desvios desses padrões. ordem social injusta e de instituições políticas irracionais. No século XIX, o Boulevard du Temple era chamado Uma vez extirpados estes problemas, a Razão regeria a so- o Boulevard du Crime. A maioria dos mais populares me- ciedade e o crime desapareceria para sempre. A munição lodramas se preocupava com o crime e não é difícil adivi- deveria ser concentrada sobre o Sistema e não sobre aque- nhar por quê. Durante dois séculos, o Estado semifeudal

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