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DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. 1ª ed. São Paulo PDF

49 Pages·2017·4.53 MB·Portuguese
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Preview DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. 1ª ed. São Paulo

• -pET D1Re (Tc, .201 -(cid:9) )---ro AN6E,LA 'DRVi5 MuLI-4ERE, RictÇA E cL,455a PREFACIE] À EDIÇÃO BRASILEIRA Djamila Ribeira Angela Yvonne Davis é uma mulher à frente de seu tempo. E dizer isso não é afirmar que ela esteja desatenta às questões que afetama sociedade em seu momento histórico; ao contrário, significa apontar o potencial revolucionário de seu pensamento, que nos inspira a pensar além e a sair do lugar-comum. Nascida na década de 1940, no estado do Alabama, Estados Unidos, Davis mobilizou uma campanha mundial a favor de sua libertação nos anos 1970. Militante dos Panteras Negras e do Partido Comunista dos Estados Unidos, ela fora presa acusada de envolvimento em um atentado. Na época, além de pautar o debate racial de forma contundente, os Panteras Negras haviam se engajado na luta pela liberdade de três ativistas negros encarcerados: George Jackson, Fleeta Drumgo e John Clutchette — conhecidos como os "irmãos Soledad", por estarem detidos na prisão de Soledad, em Monterey, Califórnia. Numa ação que previa o sequestro de um juiz como moeda de troca pela liberdade dos rapazes, o irmão de Jackson e outros membros dos Panteras Negras inter- romperam um julgamento. Na troca de tiros, o juiz Harold Haley foi morto, e Davis, posteriormente, acusada de ter comprado a arma utilizada na ação. Em razão desse evento, em agosto de 1970,0 nome de Angela foi incluído na lista dos dez fugitivos mais procurados pelo FBI. Após meses escondida, a ativista e intelectual foi presa, e o mundo parou por conta da campanha conhecida como "Libertem Angela Davis", nome do documentário que conta sua história'. Após dezoito meses, ela foi inocentada de todas as acusações. Professora de filosofia e aluna de Herbert Marcuse, foi impedida de lecionar na Universidade da Califórnia por causa de sua ligação com o Partido Comunista, organização pela qual foi candidata a vice-presidente da República em 1980 e 1984, compondo .a chapa de Gus Hall. O documentário, cujo título original é Free Angela and All Political Piilkers, foi dirigido por Shola Lynch e lançado em 2013. 12 ANGELA DAVIS MULHERFS, aAçA. E C:LASSE 13 Davis alia de forma brilhante academia e militância, recusando uma suposta entre essas categorias existem relações que são mútuas e outras que são cruzadas. neutralidade epistemológica. Sua obra é marcada por um pensamento que visa Ninguém pode assumir a primazia de uma categoria sobre as outras? romper com as assimetrias sociais. A visão de ativista aguça seu olhar. Exemplo A recusa a um olhar ortodoxo mantém Davis atenta ás questões contem- disso, Mulheres, raça e classe é uma obra fundamental para se entender as nuan- porâneas, que abarcam desde a cantora Beyoncé à crise de representatividade. ces das opressões. Começar o livro tratando da escravidão e de seus efeitos, A discussão feita por ela sobre representação foge de dicotomias estéreis e nos da forma pela qual a mulher negra foi desumaniuda, nos dá a dimensão da auxilia numa nova compreensão. Acredita que representação é importante, impossibilidade de se pensar um projeto de nação que desconsidere a centra- sobretudo no que diz respeito à população negra, ainda majoritariamente lidade da questão racial, já que as sociedades escravocratas foram fundadas no fora de espaços de poder. No entanto, tal importância não pode significar a racismo. Além disso, a autora mostra a necessidade da não hierarquização das incompreensão de seus limites. Para além de simplesmente ocupar espaços, é opressões, ou seja, o quanto é preciso considerar a intersecção de raça, classe e necessário um real comprometimento em romper com lógicas opressoras. Nesse género para possibilitar um novo modelo de sociedade. sentido, acompanhar suas entrevistas é fundamental. Davis apresenta o debate sobre o abolicionismo penal como imprescindível Davis traz as inquietações necessárias para que o conformismo não nos der- para o enfrentamento do racismo institucional. Denuncia o encarceramento em rote. Pensa as diferenças como fagulhas criativas que podem nos Permitir inter- massa da população negra como mecanismo de controle e dominação. Dessa ligar nossas lutas e nos coloca o desafio de conceber ações capazes de desatrelar forma, questiona a ideia de que a mera adesão a uma lógica punitivista traria valores democráticos de valores capitalistas. Essa é sua grande utopia. Nessa soluções efetivas para o combate à violência, considerando-se que o sujeito negro construção, para ela, cabe às mulheres negras um papel essencial, por se tratar foi aquele construído como violento e perigoso, inclusive a mulher negra, cada do grupo que, sendo fundamentalmente o mais atingido pelas consequências vez mais encarcerada. Analisar essa problemática tendo corno base a questão de de uma sociedade capitalista, foi obrigado a compreender, para além de suas raça e classe permite a Davis fazer uma análise profunda e refinada do modo opressties, a opressão de outros grupos. pelo qual essas opressões estruturam a sociedade. Neste livro, tal discussão é Mulheres, raça e classe é a tradução do conceito de interseccionalidade. Angela sinalizada pela autora por meio de sua abordagem do sistema de contratação Davis traz um potencial revolucionário, e ler sua obra é tarefa essencial para de pessoas encarceradas nos Estados Unidos, que já durante o período escra- quem pensa um novo modelo de sociedade. vocrata permitia às autoridades ceder homens e mulheres negros presos para o trabalho, em uma relação direta entre escravidão e encarceramento como São Paulo, julho de 2016 forma de controle social. Nesse sentido, mesmo sendo marxista, Davis é uma grande crítica da es- querda ortodoxa que defende a primazia da questão de classe sobre as outras opressões. Em "As mulheres negras na construção de uma nova utopia", a autora destaca a importância de refletir sobre de que maneira as opressões se combinam e entrecruzam: As organizações de esquerda têm argumentado dentro de uma visão marxista e ortodoxa que a classe é a coisa mais importante. Claro que classe é importante. É preciso compreender que classe informa a raça. Mas raça, também, informa a classe. E gênero informa a classe. Raça é a maneira corno a classe é vivida. Da mesma forma que gênero é a maneira como a raça é vivida. A gente precisa refletir bastante Artigo publicado no portal Geledés — Instituto da Mulher Negra. Disponível em: attp://www. para perceber as intersecções entre raça, classe e género, de forma a perceber que geledes.org.brías-mulheres-negras-na-construcao-de-uma-nova-utopia-angell-davis/>. II SIGNIFICAM] DE EMANCIPAÇÃO PARA AS MULHERES NEGRAS "Maldita seja Canar, gritaram os sacerdotes hebreus. "Seja um servo dos servos para seus irmãos." [...] Os negros não são servos? Ergo! Foi sobre esses mitos espiri- tuais que se fundou o anacronismo da escravidão americana, e foi essa degradação que transformou em empregados domésticos os aristocratas do povo de cor. f...1 [...] Com a emancipação [...] o trabalho doméstico deixou de ser atrativo para o negro. O caminho da salvação para a multidão emancipada do povo negro não atravessava mais a porta da cozinha, com seus grandes salões e a varanda sustentada por pilares do lado de fora. Esse caminho consiste, como todas as pessoas negras logo descobriram e sabem, em escapar da servidão doméstica.' Depois de um quarto de século de "liberdade", um grande número de mulheres negras ainda trabalhava no campo. Aquelas que conseguiram ir para a casa-grande encontraram a porta trancada para novas oportunidades — a menos que preferissem, por exemplo, lavar roupas em casa para diversas famílias brancas em vez de realizar serviços domésticos variados para uma única família branca. Apenas um número infinitesimal de mulheres negras conseguiu escapar do campo, da cozinha ou da lavanderia. De acordo com o censo de 1890, havia 2,7 milhões de meninas e mulheres negras com idade acima dos dez anos. Mais de 1 milhão delas eram trabalhadoras assalariadas: 38,7% na agricultura, 30,8% nos serviços domésticos, 15,6% em lavande- rias e ínfimos 2,8% em manufaturas2. As poucas que encontraram emprego na indústria realizavam os trabalhos mais sujos e com os menores salários. Considerando que suas máes escravas também haviam trabalhado nas usinas de algodão do Sul, nas refinarias de açúcar e até mesmo nas minas, elas não haviam conseguido um progresso significativo. Em 1890, para as mulheres '(cid:9) W. E. B. Du Bois, Darkwater, cit., p. 113. Barbara Wertheimer, We Were 7here, cit., p. 228. 96 ANGELA DAVIS 97 MULHERES, RAÇA E CLASSE negras, devia parecer que a liberdade estava em um futuro ainda mais remoto curtos. `Em muitos casos, detentos doentes eram forçados a trabalhar pesado do que no fim da Guerra Civil. até que caíssem mortos."' Assim como acontecia na época da escravidão, as mulheres negras que tra- Tendo a. escravidão_ como modelo, () sistema de contratação de mão de balhavam na agricultura — como meeiras, arrendatárias ou assalariadas — não csarsgária pão_difemNiaVa o_trahalho. rna,sçíillop,do feminino; Homens eram menos oprimidas do que os homens ao lado de quem labutavam o dia e mulheres eram frequentemente alojados na mesma paliçada e agrilhoados todo. Em geral, elas_ çsam.obriggclas_kassinarf`contratos»:._ciain proprietários de juntos durante o dia de trabalho. Em uma resolução aprovada pela Convenção terras que desejavam reproduzir as..randições de.trabalho do período anterior de Pessoas Negras do Estado do Texas, em 1883, "a prática de agrilhoar ou à Guerra Civil. Com frequência, a data de expiração do contrato era mera acorrentar detentas e detentos juntos" foi "fortemente condenada". Da mesma formalidade, uma vez que os proprietários podiam alegar que os trabalhadores forma, na Convenção de Fundação da Liga Afro-Americana, em 1890, um dos lhes deviam mais do que o equivalente ao período de trabalho prescrito no sete motivos apontados como causas da criação da organização foi "o odioso e contrato. Como resultado da emancipação, uma grande quantidade de pessoas desmoralizante sistema penitenciário do Sul, com suas práticas de acorrentar negras se viu em um estado. indefinido de servidão..ppr. dívida. As pessoas que as pessoas encarceradas umas às outras em fila, obrigá-las a trabalhos forçados trabalhavam como meeiras, que supostamente eram donas do produto de seu e misturar homens e mulheres indiscriminadamente"6. trabalho, não estavam em melhor situação do que quem trabalhava para quitar Como observou W. E. B. Du Bois, o potencial lucrativo do sistema de dívidas. Aquelas que "arrendaram" a terra imediatamente após a emancipação contratação de pessoas endarceradas persuadiu muitos proprietários de terras raramente possuíam dinheiro para saldar os pagamentos do aluguel ou para do Sul a investir exclusivamente na mão de obra carcerária — alguns deles em- comprar o que precisavam antes da colheita da primeira safra. Exigindo até pregando a força de trabalho de centenas de pessoas negras prisioneiras7. Em '30% de participação, proprietários de terras e comerciantes detinham parte consequência, tanto empregadores como autoriclad5s eptatais adquisiram .um da safra como garantia. forte Loteresse e,cohômi.ço em ampliara popula£ão_sarcerária. "Desde 1876", Os agricultores, claro, não podiam pagar esse percentual e, ao fim do primeiro ano, mostra Du Bois, "pessoas negras têm sido detidas em resposta à menor pro- estavam endividados — no segundo ano, tentavam novamente, mas tinham a dívida vocação e sentenciadas a longas penas ou multas, sendo obrigadas a trabalhar antiga e as novas taxas de participação a serem pagas e, dessa forma, o "sistema de para pagá-las"8. arrendamento" se convertia em um direito sobre a produção total de que parecia Essa deturpação do sistema de justiça criminal era opressiva para toda a impossível se desvencilhar.' população saída da escravidão. Masas mulheres eram especialmente suscetíveis aos ataques brutais do sistema judiciário. Os abusos sexuais sofridos rotineira- Por méis)._ do sistema. de çontratação de pegoas pflcarcerada.s, a _popfdação mente durante o período da escravidão não foram interrompidos pelo advento uegra..gra.„fosçada à Nprggità.Fgs mesmos. Rapeis que ççi:?..v.idão havia lhe da emancipação. De fato, ainda constituía uma verdade que "mulheres de cor glihutflo. Homens e mulheres eram igualmente vítimas de detenções e prisões eram consideradas como presas autênticas dos homens brancos"' — e, se elas sob os menores pretextos — para que fossem cedidos pelas autoridades como mão resistissem aos ataques sexilais desses homens, com frequência eram jogadas na de obra carcerária. Enquanto os proprietários de escravos haviam reconhecido limites à crueldade Forn que exploravam sua "valiosa" propriedade humana, esse 4(cid:9) Herbert Aptheker, A Documentary History of the Negro People in the United State:, v. 2, cit., tipo de precaução não era necessário para os proprietários de terras que, no pós- p. 689. Convenção de Pessoas Negras do Estado do Texas, 1883. -guerra, empregavam a mão de obra carcerária negra por períodos relativamente 5(cid:9) Herbert Aptheker, A Documentau History of the Negro People in the United States, is. 2, cit., p. 690. Ibidem, p. 704. Convenção de Fundação da Liga Afro-Americana, 1890. 3(cid:9) Herbert Aptheker, A Documentas), Histosy of the Negro People in the United States, v. 2, cit., 7(cid:9) W. E. B. Du Bois, Black Reconstruction is: America, cit., p. 698. p. 747. "Tenant Farming in Alabama, 1889", 7he Journal of Negro Education, n. 17, 1948, Idem. p. 46 e seg. 9(cid:9) Ibidem, p. 699. 98 ANGELA DAvis MULHERES, RAÇA E CLASSE 99 prisão para serem ainda mais vitimizadas por um sistema que era um "retorno alma"" da família branca que a empregava. Sempre a chamavam pelo primeiro a outra forma de escravidão"". nome — nunca pôr sra. —> e nko.Lera_raro,.que se...referissem. a ela como sua Durante o período pós-escravidão, a maioria das mulheres negras traba- "presa':, ou seja, sua escrava'4. lhadoras que não enfrentavam a dureza dos campos era obrigada a executar ser- Um dos aspectos mais humilhantes do serviço doméstico no Sul — e outra viços domésticos. Sua situação, assim como a de suas irmãs que eram meeiras ou confirmação de sua semelhança com a escravidão — era a anulação temporária a das operárias encarceradas, trazia o familiar selo da escravidão. Aliás, a_p_rópria das(cid:9) Jim_Çrow* Ag...11pm _que uma .serviçal negra. estivesse...em presença de escravidão havia_sido.chamada, com eufemismo de "instituiç_ão doméstica", .e migas brancas— as escravas eram designadas pelo inOcumermo."serviçaisslômégicas". Aos olhos Eu andava nos bondes ou nos trens com as crianças brancas e [...] podia sentar onde dos ex-proprietários de escravos, "serviço doméstico" devia ser uma expressão quisesse, na frente ou atrás. Se um homem branco perguntasse a outro branco "O polida para uma ocupação vil que não estava nem a meio passo de distância que esta preta está fazendo aqui?", e a resposta fosse "Ah, ela cuida daquelas crianças da escravidão. Enquanto ,as mulheres negras trabalhavam como cozinheiras, brancas que estão na frente dela", imediatamente se fazia' o silêncio da paz. Tudo babás, camareiras e domésticas de todo tipo, as mulheres brancas do Sul rejei- estava bem, contanto que eu estivesse na parte do bonde reservada aos brancos ou tavam unanimemente trabalhos dessa natureza. Nas outras regiões, as brancas no vagão de trem dos brancos como uma serviçal — uma escrava —, mas caso .eu que trabalhavam como domésticas eram geralmente imigrantes europeias que, pão.me.apresentasse_ como uma serviçal [..1 por não ter nenhuma criança branca como suas irmãs ex-escravas, eram obrigadas a aceitar qualquer emprego que comigo, ey_era_ilue4iaram,5g5...f..1,dada„ParR.,..0.,1:?.ancos, das pessoas $pretas" ou conseguissem encontrar. para o vagão das "pessoas de cor"." A equiparação ocupacional das mulheres negras com o serviço doméstico Desde a Reconstrução até o presente, as mulheres negras empregadas em não era, entretanto, um simples vestígio da escravidão destinado a desaparecer funções domésticas consideraram o abuso sexual cometido pelo "homem da com o tempo. Por quase um século, uni número significativo de ex-escravas casa" como um dos maiores riscos de sua profissão. Por inúmeras vezes, fixam foi incapaz de escapar às tarefas domésticas. A história de uma trabalhadora doméstica da Geórgia, registrada por um jornalista de Nova York em 191221 Y4.471"P-S..e.gggs,:a9gt.trab_alk.o, sstglo,obtigadas.a.e.scolhererytre a,submiss.ão , ,s,e324,ppbre7,a,absoluta,para.si,mesmas..e_para_sukfamilia. Essa mulher da reflete a dificil situação econômica das mulheres negras das décadas anteriores, Geórgia perdeu um de seus empregos, no qual Morava, porque "eu me recusei(cid:9) \ bem como de muitos anos depois. Mais de dois terços das mulheres negras a deixar o marido da senhora me beijar"1 6. de sua cidade foram forçados a encontrar empregos como cozinheiras, babás, lavadeiras, camareiras, vendedoras ambulantes ou zeladoras e se viram em Assim que fui empregada como cozinheira, ele se aproximou, colocou os braços em condições "tão ruins, se não piores, do que as do período da escravidão"". volta de mim e estava quase me beijando quando eu exigi saber o que significava Por mais de trinta anos, essa mulher negra viveu involuntariamente aquilo e o empurrei. Eu era jovem, recém-casada e ainda não sabia o que, desde Xig-5 casas onde era empregada. Trabalhando nada_menos sue catorze horas por_dia, ,ela então, tem sido um peso para minha mente e meu coração: que nesta parte do pais geralmente tinha permissão de sair por apenas uma tarde a cada duas semanas a virtude de uma mulher de cor nunca está protegida." para visitar a família. Em suas próprias pálavras, ela era "escrava de corpo e 13 Ibidem, p. 47. "(cid:9) Ibidem, p. 50. '° Ibidem, p. 698. *(cid:9) Conjunto de leis que institucionalizava a segregação racial no Sul dos Estados Unidos em locais "(cid:9) Herbert Aptheker, A Documentmy Histoly of the Negro People in the United States, v. 1 (Nova e serviços públicos, como escolas e meios de transporte, mas também em estabelecimentos York, lhe Citadel Presa, 1973), p. 46. "A Southern Domestic Worker Speaks", 7he Independent, particulares como restaurantes. Sua duração foi de quase um século (de 1876 a 1965). (N. E.) v. 72, 25 jan. 1912. 15 Idem. Herbert Aptheker, A Documentary Hirto°, of the Negro People in the United States, cit., v. 1, IS(cid:9) Ibidem, p. 49. p. 46. 17 Idem. 100 ANGELA DAVIS MULHERES, RAÇA E CLASSE 101 Tal como na época da escravidão, o homem negro que protestasse contra esse fundamentalmente diferentes de seus ex-proprietários nas atitudes em relação tipo de tratamento para sua irmã, filha ou esposa poderia esperar ser punido. ao potencial de trabalho da mão de obra 'escrava recentemente liberta.. Eles "Quando meu marido foi tirar satisfações com o homem que me insultou, o também acreditavam, ao que parece, que "iiegros são serviçais, :serviçais são homem o amaldiçoou, o esbofeteou e... mandou prendê-lo! A polícia multou negros"23. De acordo com o censo de 1890, Delaware era o único estado não meu marido em 25 dólares."18 sulista em que a maioria da população negra estava empregada como mão de Depois que ela testemunhou, sob juramento, à corte, "o,velhõlgiz ergueu os obra agrícola e meeira, não em serviços domésticos'. Em 32 dos 48 estados, ohm e disse: 'Esta corte nunca acatará a palavrasle uma,prera. conna_pâlavra o serviço doruêstico erâ oçtipâção predominante, tanto de homens quanto de mulhaes. Em sete de cada.,dez es,tactõs, havialnais.pessoas negra,s tra~do Em 11991199,, quando as líderes sulistas da Associação Nacional das Mulheres de em funções dmésricas que,enk_tõdas ass_itins,õcupa0,9 ilptgS25. O relatório Cor registraram suas reclamações, as condições do serviço doméstico estavam censitário provava que negros são serviçais, serviçais são negros. em primeiro lugar da lista. Elas tinham bons motivos para protestar contra o O importante ensaio de Isabel Eaton sobre serviço doméstico, publicado que educadamente denominaram "exposição a tentações morais"zo rio trabalho. em 1899, no estudo The Philadelphia Negro [O negro da .Filadélfia], de Du Sem dúvida, a empregada doméstica da Geórgia teria manifestado concordância Bois, revela que 60% da mão de obra negra no estada_da Pensilyânia estava incondicional com os protestos da Associação. Em suas palavras: empregada em algum tipo de função doméstica26. A situação das mulheres era ainda pior, pois 91% das trakalNdosas qe,gras —14.297 de um total de 15.704 — Acredito que quase todos os homens brancos tomavam ou esperavam tomar liber- dades indevidas com suas serviçais de cor — não só os pais, mas, em muitos casos, eram co(cid:9) ta cprno se,rvizis27. Quando foram para o Norte, tentando fugir também os filhos. As empregadas que se rebelassem contra essas intimidades ou da antiga condição de escravidão, descobriram que simplesmente não havia teriam de ir embora ou, caso ficassem, poderiam esperar muitas dificuldades.2' outras ocupações disponíveis para elas. Durante a pesquisa para seu estudo, Eaton entrevistou diversas mulheres que chegaram a lecionar em escolas, mas Desde o período da escravidão, a condição de vulnerabilidade das trabalha- que haviam sido demitidas devido ao "preconceito"28. Expulsas da sala de aula, doras domésticas tem sustentado muitos dos mitos duradouros sobre a "imorali- haviam sido obrigadas a trabalhar na lavanderia e na cozinha. dade" das mulheres negras. Nesse clássico "círculo vicioso", o trabalho doméstico Dos 55 empregadores entrevistados p,os EQton,apenaAum_prefsria serviçais é considerado degradante porque tem sido realizado de modo desproporcional b,r,ançA,à§,,mgps29. Nas palavras de uma mulher: "Acho que ai pessoas de cor por mulheres negras que, por sua vez, s.ão vistas cpmq."ineptas.",.e,"prõrõiscnas". são muito difamadas em relação a honestidade, limpeza e confiabilidade; mi- Mas as aparentes inépçi4 çpk91.:449..kidAslç são mitos que se confirmam repetida- nha experiência é que elas são imaculadas em todos os, sentidos e totalmente triente_pplo_trabalho,degradatite que gas são obstadas a Igen Como W. E. B. honestas; na verdade, não posso elogiá-las o suficiente"". Du Bois disse, qualquer homem branco "decente" cortaria o pescoço da própria O racismo funciona de modo intrincado. As empregadoras que acreditavam filha antes de permitir que ela aceitasse um emprego doméstico22. estar elogiando as pessoas negras ao afirmar preferi-las em relação às brancas Quando a população negra começou a migrar para o Norte, homens e mulheres descobriram que, fora do Sul, seus empregadores brancos não eram 23(cid:9) Ibidem, p. 115. "(cid:9) Isabel Eaton, "Special Report on Negro Domestic Service", em W. E. B. Du Bois, The Philadelphia Negro (1899) (Nova York, Schocken, 1967), p. 427. 111 Idem. 25 Idem. 19 Idem. 26 Ibidem, p. 428. 20 "lhe Colored Women's Statement to the Women's Missionary Council, Arnerican Missionary " Idem. Association'", em Gerda Lerner (org.), Black Women ia White America, cit., p. 462. "(cid:9) Ibidem, p. 465. 21 Herbert Apdieker, A Documenttny History of the Negro People ia the United States, v. 1, cit., p. 49. 29(cid:9) Ibidem, p. 484. 22 W. E. B. Du Bois, Darkwarer, cit., p. 116. 30(cid:9) Ibidem, p. 485. • 102 ANGELA DAVIS MULHERES, RAÇA E CLASSE 103 • argumentavam, na verdade, que as pessoas negras estavam destinadas a ser existiam,mercados — versões modernas das praças de leilões de escravos — em que serviçais domésticas — escravas, para ser franca. Outra empregadora descreveu as mulberes.brancas-erani..cQgmidacla.s.a.escolliet_entre. a multidão. de mulheres sua cozinheira como "muito esforçada e cuidadosa — meticulosa. Ela é uma we,gras.que_ procurayam,emprego. criatura boa, fiel e muito agradecida"". Claro, a "boa" serviçal é sempre fiel, Todas as manhãs, sob sol ou chuva, mulheres com sacolas de papel pardo ou maletas confiável e agradecida. 4literatura dos Estados Unidos, e os meloule comu- baratas se reuniam em grupos nas esquinas do Bronx c do Brooklyn, onde espe- nicação populares_no país.fornecem numewsos estereótipos da _mulher negra ravam pela oportunidade de conseguir algum trabalho. [—] Uma vez contratadas çonio serviçal resistente e ccqflável. As Dilseys* (à /á Faulkner), as Berenices (de no "mercado de escravas", depois de um dia de trabalho extenuante, elas não raro A convidada do casamento") e as Tias Jemimas de fama comercial se tornaram descobriam que haviam trabalhado por mais tempo do que o combinado, recebido personagens arquetípicas da cultura estadunidense. Por isso, a única mulher menos do que o prometido, sido obrigadas a aceitar o pagamento em roupas em vez entrevistada por Eaton que preferia serviçais brancas confessou que, na verda- de dinheiro e exploradas alem da resistência humana. Mas a necessidade urgente de de, empregava ajudantes negras "porque elas se parecem mais com criadas"". dinheiro faz com que elas se submetam a essa rotina diária?' A definição tautológica de pessoas negras como serviçais é, de fato, um dos Nova York possuía cerca de duzentos desses "mercados de escravas", vários artifícios essenciais da ideologia racista. deles localizados no Bronx, onde "quase todas as esquinas para cima da rua Com frequência, racismo e sexismo convergem — e a condição das mulheres 167" eram ponto de encontro de mulheres negras em busca de trabalho". Em brancas trabalhadoras não raro é associada à situação opressiva das mulheres de um artigo publicado no jornal The Nation, em 1938, intitulado "Our Feudal . minorias étnicas***. Por isso, os salários pagos às trabalhadoras domésticas bran- Housewifes" [Nossas donas de casa feudais], afirma-se que as mulheres negras cas sempre foram fixados pelo critério racista usado para calcular a remuneração trabalhavam em torno de 72 horas por semana, recebendo os menores salários das serviçais negras. As imigrantes que eram obrigadas a aceitar o emprego em relação a todas as ocupaçõ es36. doméstico ganhavam pouco mais do que suas companheiras negras. Em relação Além de ser o menos gratificante de todos os empregos, o trabalho domés- às possibilidades salariais, elas estavam, de longe, muito mais próximas de suas tico também era o mais dificil de ser organizado em sindicatos. Desde 1881, as irmãs negras do que de seus irmãos brancos que trabalhavam para sobreviver". trabalhadoras domésticas estavam entre as mulheres que se filiaram às unidades Se as mulheres brancas nunca recorreram ao trabalho doméstico, a menos locais da 1Cnights of Labor quando a instituição retirou o veto à participação de que tivessem certeza de não encontrar algo melhor, as mulheres negras estive- mulheres". Muitas décadas depois, porém, as organizações sindicais que buscavam ram aprisionadas a essas ocupações até o advento da Segunda Guerra Mundial. unir a mão de obra doméstica enfrentaram os mesmos obstáculos que suas ante- Mesmo nos anos 1940, nas esquinas de Nova York e de outrassrandes cidades, cessoras. Dom Jones fundou e dirigiu o Sindicato de Trabalhadoras Domésticas de Nova York durante os anos 1930". Em 1939— cinco anos depois da criação do 3' Idem. sindicato—, apenas 350 das 100 mil domésticas do estado tinham se filiado. Mas *(cid:9) Personagem do livro O som e a ftria, de William Faulkner (trad. Paulo Henriques Britto, São Paulo, Cosac Naify, 2009). (N. E.) mesmo diante das enormes dificuldades de organizar a mão de obra doméstica ** Livro de Car' s on McCullers (trad. Sônia Coutinho, Osasco, Novo Século, 2008). (N. E.) essa realização não podia ser considerada de menor importância. "Ibidem, p. 484. *** pNeojo oraritgivinoa el_, "4w aopmliceand °af e&dpoers"s.o La\s1 2d.e§ ,oRrsitgaecmip sa fUrinciadnoas, aaí tei]çcap„riensas(ãgoe.,n"ap oop.dkeo_fooluet.rro7.s.sprãnop oresr ppo:sleitnLticdao 34(cid:9) Gerda Lerner (org.), Black Women in White America, cit., p. 229-31. Louise Mitchell, "Slave mente definidas çorno,minoria.s étnicas. Por outro lado, o termo "cylo?,:efljeople", aqui tratluxjdo. Markets Typify Exploitation of Domestics", 71,e Daily W'orker, 5 maio 1940. . . como "pessoas de.cor", erkptilizado apenas em referépcia a afrodescentlentes.,e, historicamente, 35(cid:9) Cerda Lerner, 77e Femak Experience: An American Documentary (Indianápolis, Bobbs-Merrill, aáqgirk.t.,um.sentido.depreciatiyo. (N. T.) 1977), p. 269. 33 Ibidem, p. 449. Eaton apresenta evidências que "apontam para a probabilidade de que, pelo 36 (cid:9) Ibidem, p. 268. menos entre as mulheres que atuam em serviços domésticos, não exista diferença entre -'salário "(cid:9) Barbara Wertheimer, We Were 7here, cit., p. 182-3. de brancas e salário de negras' [...]". 31(cid:9) GERIA Lerner (org.), Black Women is White America, cit., p. 232. 104 ANGELA DAVIS MULHERES, RAÇA E CLASSE 105 As mulheres brancas — incluindo as feministas — demonstraram uma relutân- desproporcional não são inexplicáveis, já que as pessoas que trabalham como c,‘ bástkica em reconhecer as luty,ts dassrab4,aclogas domésticas. Elas raramente serviçais geralmente são vistas como menos do que seres humanos. Inerente _à se envolveram no trabalho de Sísifo que consistia em melhorar as condições do dinâmjsa kielnionainento entre senhor e escravo (ou nnhgra__e emp_inasla), serviço doméstico. Nos programas das feministas "de classe média" do passado disse o filósofol-legpl, és, g.f9rçp' congante,para aniquilaLa consciAncia.does- e do presente, a conveniente omissão dos problemas dessas trabalhadoras em cravo. A balconista mencionada na conversa era uma trabalhadora remunerada — geral se mostrava uma justificativa velada — ao menos por parte das mulheres uni ser humano com um grau mínimo de independência em relação a quem o mais abastadas — para a exploração de suas próprias empregadas. Em 1902, empregava e ao próprio trabalho. A serviçal, poí outro lado, trabalhava com a autora de um artigo intitulado "A Nine-Hour Day for Domestic Servants" único propósito de satisfazer as necessidades de sua: senhora. P,t9,3avelmente Uornada de nove horas diárias para serviçais domésticas] relata uma conversa mergaudo,sua criada comonera extensão .clesi Ingstng, alemi4igg diNilmente que teve com uma amiga feminista que lhe pediu que assinasse uma petição Rockria, ter,c2nsciência de seu.pr9p.rio.pap.el at1Y9 çomo opressora. destinada a pressionar empregadores a fornecer cadeiras para as balconistas. Conforme Angelina Grimké declarou em seu App e al to the Christian Women "As moças", ela disse, "têm de ficar de pé dez horas por dia, e me dói o coração ver of the South [Apelo às mulheres cristãs doSul], as mulheres brancas que não cansaço no rosto delas." enfrentavam a instituição da escravidão carregavam Urna pesada responsabili- "Sra. Jones", eu disse, "quantas horas por dia sua empregada fica de pé?" dade por sua inumanidade. Do mesmo modo, o Sindicato de Trabalhadoras "Por quê? Eu não sei", ela ofegou, "cinco ou seis, creio eu." Domésticas expôs o papel das donas de casa de classe média na opressão das "A que horas ela se levanta?" trabalhadoras domésticas negras. "Às seis." A dona de casa está condenada ao posto de pior empregadora do pais [...]. "E a que horas ela termina o trabalho, à noite?" As donas de casa dos Estados Unidos obrigam seu 1,5 milhão de empregadas a "Por volta das oito, acho, normalmente." trabalhar em média 72 horas por semana e pagam a elas [...] aquilo que conseguem "São catorze horas..." espremer de seu orçamento depois que o dono da mercearia, o açougueiro [...] "Ela pode se sentar durante o trabalho." [etc.] foram pagos.4° "Durante qual trabalho? Lavando? Passando? Varrendo? Arrumando as camas? Cozinhando? Lavando a louça? [...] Talvez ela se sente por duas horas, nas refeições A desesperadora situação econômica das mulheres negras — elas realizam o e quando prepara os vegetais, e quatro dias por semana ela tem uma hora livre pior de todos os trabalhos e são ignoradas — não mostrou sinais de mudança à tarde. Sendo assim, sua empregada fica de pé pelo menos onze horas por dia, até o início da Segunda Guerra Mundial. Às vésperas da [entrada dos Estados incluindo o agravante de ter de subir escadas. O caso dela me parece mais digno Unidos na] guerra, de acordo com o censo de 1940, 59,5% das mulheres negras de compaixão do que o da balconista da loja." empregadas eram trabalhadoras domésticas e outros 10,4% trabalhavam em Minha visitante se levantou, corada e com faíscas nos olhos. "Minha empregada ocupações não domésticas`". Como aproximadamente 16% ainda trabalhavam sempre tem livres os domingos depois do jantar", ela disse. no campo, menos de uma em cada dez trabalhadoras negras havia realmente "Sim, mas a balconista tem todo o domingo livre. Por favor, não vá antes que eu começado a escapar dos velhos grilhões da escravidão. Mesmo aquelas que assine a petição. Ninguém ficaria mais grata do que eu em ver que as balconistas têm a possibilidade de se sentar conseguiam entrar na indústria e em atividades profissionais tinham pouco do que se gabar, pois eram designadas, via de regra, aos trabalhos com os piores Essa militante feminista estava perpetuando a mesma opressão contra a salários nessas ocupações. Qii_ando os Estados. Unidds_engráratn iaSgun4a qual protestava. Mas seu comportamento contraditório e sua insensibilidade "(cid:9) Gerda Lerner, The Female Experience, cit., p. 268. "(cid:9) Inez Coodman, "A Nine-Hour Day for Domejtic Servants", The Independent, v. 59, 13 fev. 1902, 41(cid:9) Jacquelyne Johnson Jackson, "Black Women in a Racist Society", em Charles Williet al. (org.), citado em Rosalyn Baxandall et al. (org.), America': Working Women, cit., p. 213-4. Racism and Mental Health (Pittsburgh, University of Pittsburgh Press, 1973), p. 236. Guerra Mundial e o trabalho feminino manteve a economia de guerra em fun- cionamento, mais de 400 mil mulheres negras deram adeus para seus trabalhos domésticos. No auge da guerra, o número de mulheres negras na indústria havia mais que dobrado. Mesmo assim — e essa ressalva é inevitável —, ainda nos anos 1960, pelo menos um terço das trabalhadoras negras permanecia preso aos EDUCAÇÃO E LIBERTAÇÃO: mesmos trabalhos domésticos do passado e um quinto delas realizava serviços A PERSPECTIVA DAS MULHERES NEGRAS fora do ambiente doméstico42. Em um ensaio ferozmente crítico intitulado "The Servant in the House" [A serviçal na casa], W. E. B. Du Bois argumentou que, enquanto o serviço do- méstico fosse a regra para a população negra, a emancipação permaneceria uma Milhões de pessoas negras — especialmente as mulheres — foram convencidas de que a emancipação era a "vinda do Senhor". "Era a realização da profecia e da abstração conceituai. "O negro", insistia Du Bois, "não alcançará a liberdade lenda. Era a Aurora de Ouro após mil anos de grilhões. Era tudo de milagroso, até que esse odioso emblema de escravidão e medievalismo seja reduzido para menos de 10%"43. As mudanças estimuladas pela Segunda Guerra Mundial perfeito e promissor."' forneciam apenas uma sugestão de progresso. Após oito longas décadas de Havia alegria no Sul. Ela ascendia como perfume — como uma prece. Homens (( emancipação", os sinais de liberdade eram sombras tão vagas e distantes que estremeciam. Moças esguias, morenas, selvagens e belas, com cabelos crespos, era preciso forçar os olhos para vislumbrá-las. choravam em silencio; jovens mulheres, negras, marrons, brancas e douradas levantavam as mãos trêmulas, e mães velhas e maltratadas, negras e grisalhas, elevavam sua grandiosa voz e gritavam a Deus através dos campos e até o alto de rochas e montanhas.' Uma incrível canção foi ouvida, a coisa mais linda nascida neste lado do oceano. Era uma canção nova [...] e sua beleza melancólica e profunda, suas cadências e súplicas ansiosas gemiam, pulsavam e vociferavam nos ouvidos do mundo com uma mensagem à qual o homem raramente dava voz, e que se ergueu e floresceu como incenso, improvisada e nascida de uma era há muito tempo terminada, entrelaçando em seu ritmo as letras e intenções de velhas e novas melodias.' É pouco provável que a população negra estivesse celebrando os princípios abstratos da liberdade ao saudar o advento da emancipaç'ão. Quando aquele ‘`enorme lamento humano lançou-se ao vento e atirou suas lágrimas ao mar — livre, livre, livre"5, a população negra não estava dando vazão a um frenesi religioso. Essas pessoas sabiam exatamente o que queriam: mulheres e homens '(cid:9) W. E. B. Du Bois, Black Reconstruction inAmerica, cit., cap. 5. Ibidem, p. 122. Ibidem, p. 124. " Idem. Idem. 43 W. E. B. Du Bois, Darkwater, cit., p. 115. Idem. 3 vu.n.rinn~ arinêjavarn- pohitir terias, ansiavam votar e estavam dominados pelo desejo no campo, na beira das estradas ou no forte, sem esperar que iinponentes por escolas", construções fossem erguidas em tempos de guerra Dos 4 milhões de pessoas que comemoraram a emancipação, diversas, como Com frequência, os poderes mistificadores do racismo emanam de sua ló- o menino escravo Frederick Douglass, já haviam percebido muito antes que "o gica irracional e confusa. De acordo com a ideologia dominante, a população conhecimento torna uma criança inadequada para a escravidão" 7. E tal qual o negra era supostamente incapaz de progressos intelectuais. Afinal, essas pessoas senhor de Douglass, os ex-proprietários de escravos perceberam que "se você haviam sido propriedade, naturalmente inferiores quando comparadas ao epí- der a mão a um preto, ele vai pegar o braço. O estudo vai estragar até o melhor tome branco da humanidade. Mas, se fossem realmente inferiores em termos preto do mundo'''. Apesar da proibição de seu senhor Hugh, Frederick Douglass biológicos, as pessoas negras nunca teriam manifestado desejo nem capacidade continuou sua busca por conhecimento em segredo. Em pouco tempo, ele sabia de adquirir conhecimento. Portanto, não teria sido necessário proibi-las de escrever todas as palavras da cartilha Webster, aperfeiçoando sua habilidade por aprender. Na realidade, é claro, a população negra sempre demonstrou uma meio do estudo da Bíblia da família e de outros livros na clandestinidade da impaciência feroz no que se refere à aquisição de educação. noite. Claro, Douglass era um ser humano excepcional e se tornou um pen- O anseio por conhecimento sempre existiu. Já em 1787, a população negra sador, escritor e orador brilhante. Mas seu anseio por conhecimento não era, do estado de Massachusetts apresentou uma petição pelo direito de frequentar de forma alguma, incomum entre a população negra, que sempre manifestou as escolas livres de Boston". Depois que o requerimento foi negado, Prince uma ânsia profunda pelo saber. Era grande o número de pessoas escravas que Hall, que liderou essa iniciativa, abriu uma escola em sua própria casa'2. Talvez desejavam se tornar "inadequadas" para a angustiante existência que levavam. a demonstração mais impressionante dessa demanda antiga por educação tenha Nos anos 1930, ao ser entrevistada, a ex-escrava Jenny Proctor se lembrou da sido o trabalho de uma ex-escrava nascida na África. Em 1793, Lucy Terry cartilha Webster, que ela e as amigas estudaram sorrateiramente. Prince corajosamente requisitou uma reunião como conselho do recém-criado Nenhuma de nós tinha permissão para pegar um livro ou tentar aprender. Diziam Colégio Williams para Homens, que se recusou a admitir seu filho..Lamenta- que ficaríamos mais espertas do que eles se aprendêssemos alguma coisa, mas nós velmente, os preconceitos racistas eram tão fortes que a lógica e a eloquência circulávamos por ali, pegávamos aquela velha cartilha de Lucy Prince não foram suficientes para persuadir o conselho dessa escola de Webster de capa azul e a escondíamos até a noite e, então, acendíamos uma pequena tocha e estudávamos Williamstown. Ainda assim, ela defendeu com agressividade o desejo — e o aquela cartilha. Nós também decoramos o livro. Agora sei ler e escrever um pouco.9 direito — de seu povo por educação. Dois anos mais tarde, Lucy Terry Prince advogou, com sucesso, diante da mais alta instância do país, uma reivindicação O povo negro percebeu que os "quarenta acres e uma mula" da emancipação pela posse de terras e, de acordo com os registros disponíveis, continua sendo era um boato mal-intencionado. Teriam de lutar pela terra; teriam de lutar pelo a primeira mulher a se dirigir à Suprema Corte dos Estados Unidos". poder político. E, depois de séculos de privação educacional, reivindicariam com Foi também no ano de 1793 que uma ex-escrava que havia comprado a ardor o direito de satisfazer seu profundo desejo de aprender. Por isso, assim própria liberdade abriu uma escola na cidade de Nova York, conhecida como como suas irmãs e irmãos em todo o Sul, a população negra recentemente liberta Escola Katy Ferguson para Pobres. Seus alunos, que ela buscava em abrigos, de Memphis se reuniu e decidiu que a educação era sua maior prioridade. No vinham tanto da população negra quanto da branca (28 e 20, respectivamente") primeiro aniversário da Proclamação da Emancipação, exortaram docente:: do Norte a se apressarem e a "trazerem suas barracas, prontas para serem armadas io(cid:9) Herbert Aptheker, A Documentary History of the Negro People in the United &ates, v. I, cm., 6(cid:9) Ibidem, p. 123. p. 493. 7(cid:9) Fiederick Douglass, The Lif; and Times of Frederick Douglass, cit., p. 79. "(cid:9) Ibidem, p. 19. Idem. I2 Idem. Mel Watkins e Jay David (orgs.), 13(cid:9) Barbara Wertheimer, We Were 77sere, cit., p. 35-6. To Boa Black Woman, cit., p. 18. 14(cid:9) Gerda Lerner (org.), Black Women in White America, cit., p. 76.

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Angela Yvonne Davis é uma mulher à frente de seu tempo. E dizer raça e classe permite a Davis fazer uma análise profunda e refinada do modo pelo qual Wells, Crusade fir Justice: 7he Autobiography of Ida B. %Ur (org. 308. 41 W. E. B. Du Bois, Black Reconstruction in America, cit., p. 667.
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