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Décadas da Ásia PDF

2202 Pages·1998·12.203 MB·Portuguese
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INTRODUÇÃO Com esta edição electrónica pretendemos dar a todos os que se interessam pela grande aventura que foram os Descobrimentos Portugueses uma versão acessível das Décadas da Ásia, obra prima do historiador humanista João de Barros. O meio electrónico permite que o texto de Barros, de extensão imponente e de estrutura complexa, possa ser consultado, sem fatigante esforço muscular, de três maneiras distintas: a leitura contínua tradicional; a leitura descontínua de uma série de trechos seleccionados, à escolha do utilizador, a partir do índice geral; e finalmente a pesquisa de elementos isolados através dos comandos de procura. Para obter um maior rendimento da procura de nomes pessoais e geográficos, incorporámos um índice minucioso (compilado em grande parte por Lisa Barber), que permite distinguir os vários membros da mesma família, quer seja portuguesa quer seja oriental, e identificar os inúmeros topónimos mencionados ao longo das Décadas. Sendo os nossos fins puramente de divulgação, não pretendemos oferecer ao leitor uma edição crítica da obra de Barros, tarefa que consideramos necessária e que o nosso trabalho facilitará, mas que por ora não faz parte dos nossos propósitos. Em vez disso, a nossa edição foi concebida como meio de abordagem à edição, ainda incompleta, da Imprensa Nacional–Casa da Moeda, que até agora só chegou à terceira Década (as Décadas 1 e 2 são uma reprodução em fac-símile da edição diplomática de António Baião e Luís F. Lindley Cintra, de 1932-74; a Década 3 é uma reprodução em fac-símile da 1a edição de 1563). Com o fim de ajudar o leitor, optamos por uma versão modernizada, tendo seguido, por isso, a única edição completa deste tipo, a de Hernâni Cidade (Lisboa: Agência Geral das Colónias, 1945). Desta edição rectificámos os múltiplos erros de transcrição, apoiando-nos em concordâncias tiradas do texto electrónico. Corrigimos também muitos outros passos duvidosos, confrontando-os com as leituras da edição IN–CM ou, no caso da Década 4a, com as da primeira edição de 1615. Como se sabe, João de Barros não chegou a completar a Década 4a,, cuja primeira edição se deve ao esforço de João Baptista Lavanha, cronista-mor de Felipe III de Espanha. Lavanha reformou o texto do seu predecessor, como ele próprio nos informa, acrescentando muito material novo. Na nossa edição a parte do texto que é da autoria de Lavanha é distinguida assim: Autor_L. As notas de rodapé que se encontram ao fim dos vários capítulos da Década 4a são também da responsibilidade de Lavanha. O leitor dispõe de uma outra maneira de consulta através dos números de notas de rodapé incluídos no texto. Para ter acesso ao maior número de referências possíveis, o utilizador encontrará três sequências de paginação encaixadas no texto, em conformidade com a tábua que se segue: Década Pagina_Indice Fol_INC Pagina_ED 1 paginação da ed. foliação da 1ª ed. paginação da ed. Cidade IN-CM 2 paginação da ed. foliação da 1ª ed. paginação da ed. Cidade IN-CM 3 foliação corrigida foliação da 1ª ed paginação da ed. Cidade da 1ª ed 4 paginação da (paginação da paginação da ed. Cidade 1ª ed. 1ª ed.) Convenções do Índice 1. Fixação da forma de entradas principais. As variações da nomenclatura oriental podem por vezes causar problemas ao leitor. Escolhemos sempre, portanto, como entrada principal, a forma modernizada de um determinado nome próprio, tal como aparece no texto electrónico. Logo a seguir vêm as outras formas da mesma palavra que se encontram na edição IN-CM ou na Década 4a. Sempre que possível tentamos identificar indivíduos não-europeus, utilizando, nestes casos, a transcrição moderna apropriada à língua em questão. 2. Função dos parênteses. A matéria incluída entre parênteses rectos [ ] é da responsabilidade dos editores. Glosas ou identificações derivadas da própria obra de Barros vêm entre parênteses redondas ( ). 3. Função do ponto de interrogação (?): • se vem depois de uma tentativa de identificação, entre parênteses rectas, indica incerteza relativa ao indivíduo em questão; • se vem depois de uma referência a uma página, indica incerteza relativa à identidade da pessoa referida no texto; • se vem depois da forma alternativa de um nome próprio, indica incerteza acerca da validade desta forma. 4. Tratamento a dar à preposição de: Na edição IN-CM e na Década 4a, é frequente grafar a preposição de junto com a palavra seguinte, se esta começa com uma vogal (p.e., Darzira por de Arzira). Tentamos dividir as palavras segundo o uso moderno, mas continua a haver incertezas relativas a certos indivíduos e topónimos cuja existência é documentada unicamente na obra de Barros. *** OPHIR - Biblioteca Virtual dos Descobrimentos Portugueses Center for the Studies of the Portuguese Discoveries - Oxford & Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses. Coordenação Executiva: Anabela Mourato, Nuno Camarinhas, Rita Garnel. Coordenação do CD-ROM: Thomas Earle, Stephen Parkinson. Consultor Técnico: Rui Pereira. Equipa de Digitalização, conferência e edição: António Coelho, Joana Subtil e Vânia Calinas. Sistema implantado por Paper-bits Design: Patrícia Proença Impressão Duplicação: Duplisoft, Lda. 1998 *** Compilado para PDF - 2014 - RLJ PRIMEIRA DÉCADA LIVRO I 5 3 7 Capítulo primeiro. Como os mouros vieram tomar Espanha e, depois que Portugal foi intitulado em reino, os reis dele os lançaram além-mar, onde os foram conquistar, ali nas partes de África como nas de Ásia, e a causa do título desta escritura. Alevantado em terra de Arábia aquele grande antecristo Mafamede, quási nos anos de quinhentos noventa e três de nossa Redenção, assi lavrou a fúria de seu ferro e fogo de sua infernal seita, per meio de seus capitães e califas, que em espaço de cem anos, conquistaram em Ásia toda Arábia e parte da Síria e Pérsia, e em África todo Egipto aquém e além do Nilo. E segundo escrevem os arábios no seu Zarigh, que é um sumário dos feitos que fizeram os seus califas na conquista daquelas partes do Oriente, neste mesmo tempo, de lá se levantaram e vieram grandes exames deles povoar estas do Ponente a que eles chamam Algarb e nós corruptamente Algarve de Além-Mar. Os quais a força de armas devastando e assolando as terras, se fizeram senhores da maior parte da Mauritânia Tingitânia, em que se compreendem os reinos de Fez e Marrocos, sem até este tempo a nossa Europa sentir a perseguição desta praga. Peró vindo o tempo té o qual Deus quis dissimular os pecados de Espanha, esperando sua penitência acerca das heresias de Arrio, Elvídio e Pelágio de que ela andou mui iscada (posto que já per santos concílios nela celebrados fossem desterradas), em lugar de penitência acrescentou outros mui graves e púbricos pecados, e que mais acabaram de encher a medida de sua condenação, que a força feita à Cava, 8 filha do Conde Julião (ainda que esta foi a causa última e acidental, segundo querem alguns escritores). Com as quais cousas provocada a justiça de Deus, usou de seu divino e antigo juízo, que sempre foi castigar púbricos e gerais pecados, com púbricos e notáveis pecadores, e permitir que um herege seja açoute de outro, vingando-se per esta maneira de seus imigos per outros maiores imigos. E como naquele tempo estes arábios eram os mais notáveis que ele tinha, infestando o império romano e perseguindo sua católica 6 Igreja, primeiro que per eles castigasse Espanha os quis castigar na sua heresia, acendendo antre eles um fogo de compitência, sobre quem se assentaria na cadeira do pontificado de sua abominação com este título de califa, que naquele tempo era a maior dinidade da sua seita. E depois de Arábia, Síria e parte da Pérsia arderem com guerras de confusão a quem prevaleceria neste estado, em que morreu grande número deles, tendo cada parentela enlegido califa antre si, vieram alguns naquela parte interior de Arábia onde está situada a cidade Cufá per concórdia de sua cisma babilónica, enleger por califa a um arábio chamado Safá dizendo que a ele pertencia aquele ponteficado por ser o mais chegado parente de Mafamede, ca ele vinha per linha direita de Abás, seu tio, à linhagem do qual Abás eles chamam Abázcion. E porque, quando o alevantaram por seu califa, foi com lhe darem juramento que havia de ir destruir o califa que então residia na cidade Damasco, que era da linhagem a que eles chamam Maraunion, em a qual havia muitos anos que andava o califado per modo de tirania mais que per eleição, e por isso era esta geração mui avorrecida antre 3v a maior parte dos arábios, ordenou logo este novo califa um seu parente per nome Abedalá ben Alé, que com grande número de gente de cavalo fosse sobre o califa de Damasco. O qual Abedalá, sendo com este exército junto do rio Eufrates, topou o mesmo califa que ia buscar, que vinha de dar υa batalha a outro Califa novamente alevantado nas partes da Mesopotâmia; e rompendo ambos seus exércitos, houve antre eles υa mui crua batalha, em que o LIVRO I Califa de Damasco foi vencido. E temendo ele a fúria deste seu imigo Abedalá, quis-se recolher na cidade Damasco, de que tantos tempos fora senhor, mas os moradores dela 9 lhe fecharam as portas sem o quererem receber; com que lhe conveo fugir pera a cidade do Cairo, onde achou pior gasalhado, dizendo todolos cidadãos que Deus os tinha livrado de um tam mau homem como ele sempre fora. Vendo-se ele em todalas partes tam mal recebido, já desemparado dos seus, como homem desesperado do adjutório deles, quis-se passar aos gregos; e indo com um escravo seu, foi ter a υa ilha onde, sendo conhecido, o mataram, no qual acabaram todolos califas de Damasco. Abedalá, seu imigo, tanto que o venceu e soube quam mal recebido era dos próprios seus, sem o querer mais perseguir, foi-se dereitamente a Damasco; e, tomada posse da cidade, a primeira cousa que fez foi mandar desenterrar o Califa Yázit, que era dos primeiros que ali foram daquela linhagem Maraunion, havendo já muitos anos que era falecido, os ossos do qual com um auto púbrico mandou queimar. Porque sendo Hocém neto de Mafamede, seu legislador, filho de sua filha Aira e de Ali, seu sobrinho, dereitamente enlegido por califa como fora seu pai, Yázit, não somente 7 lhe não quisera obedecer, mas ainda teve modo como Hocém fosse morto, tudo por ele, Yázit, se levantar com o califado, o qual pessuiu tiranicamente, e assi todolos de sua linhagem, per muitos tempos. E não contente este Abedalá com tomar tal vingança deste Yázit, geralmente a toda sua parentela mandava matar com mil géneros de tormentos e lançar seus corpos no campo às feras e aves dele, dizendo serem todos escomungados e dinos de não ter sepultura, pois eram do sangue daquele péssimo homem que mandou derramar o do justo Hocém, ungido naquela dinidade de califa per o testamento de seu avô Mafamede. Da fúria e fogo das quais cruezas que este Abedalá fazia, saltou υa faísca que veo abrasar toda Espanha, e o caso procedeu per esta maneira: Antre alguns desta linhagem Maraunion que este capitão Abedalá perseguia, havia um homem poderoso, chamado Abedirramon, filho de Mauhiá e neto de Hóron, e bisneto de Abbedelmalec, o qual avô e bisavô em tempo passado foram também califas daquela cidade Damasco. E vendo ele a perseguição de sua linhagem e as cruezas que Abedalá nela fazia, temendo receber outros tais em sua pessoa, recolheu pera si os mais parentes que pôde, com outra gente solta, cuja vida era andar em guerras e roubos, e feito um grande exército de gente por autorizar sua pessoa, meio fugindo, veo ter a estas partes do Ponente. Onde, assi por ser da linhagem dos califas de Damasco, como por ser homem valeroso e cavaleiro de sua pessoa, foi mui bem recebido, e concorreu a ele tanta gente 10 arábia, da que já cá andava nestas partes dos Algarves de Além-mar, que, vendo-se tam poderoso em gente e opinião de seita, tomou ousadia a se intitular com novo nome, chamando-se príncipe dos crentes, nesta palavra arábia Miralmuminim, a que nós corruptamente chamamos Miramulim, e isto quási em opróbrio e reprovação dos califas da linhagem de Abás, que novamente foram levantados na Arábia, por cuja causa ele se desterrou daquelas partes de Damasco. E não se contentando ainda com este novo e soberbo nome, fundou a cidade Marrocos pera cadeira de seu estado e motrópoli daquela região (posto que algυas crónicas dos arábicos querem que a edificou Josep, filho de Jesfim, e outros que outro príncipe, como veremos em a nossa Geografia. A causa da fundação da qual cidade, dizem alguns deles que não foi tanto por glória que este Abedirramon teve da memória do seu nome, quanto em reprovação doutra que ouviu dizer que fundava o Califa Bujafar, irmão e sucessor do Califa Safá, que foi causa de se ele vir a estas partes. A qual cidade que este Bujafar fundou também era pera cadeira onde havia sempre de LIVRO I residir o seu ponteficado de califa, e é aquela a que ora os mouros chamam Bagodad, situada na província de Babilónia, nas 4 correntes do rio Eufrates. E segundo escrevem os párseos e arábios 8 no seu Zarigh, que alegamos, o qual temos em nosso poder em língua pársea, foi esta cidade Bagodad, fundada per conselho de um astrólogo gentio per nome Nobach, e tem por acendente o signo Sagitário, e acabou-se em quatro anos, e custou dezoito contos de ouro, da qual em a nossa Geografia faremos maior relação. Pois estando este novo Miralmuminim com potência em estado e número de gente, feito outro Nabucdenosor, pera castigo do povo de Espanha, totalmente seu filho Ulide que o sucedeu em nome e poder se fez senhor dela, per Muça e per outros seus capitães, em tempo del-Rei Dom Rodrigo, o derradeiro dos godos. Mas aprouve à divina misericórdia que este açoute de sua justiça tornasse logo atrás daquele ímpeto de vitórias, que per espaço de trinta meses teve, dando ânimo e favor àquele bem-aventurado príncipe Dom Pelaio, com que logo começou ganhar as terras que já estavam súbditas ao ferro e cruezas destes alarves. E procedendo estas vitórias em recobrar 11 Espanha per discurso de trezentos quorenta e tantos anos, vieram ter a el-Rei Dom Afonso, o sexto deste nome, de alcunha o Bravo, que tomou Toledo aos mouros. O qual, querendo satisfazer aos serviços e ajudas que lhe o Conde Dom Hanrique nesta guerra dos mouros tinha feito e dado, não achou cousa mais dina de sua pessoa, nem de maior galardão, que aceitá-lo por filho, dando-lhe por mulher a sua filha Dona Tareija e, em dote, todalas terras que naquele tempo eram tomadas aos mouros nesta parte da Lusitânia que ora é reino de Portugal, com todalas mais que ele podesse conquistar deles, em que entravam algυas de Andaluzia, porque em todas estas ele e seu filho el-Rei Dom Afonso Hanriques verteram seu sangue por as ganhar das mãos e poder dos mouros (como se verá em a outra parte da nossa escritura, chamada Europa). O qual dote e herança parece que foi dado com tal bênção per este católico rei Dom Afonso, que todolos seus descendentes que a herdassem, sempre tevessem contínua guerra com esta pérfida gente dos arábios. Porque, começando deste tempo té o presente, que é discurso de quatro-centos e tantos anos de idade deste reino de Portugal, depois que apartado da Coroa de Espanha teve este nome, assi permaneceu em continua guerra destes infiéis, que com verdade se pode dizer por ele, ter vestido mais armas que pelotes. Donde podemos afirmar que esta casa da Coroa de Portugal está fundada sobre sangue de mártires, e que mártires a dilatam e estendem por todo o Universo, se este nome podem merecer aqueles que, militando pola fé, oferecem suas vidas a Deus em sacrefício, e dotam suas fazendas a sumptuosos templos que fundaram; como vemos que fez el-Rei Dom Afonso Hanriques, primeiro fundador desta Casa Real, e o Conde Dom Hanrique, seu padre, e toda a nobreza e fidalguia que os seguia nesta confissão e defensão da fé, da qual verdade são testemunho mui dotados e 9 magníficos templos deste reino. E passados os primeiros anos da infância dele, que foi todo o tempo que esteve no berço em que nasceu, limitado na costa do Mar Oceano (porque o mais do sertão da terra, ficou na Coroa de Castela e a ele lhe não coube mais em sorte nesta nossa Europa), todo o trabalho daqueles príncipes que então o governavam, foi alimpar a casa desta infiel gente dos arábios que lha tinham ocupada do tempo da perdição de Espanha, té totalmente, a poder de ferro, os lançarem além-mar, com que se intitularam reis de Portugal e do Algarve. E assi estava limpa deles no tempo del-Rei Dom João o primeiro, que desejando ele derramar seu sangue na guerra dos infiéis, por haver a 12 LIVRO I bênção de seus avós, esteve determinado de fazer guerra aos mouros do reino de Grada e por alguns inconvenientes de Castela, e assi por maior glória sua, passou além-mar em as partes de África, onde tomou aquela Metrópoli Ceita, cidade tam cruel competidora de Espanha, como Cartago foi de Itália. Da qual cidade se logo intitulou por senhor, como quem tomava posse daquela parte de África e deixava porta aberta a seus filhos e netos pera irem mais avante. O que eles mui bem compriram, porque não somente tomaram cidades, vilas e lugares, nos principais portos e forças dos reinos de Fez e Marrocos, restituindo à Igreja Romana a jurdição que naquelas partes tinha perdida depois da perdição de Espanha, como obedientes filhos e primeiros capitães pola fé nestas partes de África, mas ainda foram despregar aquela divina e real bandeira da milícia 4v de Cristo (que eles fundaram pera esta guerra dos infiéis) nas partes orientais da Ásia, em meio das infernais mesquitas da Arábia e Pérsia, e de todolos pagodes da gentilidade da Índia de aquém e de além do Gange, parte onde (segundo escritores gregos e latinos) excepto a ilustre Semirames, Baco e o grande Alexandre, ninguém ousou cometer. Com as quais vitórias que os reis deste reino houveram nestas três partes da terra - Europa, África e Ásia - ganhando reinos e estados, acrescentaram sua Coroa com novos e ilustres títulos que lhe deram com mais justiça do que alguns príncipes desta nossa Europa tem nos estados de que se intitulam, dos quais está em posse esta bárbara gente de mouros, sem os poderem vindicar per lei de armas. E os reis deste reino, sendo senhores do reino de Ormuz, cujo estado tem boa parte e a milhor da terra marítima da Arábia e da Pérsia, e senhores do reino de Cambaia com lhe ter tomado o marítimo dele, e senhores do reino de Goa, com as terras e ilhas a ela adjacentes, e senhores da riquíssima Malaca, situada na Áurea Quersoneso, tam celebrada dos geógrafos, e senhores das ilhas orientais de Maluco, Banda, etc., somente se intitulam por Reis de Portugal e dos Algarves, de Aquém e de Além-mar, senhores de Guiné e da conquista, 10 navegação e comércio da Etiópia, Arábia, Pérsia e Índia, como se estoutros reinos e senhorios nomeados não se governassem per suas leis e ordenaç“es e lhe não pagassem tributos e rendas, e eles lhe não tivessem o pescoço debaixo do escabelo de seus péis. 13 Mas como de cada υa destas partes em seu lugar mais copiosamente fazemos relação, ao presente (leixadas elas), pera se milhor entender o fundamento desta nossa Ásia, convém que saibamos como no título da real Coroa destes reinos, se compreendem três cousas distintas υa da outra, posto que antre si sejam tam correlativas, que υa não pode ser sem adjutório da outra, comunicando-se pera sua conservação: A primeira é conquista, a qual trata de milícia; a segunda navegação, a que responde a geografia, e a terceira comércio, que convém à mercadaria. Das quais partes querendo nós escrever sucessivamente como elas se foram adquerindo e ajuntando à Coroa deste reino, em lugar e tempo, por não confundir os méritos de cada υa das matérias, com adjutório divino que pera isso imploramos, per este modo trataremos delas. Quanto à parte da conquista, que é própria da milícia, esta, porque foi em todalas partes da terra, fazemos dela quatro partes de escritura (posto que em seis em a nossa Geografia dividamos todo o Universo): A primeira parte desta milícia chamamos Europa, começando do tempo que os romanos conquistaram Espanha, na qual guerra os portugueses per feitos ilustres teveram grã nome acerca deles, e del-Rei Dom Afonso Hanriques e seus sucessores. ‘ segunda parte chamamos África, cujo princípio é a tomada de Ceita. A terceira, que é esta que temos antre as mãos, o seu nome é Ásia, por tratar do descobrimento e conquista das terras e mares do Oriente, começando do tempo do Infante Dom Hanrique, que foi o primeiro inventor desta milícia austral e oriental. E a quarta (porque assi chamamos em a nossa Geografia à terra do Brasil) haverá nome Santa Cruz, nome próprio posto per Pedro Álvares Cabral, quando o ano de mil e quinhentos, indo pera a Índia, a descobriu, e aqui terá seu princípio. E de todas estas quatro partes da milícia, esta Oriental fenece ao presente no ano de mil e quinhentos e trinta e nove, onde acabamos de cerrar o número de quorenta LIVRO I livros, que compoem quatro Décadas, que quisemos tirar a luz, por mostra do nosso trabalho, té que venha outro curso de anos, que seguirá a estes na mesma ordem de Décadas, dando-nos Deus vida e lugar pera o poder fazer. Quanto ao título da navegação, a este respodemos com υa universal Geografia de todo o descoberto, assi em graduação de távoas como de comentário sobre elas, aplicando o moderno ao antigo, a qual não sofre compostura em linguagem, e por isso irá em latim. A parte do comércio, porque ele geralmente andava per 11 todalas gentes sem lei nem regras de prudência, somente se governava e regia pelo ímpeto da cobiça que cada um tinha, nós o reduzimos e posemos em arte com regras universais e particulares, como tem todalas ciências e artes activas pera boa polícia. Onde particularmente se verão todalas cousas de que os homens tem uso, ora sejam naturais, ora arteficiais, 5 com a natureza e calidade de cada υa delas (segundo o que podemos alcançar), com as mais partes de pesos, medidas, etc., que a esta matéria convém. E Deus é testemunha que em cada υa destas três partes, Conquista, 14 Navegação e Comércio, fizemos a diligência possível a nós e mais do que a ocupação do ofício e profissão de vida nos tem dado lugar. E quando em algυa delas desfalecermos na diligência e eloquência que convinha à verdade e majestade da mesma cousa, esse Deus onde estão todalas verdades, ordene que venha alguém menos ocupado e mais douto do que eu sou, pera que emende meus defeitos, os quais bem se podem recompensar com o zelo e amor que tenho à Pátria, por tirar a infâmia dalgυas fábulas e ignorâncias que andam na boca do vulgo, e per papéis escritos dinos de seus autores. Leixados meus defeitos, e assi esta geral preparação de toda a obra quási em modo de argumento e divisão dela, venhamos às causas que o Infante Dom Hanrique teve pera tomar tam ilustre impresa, como foi o descobrimento e conquista que deu fundamento a esta nossa Ásia, dos feitos que os portugueses fizeram no descobrimento e conquista das terras e mares do Oriente, como o diz o título desta nossa escritura. LIVRO I 11 5 14 Capítulo II. Das causas que o Infante Dom Hanrique teve pera descobrir a costa ocidental da terra de África, e como João Gonçalves e Tristão Vaz descobriram a ilha do Porto Santo, por razão de um temporal que os ali levou. Depois que el-Rei Dom João, de gloriosa memória, o primeiro deste nome em Portugal, per força de armas tomou a cidade Ceita aos mouros, na passagem que fez em África, ficou o Infante Dom Hanrique, seu filho, terceiro génito, muito mais desejoso de fazer guerra aos infiéis. Porque se acrescentou à natural inclinação, que sempre teve, de exercitar este ofício de milícia por exalçamento da fé católica, não somente a gloriosa vitória que seu padre com tanto louvor de Deus e glória da Coroa deste reino alcançou na tomada desta cidade Ceita, de que ele, Infante, foi parte mui principal (segundo escrevemos em a outra nossa parte intitulada África, de que neste precedente capítulo fizemos menção), mas ainda foi acerca dele outra causa muito mais eficaz, que era a obrigação do cargo e administração 12 que tinha de governador da Ordem da Cavalaria de Nosso Senhor Iesu Cristo, que el-Rei Dom Dinis, seu tresavô, pera esta guerra dos infiéis ordenou e novamente constituiu. E se ante da tomada de Ceita, não pôs em obra este seu natural desejo foi porque já em seu tempo neste reino não havia mouros que conquistar, porque os reis seus avós (segundo dissemos) a poder de ferro os tinham lançado além-mar em as partes de África. E pera os ele lá ir buscar a comprir 15 o que lhe ficara por avoengo, e convinha per ofício, era necessário passar tam poderosamente como fez seu padre, na tomada de Ceita, pera que lhe conveo poer grande parte de seu estado, e ainda com tanto segredo, indústria e cautelas como nisso teve. Quanto mais que a mesma passagem que seu padre per muito tempo trazia guardada no peito, lhe foi maior empedimento, ca nunca quis que os mouros fossem encetados com entradas e saltos que os espertassem, e ele perdesse υa tam grande imprensa, como foi o cometimento e tomada daquela cidade Ceita. E posto que, com a posse dela, parecia este negócio de conquistar os mouros muito leve, por a entrada e porta que per aqui estava aberta, o Infante Dom Hanrique pera seu propósito achava tudo ao contrairo. Porque, vendo ele como os mouros do reino de Fez e Marrocos 5v ficavam per conquista metidos na Coroa destes reinos, por o novo título que seu pai tomou de senhor de Ceita, e que per esta posse real a impresa daquela guerra era própria dos reis deste reino, e ele não podia entrevir nisso como conquistador mas como capitão enviado, em o processo da qual guerra ele havia de seguir a vontade del-Rei e a desposição do reino e não a sua, assentou em mudar esta conquista pera outras partes mais remotas de Espanha, do que eram os reinos de Fez e Marrocos, com que a despesa deste caso fosse própria dele e não taxada per outrem, e os méritos de seu trabalho ficassem metidos na Ordem da Cavalaria de Cristo, que ele governava, de cujo tesouro podia despender, e também porque acerca dos homens lhe ficasse nome de primeiro conquistador e descobridor da gente idólatra, impresa que té o seu tempo nenhum príncipe tentou. Com o qual fundamento, pera que este seu propósito houvesse efeito, era mui deligente e curioso na inquisição das terras e seus moradores e de todalas cousas que pertenciam à geografia, dando-se muito a ela. Donde assi na tomada de Ceita, como as outras vezes que lá passou, sempre inqueria dos mouros as cousas de dentro do sertão da terra, principalmente das partes remotas aos reinos de Fez e Marrocos. A qual deligência lhe respondeu com o prémio que ele desejava, porque veo saber per eles, não somente das terras dos Algarves que são vezinhos aos desertos de África, a que eles chamam Sahará, mas ainda das que habitam os povos azenegues, que confinam com os negros de Jalof, onde se começa a região 13

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