Decisão judicial sobre excesso de horas trabalhadas de imediato americano pode se tornar jurisprudência. Recente decisão judicial na Flórida deixa armadores diante da ameaça de ações legais de marítimos que sintam que suas condições de trabalho no mar tenham contribuído para problemas de saúde, tanto nos EUA quanto em outras jurisdições, confirmaram advogados. William Skye, um antigo imediato da Maersk, foi indenizado com centenas de milhares de dólares depois de alegar ter sofrido danos no coração como resultado de ter trabalhado 16 horas por dia embarcado, o que o obrigou a aposentar-se prematuramente aos 54 anos de idade. “Este é um caso importante porque abre caminho para os membros das tripulações em situação análoga que sofrem lesões por trabalhar muitas horas e executar muitas tarefas”, disse Jason Magulies da Lipcon Margulies Alsina & Winkleman, que defendeu o Sr. Skye. “Nós não sabemos de outros casos em que Imediatos submetidos a excesso de trabalho tenham entrado com processo”. Liz Buchan, sócio e diretor da Watson Farley & Williams, especialista em direito trabalhista sediada em Londres, disse ao Lloyd’s List que ação similar pode ser impetrada no Reino Unido. “O empregador tem a obrigação de oferecer um ambiente de trabalho seguro e nele podem também haver violações das normas de tempo de trabalho. No entanto, é improvável que indenizações por danos sejam tão altas como nos julgamentos dos EUA que muitas vezes envolvem um elemento punitivo que é raro aqui”. O caso sobre incúria com o Sr. Skye foi interposto em maio nos termos do US Jones Act, que protege os direitos dos marítimos, mesmo quando embarcados em navios de bandeira estrangeira. O caso resultou em uma indenização substancial para o reclamante. Seus advogados argumentaram que ele teve menos de seis horas de sono por dia por ter cumprido dois quartos de serviço diário, seguido de 28 funções adicionais associados com seu cargo a bordo. Os advogados da Maersk afirmaram que Skye tinha poder discricionário sobre suas horas de trabalho e um antigo comandante declarou que o imediato havia falhado em não ter delegado tarefas adequadamente. A Maersk negou que seus navios estavam insuficientemente tripulados e insistiu que cumpriu integralmente as regras de carga de trabalho. 1 David Horr do escritório Horr Novack & Skipp, defendendo, sustentou que a condição do coração do Sr Skye não o impediu de trabalhar como imediato e não o obrigou a se aposentar mais cedo. Se o Sr. Skye trabalhou mais do que o tempo máximo legal, foi porque ele escolheu fazer isso. Após dois dias de deliberação o júri voltou com um veredito de indenização de $ 2.36m reduzido para $590.000 com base em 75% de negligência comparativa. O júri também concordou que a Maersk não violou as normas de tempo de trabalho. Fonte: Lloyd’s List (David Oslen) – Original em inglês – Tradução livre Comentário Situação semelhante poderia ocorrer no Brasil? Sim, poderia. Não é de hoje, quando se poderia alegar retração na oferta de oficiais, que empresas de navegação impõem a seus imediatos 16 horas de trabalho diário. Isto sem contar que o imediato pode ser acionado a qualquer hora interrompendo, não raro, seu período de sono. Em muitos navios a carga de trabalho do imediato é exagerada e certamente ao arrepio da lei. Se o imediato é submetido ao serviço de quarto, inevitavelmente, tendo em conta suas atribuições a bordo, ele vai trabalhar em torno de 16 horas diárias. De qualquer maneira, a semelhança com o Brasil seria apenas no que diz respeito à carga de trabalho e às conseqüências danosas à saúde. Quantos marítimos, atualmente aposentados, não estão sofrendo as conseqüências desse excesso sem nem desconfiar disso? Na seção de máquinas as consequências são mais danosas ainda. Causa na justiça e indenização semelhante à dos EE.UU. nem pensar. Nós não temos nenhum Jones Act, nossa justiça é extremamente lenta e nossos marítimos demasiadamente condescendentes e conformados. Brasil contrata Exército dos EUA para planejar hidrovia no São Francisco A Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf), órgão do governo federal subordinado ao Ministério da Integração, contratou o Corpo de Engenharia do Exército dos Estados Unidos (Usace) para estudar alternativas que tornem navegável o Rio São Francisco, um dos mais importantes cursos d´água do país e da América Latina. O contrato, de R$ 7,8 milhões (US$ 3,84 milhões), foi assinado em dezembro do ano passado e, em março deste ano, os primeiros engenheiros do Exército norte-americano chegaram ao Brasil com a missão de desenvolver projetos que contenham a erosão nas margens e facilitem a construção de uma hidrovia no São Francisco. Segundo o gerente de concessões e projetos especiais da Codevasf, Roberto Strazer. "O contrato tem o prazo de três anos, em que os engenheiros do Usace devem nos apresentar 12 projetos de assessoria técnica para a navegação do rio. São estudos sobre dragagem, controle de erosão e estabilização das margens, geotecnia, dentre outros", e acrescentou: "Eles possuem um conhecimento incrível em navegação que queríamos usar. São técnicos e temos muito a ganhar com a parceria. A navegação do São Francisco é extremamente precária e subutilizada, principalmente na época de estiagem" Quanto à segurança nacional, o gerente de projetos da Codevasf disse não ver riscos em trabalhar com o Exército norte-americano. "Essa preocupação foi levantada na fase inicial do contrato. Eu já o recebi fechado, no início deste ano. Não vejo riscos, pois as informações que eles estão tendo acesso no local não são nada que se possa ocultar por imagens de satélite", afirmou Roberto Strazer, enfatizando: "Há engenheiros do Exército brasileiro em um projeto de estabilização das margens de Ilha da Tapera, na Bahia, que estão em contato com os americanos também. Há interesses nacionais envolvidos, mas buscamos intercâmbio técnico." Fonte: G1/ Redação 2 Presidente da Somália protegeu lider pirata de prisão segundo relatório da ONU Uma investigação da ONU revelou que o presidente da Somália, Sheikh Sharif Sheikh Ahmed, protegeu um lider pirata da prisão, concedendo-lhe um passaporte diplomático. A ONU criticou o presidente pelo “clima de impunidade” concedido aos chefes da pirataria na Somália e no exterior. A notícia veio de um Grupo de Acompanhamento da ONU na Somália e foi divulgada pela Reuters. O relatório ao Conselho de Segurança da ONU disse que os líderes piratas estavam desfrutando de elevado nível de proteção das autoridades somalis que não demonstraram interesse em prendê-los dentro ou fora do país. O passaporte diplomático foi emitido para Mohamed Abdi Hassan Afweyne que o apresentou às autoridades na Malásia em uma viagem para lá em abril. O Sr. Afweyne teria entregue às autoridades aduaneiras da Malásia um documento do presidente dizendo que ele estava envolvido em atividades de combate à pirataria. O presidente Ahmed havia dito ao Grupo de Acompanhamento da ONU que o passaporte foi “um dos vários incentivos” para o Sr. Afweyne que visam o desmantelamento de sua rede de pirataria. O presidente Ahmed enviou uma carta datada de 12 de julho ao presidente do Conselho do Comitê de Sanções de Segurança classificando o conteudo do relatório do grupo de “unilateral”. O relatório também criticou os líderes da região semi-autônoma de Puntland, dizendo que eles não conseguiram prender conhecidos e antigos líderes piratas, mas prenderam centenas de suspeitos de pirataria sem projeção. Apenas um pirata líder baseado em Puntland, Abshir Boyah, foi preso pelas autoridades de Puntland, afirmou o relatório. Ele foi condenado a apenas cinco anos de prisão em comparação com as penas de 20 anos normalmente aplicadas a piratas novatos. Fonte: Lloyd’s List – Original em inglês – Tradução livre. Não houve ataques de piratas somalis no mês de julho Julho foi o primeiro mês em que navios não foram atacados ou capturados desde a explosão da crise da pirataria somali em 2007, confirmou o Bureau Marítimo Internacional. O último sequestro foi a apreensão de um barco de pesca em 19 de junho e o último incidente em que os piratas abriram fogo contra um navio mercante foi em 26 de junho. O mau tempo (monção de verão – junho a agosto) é visto como a causa para a interrupção dos ataques. A atividade no primeiro semestre de 2012 foi reduzida em 60% De qualquer maneira 14 navios e barcos de pesca estão em mãos dos piratas com 191 marinheiros feitos reféns. Redução de inspeções. É muito difícil, para funcionários de qualquer classe, melhorarem um procedimento. Mas isto é o que parece ter acontecido com o novo regime de inspeção iniciado pelo Memorando de Entendimento de Paris (Paris MoU) em 2011. O resultado é que mais navios – um número record, na verdade – foram inspecionados, mas com menos repetidas visitas de inspetores. Isso reduziu o número de inspeções em um quarto. O Secretário Geral do Paris MoU Richard Schiferli explica que, com os métodos anteriores das autoridades do Port State Control, foram autorizadas inspeções em 25% dos navios que escalaram em seus portos e tiveram que inspecionar navios em boas condições para chegar a esse número. O novo regime de inspeção (NIR) permite que os navios que demonstrarem melhor qualidade ganhem isenção de inspeção por até três anos, enquanto os navios com maior perfil de risco são inspecionados a cada seis meses. 3 Segundo esta abordagem, o número absoluto de detenções caiu de 790 para 688, mas as detenções expressas em percentual subiram ligeiramente de 3,28% para 3,61%. As penalidades subiram de forma mais dramática: 20 navios foram impedidos de escalar na Europa em 2011 em comparação com os sete em 2010. Com o NIR em operação há apenas 18 meses, pode ser cedo demais para chamá-lo de sucesso absoluto. Mas o esforço teve uma bem sucedida implantação. Esta deve ser uma boa notícia para os bons armadores e a um alerta para os negligentes. Fonte: Lloyd’s List – Original em inglês – Tradução livre. O furacão Flora Comte. Luiz Augusto C. Ventura – CLC [email protected] “Navegação é a ciência e a arte de conduzir, com segurança, um navio de um ponto a outro da superfície da terra”. Na verdade, a navegação está se transformando cada vez mais em sofisticada ciência dependente da eletrônica. A arte está ficando restrita ao uso adequado dessa tecnologia a cada dia renovada. Paradoxalmente a criação de novas tecnologias não descarta automaticamente os métodos antigos utilizados como uma verdadeira arte. Os atuais métodos moderníssimos de orientação não dispensam, por exemplo, o uso da velha agulha magnética nem o emprego do sextante. O radar não substituiu de todo a antiga vigilância com o binóculo. A experiência do navegador jamais poderá ser adquirida com o emprego único e exclusivo da atual parafernália eletrônica. Eu diria que conduzir um navio com segurança será sempre uma arte. Arte no emprego de novas tecnologias e arte no uso da experiência adquirida ao longo da carreira. “Os grandes navegadores devem sua reputação aos temporais e tempestades” (Epicuro). O planejamento de uma viagem de longo curso leva sempre em conta as áreas em que se vai navegar. Que trechos poderão ser passíveis de temporais, de icebergs, de cerração e, sobretudo, do terror dos navegantes, os furacões. Na época em que predominava a arte na navegação, os comandantes eram exímios conhecedores práticos dessa particularidade. O sistema de previsão de tempo ao redor do mundo era precário e a atenção tinha de ser redobrada. Complicadas combinações de pressão atmosférica e temperatura, condições de mar e até formação de nuvens no céu eram características que tinham de ser levadas em conta quando se navegava em áreas propícias ao fenômeno dos furacões. A situação foi melhorando ao longo do tempo com o aperfeiçoamento da previsão do tempo. A bordo se dependia do radiotelegrafista para recebimento dos boletins meteorológicos, as famosas “weather forecasts”. Hoje, sem radiotelegrafia a bordo, o navegante dispõe do sofisticado GMDSS – Global Maritime Distress Safety System que engloba o Navtex, sistema internacional para distribuição de alertas de navegação, previsões meteorológicas e avisos aos navegantes. É claro que a experiência não dispensa a responsabilidade e o profissionalismo, isto em qualquer época, local e situação. Esta peroração serve de introdução para a narrativa de um fato marcante no início da minha carreira. Setembro de 1963. Como segundo piloto fazia minha primeira viagem para o exterior. Era o meu segundo ano de embarque. O primeiro havia sido apenas no litoral brasileiro. O navio era um propaneiro, “Petrobras Sudoeste”, e a viagem era de cabotagem internacional (grande cabotagem). Seguíamos para carregar GLP na Venezuela em um porto do Lago de Maracaibo. Uma grande área no Atlântico Norte a oeste do meridiano 40 W, pouco acima do Equador, envolvendo as Antilhas (aí inserido o famoso triângulo das Bermudas), o Golfo do México e sul dos Estados Unidos, é considerada área de temporada de furacões que ocorrem entre junho e novembro, com máxima frequência entre agosto e outubro. A rota de navegação normalmente utilizada procedente do Brasil era uma loxodromia direto do Cabo Calcanhar até Trinidad, daí costeando o norte da Venezuela até ao porto de destino. Essa navegação deixava a área de furacões um pouco ao norte, mas não o suficiente para se passar por ela despreocupado. Mas, era o que estava acontecendo. Na minha inexperiência não fui alertado para a possibilidade de tempestades e muito menos recebi qualquer orientação para ficar atento para essa condição. Recebi o serviço de quarto de 1200x1600h do primeiro piloto Alberto Pereira de Aquino com o navio no rumo oeste, demandando o litoral norte de Trinidad. A 4 ilha de Tobago, por boreste, ainda estava à vista. A navegação era tranquila quando, por volta das 1400h, o piloto Aquino irrompe o passadiço preocupadíssimo procurando pelo comandante e o telegrafista. Com os dois presentes, explicou que havia escutado em uma emissora de rádio (broadcast station) de Tobago (a língua oficial é o inglês) que um furacão se aproximava. O locutor recomendava, narrou Aquino, que a população da ilha se precavesse prendendo qualquer coisa que pudesse ser levada por uma ventania forte e que os cocos fossem derrubados dos coqueiros para não causarem estragos. Detalhes que nos interessavam como coordenadas do centro do furacão, sua velocidade, direção, etc. não foram informadas. O comandante, que rendia as férias do titular Carlos Costa, cobra do telegrafista, com evidente atraso, o último boletim meteorológico. Ele não havia recebido. Achava que aquela região não requeria cuidados especiais com o tempo, explicou candidamente. Felizmente com uma chamada geral, (CQ) pela estação rádio, conseguiu contato com outro navio da companhia que fazia aquela rota e que nos retransmitiu a previsão do tempo e informes sobre o furacão batizado de Flora. Esse navio já estava abrigado por trás de uma ilha. Vimos então o quanto era perigosa a nossa posição. O Serviço Meteorológico de San Juan de Puerto Rico havia emitido um alerta de furacão para Trinidad Tobago e imediações como primeiro aviso sobre o Flora. O alerta enfatizava o perigo do furacão e aconselhava que fossem adotados preparativos rápidos para amenizar suas consequências. Os alertas recomendavam que pequenas embarcações permanecessem no porto e as que estivessem navegando adotassem extrema cautela. As pessoas em áreas de praia ou perto delas foram aconselhadas a evacuá- las e se abrigar em terrenos mais elevados. Enfatizava ainda que o tempo era curto, especialmente para Tobago que havia recebido a notícia do furacão com apenas duas horas de antecedência. Com as coordenadas do olho do furacão plotadas e conhecendo seu rumo e velocidade, o comandante, que não parecia nada preocupado com a situação, pressionado pela cobrança por segurança do Aquino, ordenou, meio a contra gosto, o desvio de rota para Trinidad. Felizmente estávamos passando em frente ao Golfo de Paria e lá entramos para nos abrigar só saindo quando o Flora prossegui seu rumo para noroeste. Aquino me ajudou o tempo todo. O furacão Flora foi um dos mais mortíferos já registrados no Atlântico Norte com a contabilização de mais de 7000 mortes. Ao passar por Trinidad Tobago onde matou 24 pessoas, os ventos atingiram no Caribe a velocidade de 233 km/h. Apenas no Haiti morreram 5000 pessoas. Graças à providencial escuta e pronto alerta do primeiro piloto Alberto Pereira de Aquino, escapamos de um furacão que poderia ter nos trazido graves problemas. Reencontrei o Aquino há pouco, depois de muitos anos, mas acho que ainda é tempo de lhe dizer: Muito obrigado, amigo. Sua providencial, firme e impetuosa responsabilidade nos salvou. ****** "Bom João" CFM Edson Martins Areias – OSM (Adv.) [email protected] A Frota Nacional de Petroleiros- Fronape, teve um navio de dez mil toneladas denominado “Dom João”. O bom João Moreira, meu veterano na Escola de Marinha Mercante, o tripulou no início de sua carreira de oficial de máquinas. Somos de um tempo em que a vida do mar atraía jovens aventureiros sequiosos por conhecer os portos do mundo, numa época em que viagens internacionais eram quase um luxo, somente permitidas a gente de alto poder aquisitivo. Uma característica marcante dos velhos marinheiros era a solidariedade forjada nas longas travessias, na árdua rotina de bordo e nos desafios que se lhes eram colocados pelas intempéries de alto mar e nas estadias nos portos. Não raro, a solidão e as pressões das lides marinheiras ceifaram as vidas de muitos homens sensíveis que se suicidaram, disparando contra o próprio peito ou se atirando nas águas revoltas em meio a tempestades oceânicas. Desconheço casos de suicídio por envenenamento. Dentre outros, Mário Belo, Fenelon, Anési e Armando buscaram, explicitamente, a morte no mar; outros houve que desapareceram, simplesmente desapareceram em meio a procelas nos oceanos ou mesmo na Lagoa dos Patos, mar de água doce e paixão. D´Artagnan, um gênio irreverente e marinheiro, 5 melhor sorte não teve: quando a cegueira lhe apagou a luz dos olhos, privando-o da leitura dos livros, sua maior paixão, pôs termo à própria vida, em seu apartamento da zona sul carioca. Mas estas mal traçadas linhas são para falar de alegria e de bondade. A bondade mundana, irreverente, solidária e gaiata dos que ganhavam a vida no mar. Há muitos exemplos de mercantes que livravam jovens meninas pobres das garras de meliantes cruéis, dos que bancaram estudos de gente pobre, dos que adotaram órfãos de gente humilde dos portos da costa e até dos que salvaram gente inocente das garras da polícia. Honram a História da Marinha Mercante Brasileira os bravos homens do mar que, em arriscada parceria com os estivadores e maquis franceses, libertaram passageiros a caminho das masmorras nazistas na Segunda Guerra Mundial. Merecem nossas preces aqueles tantos outros que, durante o Grande Conflito, em meio aos ataques de belonaves e aviões inimigos, guarneceram seus postos a bordo de nossos navios, defendendo tripulantes, passageiros e fazendas de bordo, com o sacrifício de suas próprias vidas, para que o Brasil não parasse ou sucumbisse ante a falta de alimentos e produtos essenciais à nação. Atenho-me, contudo, a feitos mais modestos, embora não menos grandiosos, da generosidade humana. Aloísio dos Santos, por exemplo, o irreverente Aloísio Jacaré ou Papagaio das Antilhas, que nos jovens anos se apaixonara pela Doutrina Marxista; anos depois pode ver, ao vivo e em cores, a realidade do regime que vigia na Polônia, passando a repudiá-lo de modo veemente e desabrido. Até os cinquenta anos, quando veio a se casar, Jacaré foi um celerado playboy que não tinha sequer um passarinho para dar água, segundo ele próprio afirmava, mas que jamais se omitiu nem deixou de envidar seus melhores esforços para ajudar os amigos em dificuldades. Seu amigo Pierre, referência nas lides sindicais, e por tal, na mira dos órgãos de informação e da polícia política desde o segundo Governo Vargas, era um oficial de náutica idealista, com as finanças combalidas, quiçá por sua inteira dedicação à luta de classe. Numa das costumeiras conversas de travessia, Pierre confidenciou ao Jacaré que, estando de casamento marcado, ainda não tinha onde ir morar com a futura esposa, restando-lhe muito pouco tempo para procurar um imóvel a preço compatível com sua soldada. Jacaré a tudo ouviu em silêncio; alegou um motivo para ir ao camarote e, logo após, retornou com um molhe de chaves e um papelucho em que efetuara algumas anotações; postou-se à frente do colega e, cigarro nos lábios, enquanto segurava uma xícara de café com seus dedos tortos - lembrança de uma refrega em terra- colocou as chaves sobre a mesa e lhe disse com determinação: - Major (assim Jacaré chamava seus interlocutores mais próximos), o apartamento, pronto e mobiliado já o tens. As chaves são estas e o endereço está aí. É lá que vais morar com tua mulher. Pierre tentou declinar da oferta. Frustrado em tal intento, quis que Jacaré, pelo menos, aceitasse uma oferta de pagamento de aluguel, mas Jacaré arrematou que não iria mais aparecer por lá e que Pierre fizesse a delicadeza de ir trazendo, gradativamente, as roupas que encontrasse nos armários. Aloísio Jacaré deixou claro que se sentiria ofendido se o amigo não fosse morar no apartamento que ele lhe colocava à disposição. E o fazia, dizia ele, como velho companheiro e como sincero marxista, desapegado dos valores materiais. Seguramente no mundinho dos terráqueos e, possivelmente, dos modernos marinheiros, tal desprendimento soaria inconcebível. Mas a bordo, se não era regra geral, tampouco era de todo incomum. Nem a posterior conversão de Jacaré ao capitalismo, numa noite de revolta e de porre em Gdínia, Polônia - que lhe custou a extradição - foi bastante para alterar sua generosidade em relação aos colegas. Apenas o impeliu a ficar mais beligerante (expressão que empregava amiúde) ao repelir a lenga- lenga dos socialistas e a xingar todos desafetos de canalhada comunista. Outro bom homem, o João Moreira, injustamente apelidado de Moreira Besteira, com sua figura atlética e altivo porte adquiridos no Corpo de Paraquedistas do Exército, jamais se interessou por política, entretanto, era um profissional aplicado que guardava a ética e a camaradagem que o caracterizava desde antes de ingressar na Escola. Algumas vezes deve ter sido traído por sua extrema boa fé e pela confiança nas pessoas. Ele achava, segundo suas próprias palavras, que o "que tiver de ser será". Certa vez em Bergen, Noruega, terra das mais belas mulheres do mundo, Moreira regressou para bordo acompanhado de quatro meninas, estudantes de 16 a 19 anos de idade. Não havia qualquer maldade nem configurava prática condenável a visita a navios por famílias, estudantes. Lembro-me que certa feita, em Aalesund, durante o intervalo das operações de estiva, algumas crianças vieram brincar no convés em meio à neve. Eles tentavam falar comigo e entendi que me queriam doar um cachorro enorme o que me levou a entabular uma negociação com o comandante Astrogildo para ficar com o animal. Com tudo safo, eu já pensava em comprar ração, em adquirir uma casinha de cachorro bonita quando as crianças se arrependeram e sumiram com o cão. Pois bem, voltando de Aalesund para Begen, também na Noruega e ao fio da história do Bom João Moreira... Estava ele tomando café com as meninas norueguesas, quando dois colegas bonitões adentraram o salão, se imiscuíram na conversa e... sumiram com as gurias, deixando nosso bom João Moreira sozinho; encontrei-o, pouco depois, ao subir para o café das quatro. Ao saber do ocorrido, disse-lhe que os colegas haviam agido de modo indelicado e que lhe haviam furado a chapa. João, com sua calma limitou-se a dizer: - Tudo bem, meu amigo; não adianta forçar a natureza, o que tiver de ser, será. 6 Em seguida, baixamos os dois à ECM (Estação de Controle de Máquinas ou ECR-Engine Control Room), quando os bonitões aparecem por lá com as meninas, eis que a ECR era um ponto turístico no coração do navio, com seus vistosos painéis iluminados, os inúmeros computadores, as telas coloridas e alarmes reluzentes e um odor muito agradável ao olfato. Moreira e eu estávamos em uniforme de serviço, de luvas. Apesar da insistência de um dos bonitões, uma das meninas optou por não seguir o tour pela praça de máquinas que eu inventei de empreender, para afastar da ECM três das meninas e os dois bonitões, de modo a deixar a norueguesa que simpatizara com nosso bom Moreira a sós com ele e com os painéis de controle. Ao contrário dos colegas, não me engracei para nenhuma das jovens; apenas cuidei de afastar todos da ECM e de, ao findar a apresentação, sair com o grupo por uma porta bem longe, que dava acesso ao corredor do salão dos oficiais, dando tempo ao Moreira e sua nova amiga. Cerca de uma hora depois chegou o João Moreira e sua Ingrid - assim ele chamava toda escandinava - com uma expressão feliz. Namorou-a durante toda a estadia e de maneira confidencialíssima revelou-me, dias após, que numa das vezes a tinha amado em alta tensão, trancando- se na ECM, atrás dos painéis dos geradores, ao som dos relés e bobinas, dos alarmes dos computadores e dos zumbidos dos disjuntores de doze mil volts. Mas não é deste bissexto Dom João (Don Juan) Moreira que me vem à lembrança com maior saudade, mas de outro: Moreira sempre se revelou humano com os subalternos e com as pessoas humildes que encontrava. Num inverno frio de Buenos Aires, estávamos numa praça, conversando e olhando as modas. Caía a noite quando passou uma velhinha vendendo jornais. Não sei por que cargas d´água João Moreira comprou um exemplar. A velhinha se foi, passos curtos, o sobretudo puído, afastando-se de nós. João Moreira, inclinando a cabeça e com um sorriso melancólico ditou: - Pobre mulher, quantos jornais ainda terá de vender até poder voltar para casa, sair deste frio? Bem podia ser nossa mãe no lugar desta senhora... Ato contínuo disparou atrás da velhinha e, enfiando a mão no bolso, puxou a carteira. Voltou sobraçando um volume enorme de jornais. Comprara-os todos, gastando não sei quantos pesos de seu abono de viagem, em jornais que decerto jamais iria ler, apenas para que a anciã pudesse ir para casa, livrando-se do vento frio da Costa Nera. È deste João Moreira que me recordo com fraternal ternura. Não do Dom João (Don Juan), conquistador bissexto de meninas escandinavas, mas o "Bom João", piedoso como tantos outros joões que escoltavam nosso Amado Pavilhão, a bordo de nossas unidades mercantes, à época em que singrávamos todos os mares do mundo... GLP “Petrobras Norte” – Noite trágica em Itajaí CFM Marcus Vinicius de L. Arantes – OSM (Eng.) [email protected] Lembro-me de alguns acidentes ocorridos durante a minha trajetória na Marinha Mercante. Alguns deles muito graves, com vítimas a lamentar. Na colisão do “Quererá” com o terminal de Madre de Deus eu estava lá, bem perto, no “Presidente João Goulart”, atracado um pouco adiante. Foram mais de 50 mortos. Um ano antes, sob intensa neblina no Mar do Norte, o “Lóide Guatemala” colidiu com o graneleiro belga “Mineral Seraing” e eu também estava lá. Era um dos oficiais de máquinas. Não houve vítimas, só mesmo danos materiais e um grande susto. Nesta mesma época ocorreu a explosão de uma das caldeiras do “Lóide América”, com sete vítimas fatais, dentre elas o nosso colega Ruy Ferreira Antunes. Por uma desses acasos do destino, o Ruizinho, oficial de náutica, foi vítima de uma explosão de caldeira. Entretanto, o acidente mais marcante, com contornos de tragédia, ocorreu em Itajaí na noite de 2 de fevereiro de 1965 - a explosão no propaneiro “Petrobrás Norte”. O “Petrobrás Norte” era um dos cinco navios propaneiros existentes na Fronape naquela época. Fora construído em Hamburgo, Alemanha, pelo estaleiro Ottenser Elsenwerk A.G. Teve sua construção 7 concluída em março de 1955, quando foi incorporado a frota da Reederei Willy H. Schlieker & Co. Ltd. com o nome de “Neviges”. Em 1956 foi adquirido pela Fronape e teve seu nome mudado para “Petrobrás I”. No ano seguinte foi renomeado como “Petrobrás Norte”. No dia 2 de fevereiro de 1965 o “Petrobras Norte” entrou na barra do rio Itajaí-Açu indo atracar no Terminal Marítimo da Heliogás, localizado no bairro de Cordeiros para descarregar cerca de 400 toneladas de gás liquefeito de petróleo para a Heliogás e também para a Liquigás que era abastecida pelo mesmo terminal. Por volta das 2100 horas, durante a operação de descarregamento, ocorreu o sinistro - explosões seguidas de um incêndio de grandes proporções. Segundo a versão oficial, o mangote de carga rompeu vazando o gás liquefeito no convés. Ao se dar a ignição, ocorreram explosões nos tanques do navio e o convés do “Petrobrás Norte” transformou-se em um verdadeiro inferno de chamas. Houve alguma controvérsia quanto à causa do incêndio, pois foi levantada a hipótese de ter caído no convés partes incandescentes de fogos de artifício da comemoração de Nossa Senhora dos Navegantes que estava sendo realizada naquele dia. O clarão das chamas iluminou Itajaí, que seguramente sofreu neste dia a maior de suas tragédias. A população, apavorada, pensava que toda a cidade iria ser arrasada. Diante desta hipótese muitas pessoas abandonaram as regiões Norte e Centro da cidade, procurando a estrada para Brusque ou para os municípios vizinhos de Balneário Camboriú e Vila de Camboriú. Foram horas de pânico, desespero e muita aflição. As pessoas corriam com o pavor estampado nos rostos, mulheres carregavam trouxas de roupas nas costas e os filhos nos braços. Idosos eram carregados e crianças choravam em desespero. Caminhões com suas carrocerias lotadas saiam da cidade para fugir do fogo, fugir da cidade, pois o comentário geral era que Itajaí seria riscada do mapa. O trecho abaixo da matéria publicada pelo jornal local A NAÇÃO, em 04/02/65, nos mostra a verdadeira dimensão da tragédia: “Por volta das 21 horas, não só os moradores de Cordeiros haviam abandonado os seus lares. Os habitantes da Barra do Rio São João, São Vicente, Rio Pequeno e até Vila Operária, ha mais de 5 kilometros de distância, abandonaram tudo e dirigiam-se para a Estrada de Brusque e Camboriú. Mais de 10 mil pessoas, inclusive mulheres e crianças, deixaram os seus lares numa pavorosa debandada fugindo do calor das chamas que já era sentido à grande distância.” O acidente provocou a morte de cinco tripulantes: Jonas Tenório Cavalcante (marinheiro), João de Melo (contramestre), Sebastião Wanderley Cordeiro (terceiro-maquinista), Antonio Alves de Oliveira (chefe de cozinha) e Odílio Garcia (bombeador). Este último, catarinense e morador no bairro de Cordeiros, onde se localizava o terminal, morreu como um herói. Devido à pressão, o mangote rompido chicoteava, espalhando o GLP pelo convés. Ao verificar isso, Odílio Garcia, que se encontrava no pier acompanhando as operações, subiu imediatamente para tentar segurar o mangote. Com sua roupa encharcada de GLP não conseguiu evitar a explosão que se seguiu. Mesmo com seu corpo em chamas conseguiu fechar as válvulas de descarga estancando o vazamento e logo após caiu nas águas do rio Itajaí-Açu. O valoroso bombeador veio a falecer, vitima de queimadura em 95% do seu corpo. Outros tripulantes, com ferimentos que não apresentavam risco de vida, foram internados no Hospital Marieta Konder Bornhausen: Edson Florêncio dos Santos (imediato), José Morais (marinheiro) e José Justino de Oliveira (cabo-foguista). Para o mesmo hospital foi Adolfo Manoel de Freitas, funcionário da Heliogás. Já o bombeiro da Liquigás, João da Rocha, foi internado em um hospital na cidade de Blumenau. Com avarias significativas devido ao incêndio o “Petrobrás Norte” foi considerado como perda total e vendido como sucata. Odílio Garcia recebeu uma justa homenagem dos seus conterrâneos – é nome de uma rua localizada bem próximo ao local do acidente e também empresta seu nome a um parque náutico de Itajaí – o Parque Náutico Odílio Garcia. Em novembro de 2006 o escritor catarinense Magru Floriano e o jornalista Ivan Rupp lançaram o livro "Itajaí em Chamas – A História de um Herói", narrando em detalhes toda a ocorrência. Fonte: Site Navios Mercantes Brasileiros / “Itajaí em Chamas” - Magru Floriano e Ivan Rupp – Ed Nova Letra. O CCMM ESTÁ DISPONIBILIZANDO UM E-MAIL EXCLUSIVO PARA ASSUNTOS JURÍDICOS DE INTERESSE DOS ASSOCIADOS: [email protected] 8 O balde da cinza Comte. Ernani A. M. Ribeiro – CLC [email protected] Até mais ou menos 1960, o pais não podia prescindir dos velhos navios mistos do Lloyd Brasileiro e da Cia. Costeira, pois ainda não dispunha de rodovias e ferrovias suficientes para atender a demanda de passageiros e carga para todos os pontos do Brasil. A aviação comercial dava seus primeiros passos. Assim, velhos navios, mormente os do Lloyd, continuavam trafegando ao longo da costa brasileira. A maioria já ultrapassara sua idade útil. Eram eles o “Almirante Alexandrino”, “Raul Soares”, “Campos Salles”, “Duque de Caxias” “Rodrigues Alves” e “D. Pedro II”, dentre outros poucos. Fui imediato do “Campos Salles”, do “Duque de Caxias” e do “D. Pedro II”. Tentarei transmitir um pouco da minha vivência em cada um desses três navios. Iniciemos com o “Campos Salles”. Em 1955, recebemos ordem de seguir para o porto do Rio Grande para embarcar passageiros com destino ao Rio de Janeiro, para o XXXVI Congresso Eucarístico Internacional. Vieram passageiros até da Argentina e Uruguai. Para aproveitar a viagem carregaríamos 10.000 sacos de arroz. Ao chegar ao Rio Grande, quando se completava a aguada, verificou-se que a água doce subia pelos cobros dos porões. Os pisos dos porões, ou seja, os tetos dos tanques, estavam furados por causa da ferrugem. Desistiu-se de carregar o arroz para evitar avaria. Na viagem para o Rio as caldeiras se encheram de sal. O tanque de alimentação das caldeiras tinha um furo que o comunicava com o mar. Quando a caldeira não funcionava mais, o chefe de máquinas mandava esvaziá-la para retirar o sal entre os tubos e essa água corria para um bordo e adernava o navio. Cabe aqui uma explicação: o mencionado tanque furado era o único que alimentava as caldeiras; a água doce era bombeada dos outros tanques para ele, e acabava salgada também. Cada vez que se esvaziavam essas caldeiras, mais o navio adernava. Finalmente um herói entrou no tanque e conseguiu bujonar o furo. Assim, aos trancos e barrancos, conseguimos chegar ao Rio ainda a tempo dos passageiros assistirem ao Congresso. Outro imprevisto: num desses adernamentos, o comissário me comunicou que estava entrando água no camarote de um passageiro. Quase adivinhando o que se passava, fui com o carpinteiro verificar e mandei que ele quebrasse um pedaço da antepara que dava para o costado. Não foi surpresa ver o mar através de um enorme furo. O jeito foi transferir o passageiro e tapar o furo com estopa e um caixão de cimento, providência muito usada naqueles tempos. Outro fato notável da viagem talvez nem devesse ser contado. Faço-o, arriscando-me a ser inconveniente, apenas para mostrar como eram as coisas naquele tempo. Os taifeiros tiveram um trabalho insano durante a viagem desentupindo os vasos sanitários. As passageiras teimavam em depositar ali seus absorventes íntimos usados. Simplesmente os encanamentos de esgoto do tempo em que o navio foi construído não previam a evolução da higiene íntima das senhoras... Foi a última viagem do “Campo Salles”. Vamos falar agora do ”Duque de Caxias”. Lembro-me que quando entrei nos porões para inspecioná-los fiquei horrorizado com o aspecto das cavernas. Eram pura ferrugem. Estava mais ou menos na mesma condição do navio anterior, mas uma coisa me fez pedir transferência em caráter irrevogável: meu camarote ficava no vestíbulo, por onde, do convés, encontrava-se a escadaria que levava aos camarotes dos passageiros na coberta inferior e aos salões de refeições, bar, salão de festas e camarotes especiais. Pois bem, o meu camarote ficava na antepara da praça de caldeiras, bem na altura do elevador do balde da cinza. A cada quarto os carvoeiros acionavam o guincho do elevador que fazia um tremendo barulho. Quando o balde chegava à altura do convés, eles o puxavam para colocá-lo no estrado e dali para o convés, sempre batendo violentamente (era pesado e as cinzas ainda estavam quentes), para enfim derramá-lo na dala. Eu acordava sempre que esse serviço era feito e depois demorava a pegar no sono por causa do calor que vinha da antepara da praça de caldeiras. É sabido que não havia ar condicionado; havia somente um ventilador que parecia uma motocicleta. Vamos agora ao “D. Pedro II”. Fiz apenas uma viagem, substituindo um colega que entrou de férias. Apesar de velho, era o melhor dos três. Na volta dessa viagem eu tinha que preparar a seção de convés para a vistoria em seco anual da Capitania dos Portos. Com o segundo piloto e o contramestre fui examinar as baleeiras e suas palamentas. As aduchas dos cabos das estralheiras de arriar e suspender as embarcações eram ninho de ratos. Os cabos encontravam-se todos roídos. A água doce era estocada em pequenos barris (ancoretas) e estava deteriorada; não era renovada há muito tempo. As bolachas em latas também 9 estavam podres. Ou seja, no caso de uma emergência, morreríamos todos de fome e sede. Fiquei desconfiado da estanqueidade das baleeiras e mandei o contramestre colocar os bujões e, depois de retirar a palamenta, meter uma mangueira de incêndio para enchê-las de água. Como desconfiei, parecia um chuveiro saindo água por toda parte. Fiz o que foi possível para melhorar aquela situação. Como sempre, depois de cumpridas algumas exigências, foi expedido o certificado de vistoria. Esses navios foram, em sua maioria, construídos no início do século passado. Pouco a pouco foram sendo vendidos como sucata. Espero não ter cansado os leitores, mas a intenção foi registrar o final de navios que prestaram inestimáveis serviços à nação. A frota foi renovada com os modernos cargueiros classe nações e outros, porém nunca mais navios mistos. Tivemos posteriormente quatro navios de passageiros, mas destinavam-se ao turismo. ****** A cobra do “Mataripe” OSM Evandro Felisberto Carvalho – CFM [email protected] O navio tanque “Mataripe” da Frota Nacional de Petroleiros, procedente do Terminal de Madre de Deus, Bahia, onde havia carregado gasolina e diesel, demandou a difícil Barra Norte do Rio Amazonas e, na frente de Macapá, em Santana, recebeu dois práticos para subir o majestoso rio com destino a Manaus onde os produtos seriam descarregados. O “Mataripe” era um navio da classe T-2, de 16.215 toneladas de porte bruto (Tpb), construído em 1952 no estaleiro Uddevallavavert, na Suécia. Antes de embarcar, os práticos checaram o calado e observaram que o navio se encontrava 2 pés derrabado. O competente imediato Raimundo Nonato de Souza carregava o navio com esmero, jamais chegaria a um porto de descarga com ele abicado. O comandante era o Aderico, extremamente rigoroso, “não fazia graça pra ninguém”; “embandeirou, desembarcou”, era seu lema. Alcides Rocha, vulgo “passarinho baleado”, chefe de máquinas, estava passando o serviço para seu colega Jair da Silva, o famoso Jajá da Mangueira, autor do samba enredo “Lendas do Abaeté” que deu à Mangueira o título de campeão do carnaval de 1973 no Rio de Janeiro. O inspetor José da Conceição de Carvalho, mais conhecido como “Zé Cabeça de Martelo”, embarcou com três operários em Macapá. Ele iria efetuar reparos em Manaus no MCP Gotaverken. O grande problema do “Mataripe”, no que diz respeito ao conforto da tripulação, era o sistema de ar condicionado. A ventilação era insuficiente. A grande maioria dos tripulantes já havia retirado, em seus camarotes, a grade e o filtro dos dutos, com a finalidade de aumentar a vazão de ar. Havia também outro tipo de problema no navio, mas este dizia respeito à tripulação em seu aspecto comportamental. O contramestre Valdinei, o bombeador Ribamar e o carpinteiro Nicanor frequentavam um Templo de Umbanda em Caxias que adotava em seus ritos a oferenda e sacrifício de animais. Eles receberam do Pai de Santo, líder do Templo, o encargo de trazer da Amazônia uma cobra para um trabalho que deveria ser feito. Quanto maior fosse a cobra, melhor seria. Com o navio atracado no terminal de Manaus, o imediato Nonato iniciou a descarga. Muitos tripulantes de folga baixaram terra, entre eles o carpinteiro Nicanor com a secreta missão de comprar a cobra. Enquanto a maioria visitava suas primas na boate “La Hoje”, Nicanor foi direto ao Mercado Municipal. Havia lá para vender vários tipos de animais silvestres: papagaios, araras, jacarés, tartarugas, até filhote de onça, mas, para desconsolo de Nicanor, cobra grande estava em falta. Um comerciante do ramo, no entanto, lhe deu uma esperança: talvez ele pudesse importar uma, das grandes, de Parintins. Nicanor, feliz da vida, pagou um sinal e fechou o negócio. A cobra viria de barco e, melhor ainda, seria entregue a bordo. Conforme combinado no mercado, na madrugada seguinte um barco atracou silenciosamente a contra bordo do “Mataripe”. No convés, “a pé de galo”, o bombeador Ribamar, que estava de serviço, facilmente içou para bordo uma gaiola de madeira com uma baita cobra. Rapidamente transportou essa carga preciosa e perigosa para seu próprio camarote. Ninguém presenciou nada. O “quartermaster” estava tomando um cafezinho. Descarga do navio concluída com êxito era hora de iniciar a descida do Rio Amazonas e retornar a Salvador. Os reparos do MCP haviam sido concluídos, mas Carvalho foi convencido a seguir viagem. Jair da Mangueira, novo chefe de máquinas, queria fazer testes minuciosos na travessia. Ribamar, Valdinei e Nicanor eram discretos. Só conversavam sobre a cobra na casa de bombas, longe de tudo e de todos. Três dias de descida do Amazonas e lá estava o “Mataripe” novamente, em Santana, para desembarcar os práticos. Já em demanda à barra norte o chefe aumentou o setor para o regime de viagem; com o navio em lastro ele esperava uma boa velocidade. Era um domingo pela manhã, mas o inspetor Carvalho não teve moleza. Não demorou a ser solicitado na praça de máquinas pelo chefe Jair. 10
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