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De Mao a Xi: o Ressurgimento da China PDF

357 Pages·4.061 MB·Portuguese
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Preview De Mao a Xi: o Ressurgimento da China

– © 2020, Vasco Rato e Alêtheia Editores • Todos os direitos de publicação em Portugal reservados por: Vasco Rato e ALÊTHEIA EDITORES • Zona Industrial da Ponte Seca, 2510-752 Gaeiras – Óbidos • Tel.: (+351) 21 093 97 48/49 • E-mail: [email protected] • www.aletheia.pt • Capa: Sylvie Lopes • Imagem de capa: Zachary Keimig – Unspalsh • Paginação: Sylvie Lopes • ISBN: 978-989-8906-80-9 • outubro de 2020 LISTA DE ABREVIATURAS E ACRÓNIMOS – AIIB – BANCO ASIÁTICO DE INVESTIMENTO EM INFRAESTRUTURA APEC – COOPERAÇÃO ECONÓMICA ÁSIA- PACÍFICO ASEAN – Associação de Nações do Sudeste Asiático CMC – Comissão Militar Central Comintern – Internacional Comunista, Terceira Internacional ELP – Exército de Libertação Popular EUA – Estados Unidos da América GMD – Guomingdang, Partido Nacionalista Chinês CPEC – Corredor Económico China-Paquistão IFR – Iniciativa Faixa e Rota (BRI-Belt and Road Initiative) MIC2025 – Made in China 2025 MFN – Nação Mais Favorecida NATO – Organização do Tratado do Atlântico Norte OMC – Organização Mundial de Comércio ONU – Organização das Nações Unidas PCC – Partido Comunista Chinês PCUS – Partido Comunista da União Soviética PLD – Partido Liberal Democrata PNTR – Relações Comerciais Normais Permanentes RPC – República Popular da China RCEP – Parceria Económica Global Abrangente THAAD – Terminal de Defesa Aérea de Alta Altitude TTP – Parceria Trans-Pacífica INTRODUÇÃO   “I’ve read hundreds of books about China over the decades. I know the Chinese. I’ve made a lot of money with the Chinese. I understand the Chinese mind”. (Donald Trump, The Art of the Deal ) – Num discurso radiofónico transmitido pela BBC a 1 de outubro de 1939, Winston Churchill caracterizou a Rússia como “uma charada envolta em mistério, dentro de um enigma. Mas talvez haja uma chave. Essa chave é o interesse nacional russo”. Um dos primeiros políticos ocidentais a sublinhar os perigos do poderio soviético, Churchill constatava que o comportamento de Moscovo em busca do seu interesse nacional obedecia a uma lógica que nem sempre era convenientemente decifrada no Ocidente. Todavia, a história do país e a ideologia que movia a cúpula dirigente estruturavam os interesses nacionais prosseguidos pelo estado soviético. Nos nossos dias, a República Popular da China, tal como a União Soviética de outrora, também parece constituir um enigma para algumas democracias ocidentais. Não será excessivo afirmar que a política internacional atravessa um período de mutação vertiginosa que nos encaminha para um novíssimo ordenamento global. Centrada no Indo-Pacífico, a nova carta estratégica que se vislumbra num horizonte relativamente próximo substituirá o mundo organizado em torno do Atlântico erguido na sequência das viagens de descoberta que levaram Vasco da Gama às geografias asiáticas. Dir-se-á, portanto, que a época de domínio ocidental terminou. Não significa isto que a Europa e os Estados Unidos passarão a ser potências periféricas, meros espetadores do desenrolar dos grandes acontecimentos. Mas as novas instituições, regras e fatores de legitimação internacional que emergirão em conformidade com a nova distribuição de poder deixarão de assentar, como até agora, na ordem liberal euroamericana criada a partir de 1945. Também não será excessivo afirmar que 2020 foi, para as autoridades comunistas chinesas, um annus horribilis que marca um ponto de viragem no modo como a República Popular da China se relaciona com o resto do mundo e na forma como o país é percecionado internacionalmente. Vários acontecimentos produziram uma tempestade perfeita que, na prática, nos obrigam a olhar para a China a partir de outro prisma. Desfez-se a convicção de que o país poderá emergir pacificamente como grande potência sem pôr em causa os alicerces fundamentais da ordem liberal vigente. Ruiu a ideia de que a inserção da República Popular numa economia globalizada encaminhará o país no sentido do pluralismo e da democratização. Prevalecentes ao longo das décadas que se seguiram ao desmoronamento da União Soviética e ao fim da Guerra Fria, tais fantasias deram lugar às realidades impostas pela agudização da conflitualidade entre as grandes potências. Nas primeiras semanas do surto Covid, generalizou-se a ideia de que nada seria como dantes, que, perante o cataclismo, jamais regressaríamos à normalidade dos tempos que precederam Wuhan. Tais afirmações eram hiperbólicas porque, a bem dizer, a crise apenas evidenciou fenómenos políticos que há anos se manifestam, acelerando-os e tornando-os mais transparentes. Este mundo de incessante competição geoestratégica não é uma originalidade dos nossos tempos, pois a lógica e as dinâmicas que acompanham a rivalidade entre as grandes potências moldam o comportamento dos estadistas desde que Tucídides se debruçou sobre a “ascensão de Atenas e o pavor que instilou em Esparta”. Verdadeiramente excecional foi a ordem liberal construída e preservada sob a hegemonia americana, uma ordem que agora se apaga com o regresso das dinâmicas que há séculos pautam a política internacional. À medida que a pandemia alastra pelo mundo nos primeiros meses de 2020, Beijing oculta informações cruciais relativas ao vírus e manipula os dados entregues à Organização Mundial de Saúde (OMS). Indiferentes às consequências provocadas no resto do mundo, as autoridades chinesas geram o surto de acordo com critérios políticos e lançam uma campanha de desinformação que, entre outras torpezas, alega que o vírus teria tido origem em Itália ou nos Estados Unidos1. Mas o escândalo internacional irrompe aquando da morte de Li Wenliang, o médico do Hospital Central de Wuhan, recorre à internet para alertar o grande público para o perigo antes de sucumbir ao vírus em fevereiro de 2020. A corrida para descobrir o mapa genético do coronavírus começara semanas antes da morte de Li Wenliang. Em finais de dezembro de 2019, os médicos de Wuhan detetam pacientes cujos sintomas não reagem aos tratamentos usualmente ministrados em casos de gripe. A OMS será alertada para os casos misteriosos a 31 de dezembro e, a 1 de janeiro de 2020, solicita informações adicionais2. Dois dias depois, a China admite a existência de 44 casos de contágio, mas não relata nenhuma fatalidade. Ao longo de janeiro de 2020, a OMS elogia o governo chinês por ter “imediatamente” partilhado o mapa genético do vírus, acrescentando que o compromisso de Beijing com a transparência era “muito impressionante”3. A realidade era, porém, outra4. Vários laboratórios, tanto comerciais como governamentais, possuíam a sequência genética completa do vírus nos primeiros dias de janeiro, mas esses dados só seriam divulgados no dia 11 do mesmo mês, um atraso que dificulta a identificação de novos casos noutras regiões do globo. Durante mais de uma semana, Beijing recusa partilhar o genoma do vírus com a OMS5. Entre o dia em que o genoma completo fora decodificado por um laboratório governamental, a 2 de janeiro, e o dia em que a OMS declara a emergência global, a 30 de janeiro, o surto ganha dimensão mundial. A 14 de janeiro, as autoridades de saúde chinesas caracterizam o novo surto como “o desafio mais grave desde a SARS em 2003” e, secretamente, ordenam a preparação do país para uma pandemia6. Não obstante esta declaração da emergência pública, as autoridades insistem que a probabilidade de transmissão entre humanos era reduzida e Xi Jinping apenas avisa o público do perigo a 20 de janeiro. Embora o Direto Internacional obrigue os países a relatar informações à OMS que possam ter impacto na saúde pública, a China demora, no mínimo, duas semanas a fornecer à organização os dados detalhados sobre pacientes e casos. Gauden Galea, o principal funcionário da OMS na China, testemunhava esta situação ao afirmar que “estamos atualmente num ponto em que nos entregam informação 15 minutos antes de ser transmitida na CCTV”, a televisão estatal chinesa7. Em 2020, os cidadãos ocidentais também descobrem os perigos associados à utilização das tecnologias de ponta chinesas. A controvérsia em volta da infraestrutura 5G comercializada pela Huawei, tal como a ilegalização do TikTok e do WeChat na América, são as faces mais visíveis de uma competição em volta da liderança científica e tecnológica que invariavelmente ressuscita memórias dos anos Sputnik. A imagem ocidental da China como “fábrica do mundo”, país importador de tecnologia avançada e incapaz de inovar, deu lugar à realidade de uma China em vias de consolidar a sua liderança em áreas tecnológicas cruciais para a nova economia, tais como a inteligência artificial (IA), a robótica e os automóveis autónomos. Subitamente, a liderança económica dos países ocidentais era posta em causa pelos saltos tecnológicos que ninguém parecia ter antecipado. As tensões em volta da inovação científica e tecnológica eram inseparáveis dos receios quanto à relação comercial entre a China e o Ocidente, em geral, e os Estados Unidos, em particular. Popularizou-se a expressão “guerra comercial” e levantou-se o espetro do regresso às políticas protecionistas da década de 1930. Se a discussão dos últimos anos se fez em torno de deficits comerciais, da concorrência desleal, dos obstáculos no acesso ao mercado chinês e do uso indevido da propriedade intelectual, hoje a polémica gira em volta da reindustrialização do Ocidente e, por conseguinte, do desmantelamento das cadeias de fornecimento que geram tremendas vulnerabilidades. A crise do coronavírus expôs, de forma nítida, estas vulnerabilidades, particularmente no sector dos equipamentos médicos e dos fármacos. A fim de colmatar estas e outras vulnerabilidades, os Estados Unidos, o Japão, a Índia e a Coreia do Sul, nos meses mais recentes, anunciaram a intenção de promover políticas de repatriamento das suas empresas a operar na China e, assim, de desmontar as cadeias de fornecimento construídas ao longo de décadas de globalização. Não surpreende, pois, que Xi Jinping venha assumir a bandeira da globalização e do “comércio livre”, conceitos crescentemente sinónimos do status quo comercial que manifestamente beneficia a estratégia comercial da República Popular. Neste quadro de competição geoeconómica, restam poucas dúvidas de que o decoupling das economias americana e chinesa se encontra em franca e irreversível aceleração. É tentador concluir que estes assuntos espelham as obsessões de Donald Trump e, por conseguinte, tudo voltará à “normalidade” quando este abandonar a Casa Branca. Parece, aliás, que é justamente esta perspetiva que a União Europeia adotou nos tempos mais recentes8. A verdade, porém, é que Trump é uma consequência – e não a causa – das mudanças verificadas na última década. Independentemente do destino pessoal e político do presidente americano, é hoje patente que a rivalidade sino- americana se prolongará no tempo. Este endurecimento relativamente à China é, aliás, anterior à Administração Trump, pois iniciou-se com o “pivot” para a Ásia de Barack Obama. Por outras palavras, a rivalidade passou a ser um elemento estrutural da política mundial e, assim, qualquer presidente americano traçará uma política externa mais confrontacional face à China do que aquela que foi seguida nas décadas mais recentes. Neste quadro de polarização sino-americana, algo mudou na Europa. A opinião pública passou a ser mais hostil relativamente à China e, cada vez mais, os dirigentes europeus assumem posições de choque com Beijing, como ficou claro aquando da visita a Taiwan, em finais de agosto de 2020, de Milos Vystrcil, presidente do Senado da República Checa9. De igual modo, a recente cimeira bilateral UE-China, de setembro 2020, saldou-se por um aprofundamento das clivagens quanto aos valores, às liberdades em Hong Kong, às práticas comerciais e ao papel da República Popular na ordem internacional10. O agudizar da situação fez-se também sentir em Lisboa. A título exemplificativo, o embaixador dos Estados Unidos em Portugal, George Glass, em entrevista ao Expresso de 26 de setembro de 2020, tornava claro que se aproxima a hora de Portugal “escolher” entre os “aliados e os chineses”, acrescentando que “não se pode ter os dois”11. Parte da razão pela qual os públicos ocidentais começam a alterar as suas perceções da China deve-se à natureza autocrática do regime, que, se dúvidas restassem, se torna cristalina durante a crise do coronavírus. Se é verdade que, numa primeira fase, o confinamento chinês suscitou alguma admiração nas sociedades ocidentais, é igualmente verdade que rapidamente se percebeu que a “eficácia” do regime assentava na repressão generalizada que se tem vindo a

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