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Cultura política e leituras do passado. Historiografia e ensino de história PDF

97 Pages·2007·38.671 MB·Portuguese
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Jw . Martha Abreu, Rachel Soihet e Rebeca Gontijo (organizadoras) Cultura política e leituras do passado Historiografia e ensino de história <2 FAPERJ CIVILIZAÇÃO BUASILLIKA hiiMlflçAu Carlos Chnqn» Filho de Amparo * PtnqulM do Estado do Rio da Janeiro Rio de Janeiro 2007 (fer U>3S3HíW iMjtf \S*9 COPYRIGHT © Martha Abreu, Rachel Soihet e Rebeca Gontijo (orgs.) Sumário CAPA Euelytt Grumacb |o £ o rfy w o PROJETO GRÁFICO Evelyn Grumacb e João de Souza Leite ilíSsÒIWTQ ^ hJ^ r /2 -0 0 ^ CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE AGRADECIMENTOS 9 SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ. C974 Cultura política e leituras do passado: historiografia e ensino de história'/ Martha Abreu, Rachel Soihet e Rebeca Gontijo (orgs.). - Rio APRESENTAÇÃO 11 de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. Inclui bibliografia PARTE I ISBN 978-85-200-0695-5 Política, história e memória 21 1. História - Estudo e ensino. 2 Ciência política - Estudo e ensino. 3. Política e cultura. 4. Cultura política. 5. Pesquisa histórica. I. Abreu, O presente do passado: as artes de Clio em tempos de memória 23 Martha. II. Soihet, Rachel, 1938- . III. Gontijo, Rebeca. Manoel Luiz Salgado Guimarães CDD - 907 06-4642 CDU - 930(072) Cultura política e cultura histórica no Estado Novo 43 Angela de Castro Gomes Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, armazenamento ou PARTE II transmissão de partes deste livro, através de quaisquer meios, sem prévia O Antigo Regime e a colonização em questão 65 autorização por escrito. Dos “Estados nacionais” ao “sentido da colonização”: história moderna e historiografia do Brasil colonial 67 Direitos desta edição adquiridos pela Maria Fernanda Bicalho EDITORA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA Um selo da EDITORA RECORD LTDA. Cultura política na dinâmica das redes imperiais portuguesas, Rua Argentina 171 - 20921-380 - Rio de Janeiro, RJ - Tel.: 2585-2000 séculos XVII e XVIII 89 PEDIDOS PELO REEMBOLSO POSTAL Maria de Fátima Silva Gouvêa/Marilia Nogueira dos Santos Caixa Postal 23.052 - Rio de Janeiro, RJ - 20922-970 Impresso no Brasil 07 Cultura política e cultura histórica no Estado Novo Angela de Castro Gomes* ‘Angela de Castro Gomes é pesquisadora sénior do CPDOC/FGV e professora titular de História do Brasil da UFF. Este texto é uma versão revista e condensada do artigo “A cultura histórica do Estado Novo”, publicado em Projeto História, São Paulo, n. 16, fev. 1998. m Como a literatura que trata da chamada era Vargas já consagrou, o Esta- do Novo (1937-45) tem uma marca fundamental: a ambiguidade. Por isso, J) estão fadados ao fracasso todos os esforços analíticos que procurem re­ duzir suas dinâmicas políticas a esquematismos simplistas e/ou mani- queístas. Nesse sentido, vale lembrar que se está falando de um curto espaço de tempo — são apenas oito anos — que demarcou a instalação de um modelo de Estado autoritário, muito centralizado politicamente, e cujas margens de intervencionismo sobre a sociedade se ampliaram de forma até então inusitada no país. Além disso, os anos do Estado Novo assinala-^ ram um período de grande modernização económica e social, o que é evidenciado pelo avanço da industrialização e urbanização, pela crescen­ te racionalização do aparelho burocrático do Estado e pela implementação de políticas sociais que abarcaram, entre outras, as áreas da regulamenta­ ção das relações de trabalho, da saúde pública, da educação e também da cultura, em sentido mais amplo. Afirmar essa grande e profunda transfor­ mação, contudo, não significa ignorar a convivência do “moderno” com o “tradicional”. Tampouco implica minimizar a violência física e simbóli­ ca do aparelho de Estado, facilmente detectadas pela ação da polícia po­ lítica, da censura, da permanência de padrões clientelistas na organização da administração pública e, também, da participação no poder do Estado dos setores agrários, ainda que não com a mesma força e prestígio. Tendo como pano de fundo essa marca de ambiguidade, este texto se propõe destacar uma importante inovação no campo da intervenção esta­ A tal ocorrida no período. Seu objetivo específico é recortar, dentre as várias iniciativas de políticas públicas do Estado Novo, um conjunto de medidas voltado para o que se pode considerar uma política cultural e, nela, do 4 5 CULTURA POLÍTICA E LEITURAS DO PASSADO que se chamou, na época, uma política voltada para “a recuperação do sinal de automática adesão às diretrizes ideológicas de um regime políti­ co, ou como prova de “cooptação”, entendendo-se por cooptação algo passado nacional brasileiro”. Trata-se, portanto, de uma dimensão espe­ próximo a uma transação mercantil de caráter utilitário; A questão do cífica de política pública num duplo sentido. Em primeiro lugar, porque é 0 envolvimento de intelectuais com regimes políticos — sobretudo autori­ destinada aolcampo da culturajenvolvendo um esforço político explícito tários, como no caso do Estado Novo — é algo bem mais complexo e voltado à conformação e à divulgação de normas e valores que deviam instigante. Para se compreender essa dinâmica e o sentido da categoria ser apreendidos pela sociedade como próprios à “identidade nacional cooptação, é relevante reconhecer o interesse e até a necessidade de um brasileira” que o Estado Novo queria fixar. Para tanto, a implementação regime de estabelecer contatos com o meio intelectual. Do mesmo modo, de tal política articulou setores especializados de uma burocracia estatal é interessante e necessário, para os intelectuais, participar de um novo (meios administrativos e recursos financeiros), com atores sociais relevantes espaço político que a eles se abre, oferecendo tanto oportunidades de tipo da sociedade, com destaque para os! intelectuais! financeiro como de prestígio sociocultural. Isto é, essa é uma relação de Em segundo lugar, porque essa política cultural é valiosa para se deli­ mitar um espaço específico de representação da nacionalidade, que tem mão dupla cheia de possibilidades diferenciadas, sendo fundamental atentar para vários pontos, tais como: o “lugar” do aparelho de Estado que de­ na leitura e valorização do “passado” sua chave mestra.1 Justamente por essa razão, o texto se propõe trabalhar com o conceito de “cultura histó­ manda a colaboração dos intelectuais; a política que está sendo imple­ mentada; e o tipo de participação solicitada. Nesses contatos, portanto, rica”, tomado por Le Goff de Bernard Guenée, para caracterizar “a rela­ uma variada gama de aproximações, distanciamentos e negociações pode ção que uma sociedade mantém com seu passado”.2 Nossa hipótese é que se estabelecer, fazendo com que intelectuais, mais ou menos simpáticos a tal conceito nos possibilita entender melhor o quê especificamente os ho­ um regime, possam ser cooptados, ou seja, possam negociar margens de mens consideram seu passado e que lugar (espaço e valor) lhe destinam liberdade, já que a aberta e radical oposição nunca é possível. em determinado momento. Nesse sentido, ele permite e mesmo exige a análise de um conjunto de iniciativas que abarca não só o conhecimento histórico em sentido mais estrito — quem são os historiadores, quais são CULTURA POLÍTICA, CULTURA HISTÓRIA E POLÍTICAS CULTURAIS as obras que, reconhecidamente, “narram” a história nacional e quais são seus eventos e personagens fundamentais — como o ultrapassa, abarcan­ A categoria cultura histórica mantém uma complexa relação, de um lado, do outras formas de expressão cultural que têm como referência o “pas­ com os esforços de construção de uma cultura política durante o Estado sado”, como a|literatura e o .folclore] por exemplo Novo; de outro, com o que pode ser delineado como o campo da histo­ A relação dos intelectuais com os setores da burocracia estatal estado- rit> riografia, nos anos 1930-40. novista está, portanto, na base operacional de construção e divulgação No que se refere às relações com o conceito de cultura política, pode- dessa política cultural. Dessa forma, é bom deixar claro que o envolvimento í>°; se assinalar que uma das razões mais apontadas para sua retomada pela desses intelectuais com o projeto político mais amplo do regime está sen­ história é o fato de permitir explicações/interpretações sobre o comporta­ do entendido de forma muito variada. Ficam afastadas, por premissa teó­ mento político de atores sociais, individuais e coletivos, privilegiando-se rica, as idéias de “manipulação” pelo Estado e de “alienação e traição” & * seu próprio ponto de vista: percepções, vivências, sensibilidades. Dentro dos intelectuais em função de ligações estabelecidas com as políticas go­ desses parâmetros, a categoria cultura política vem sendo entendida como vernamentais. Assim, não se está aqui trabalhando com a chave simplista ^ l “um sistema de representações, complexo e heterogéneo”, mas capaz de que interpreta a participação de intelectuais em políticas públicas como AJ*t si* 4 s v CULTURA POLÍTICA E LEITURAS DO PASSADO POLÍTICA, HISTÓRIA E MEMÓRIA permitir a compreensão dos sentidos que um determinado grupo (cujo conhecimento/saber histórico produzido em uma época, não havendo tamanho pode variar) atribui a uma dada realidade social, em determina­ sincronia necessária entre os dois. E, do mesmo modo como as culturas do momento e lugar. políticas são plurais, pode-se pensar em mais de uma cultura histórica Justamente por isso, a constituição de uma cultura política demanda convivendo, disputando, enfim, estabelecendo vários tipos de interlocução tempo, sendo um conceito que integra o universo de fenômenos políticos entre si e com a produção historiográfica em determinado período. de média e longa duração. Uma postulação que não exclui a existência de A construção de uma cultura política e de uma cultura histórica, por'! movimentos e de transformações em seu interior, mas que adverte para o conseguinte, vincula-se fortemente à implementação de políticas públi­ fato de eles não serem nem rápidos, nem contingentes, nem arbitrários, cas, em particular sob regimes autoritários, que investem de maneira cons­ havendo pontos mais resistentes e outros mais permeáveis. Dentro da ciente e eficiente na busca de sua legitimidade, mobilizando valores, crenças mesma chave, os historiadores insistem na diversidade de culturas polí­ e tradições da sociedade, com destaque para os que se referem a uma he­ ticas existentes em qualquer sociedade. Competindo entre si, com­ rança e passado histórico comuns.3 Nesse sentido, este texto está sugerin­ plementando-se, entrando em rota de colisão, sua multiplicidade não do que, em certas conjunturas políticas — como no caso da do Estado impediria, contudo, a possibilidade de emergência de uma cultura políti­ Novo —, há um esforço evidente para se articular iniciativas estatais de ca dominante em certas conjunturas específicas. Além disso, o processo política cultural com a conformação de uma^ cultura política nacional,'em de constituição de culturas políticas, e esse é o ponto, incorporaria sem­ que a leitura do passado ganha espaço priviJegià^õrmide o que sè~êstá pre uma leitura do passado — histórico, mítico ou ambos —, que conota chamando de cultura histórica é dimensão constitutiva e também estraté­ positiva ou negativamente períodos, personagens, eventos e textos re­ gica da cultura política. ferenciais. Essa leitura do passado também envolveria um “enredo” — uma Com esse mesmo cenário de fundo, a questão do conhecimento/saber narrativa — do próprio passado, podendo-se então conformar uma cul­ histórico tem que ser pensada em registro distinto. Isso porque sua carac- tura histórica articulada a uma cultura política. Estudar uma cultura terística e desenvolvimento articulam-se com outro conjunto complexo e política, sua formação e divulgação — quando, quem, através de que ins­ diversificado de variáveis, a saber: a situação do campo intelectual inter­ trumentos — seria igualmente entender “como” uma interpretação do nacional e nacional (debates, conceitos); a autonomia, sempre relativa, do passado (do presente e do futuro) foi produzida e consolidada através do campo intelectual em face do campo político; as características do regime tempo, integrando-se ao imaginário ou à memória coletiva de grupos so­ político (se democrático ou autoritário); os constrangimentos da conjun­ ciais, inclusive os nacionais. tura política, em que se deve ponderar a política cultural que estiver (se No que se refere às relaçõesjmtre culturajustórjca e historiografia, o estiver) sendo desenvolvida pelo Estado; e a força de atores, como os in­ aspecto mais evidente é o da amplitude do primeiro conceito, que vai além telectuais, em termos de participação e/ou oposição políticas. Portanto, „j< da historiografia definida como a história dos historiadores, de suas obras podemos considerar que, em certos períodos específicos, a presença e o ^ e disciplina. Tal constatação tem como desdobramento importante o impacto sociais da cultura histórica e do conhecimento histórico podem r'y fO'" fato de assinalar que os historiadores de ofício não detêm o monopólio ser crescentes, mas também podem ocorrer disjunções, sempre explicá­ , - £ ' do processo de constituição e propagação de uma cultura histórica, atuando veis por razões próprias a cada conjuntura nacional específica. " o fAa'O1 * interativamente com outros agentes que não são homens de seu métier. É o caso do Estado Novo no Brasil, quando não se verifica uma pro­ Há, por conseguinte, diferenças evidentes de amplitude e de natureza entre dução de textos históricos numericamente significativa, como várias aná­ o que se pode considerar cultura histórica e o que se pode entender por lises historiográficas têm apontado. Mas, ao mesmo tempo, em função de 4 8 4 9 CULTURA FOTtTTCA E LtlIURAS 1)0 PASSABCT POLlTICA, história e memória um bem construído e executado projeto ideológico do regime, difunde-se deter as principais posições no momento em que o processo se desenvol­ amplamente uma cultura política, centrada em uma visão de “nosso pas­ ve (o que pode ser até bem compreensível), são eles que, como profissio­ sado e de nossa história”, que se apropria e lê o estoque de obras acumu­ nais da história, se dedicam, a posteriori, a analisá-lo. Um trabalho que lado, associando-o a outros materiais e dando-lhe novo sentido e força.4 exige a compreensão de quem nele se envolveu mais diretamente; de quais Mas a complexidade da relação entre cultura histórica e historiografia foram os eventos selecionados por essa memória (com as hierarquias e as não fica por aí, porque o que está sendo aqui compreendido como passí­ omissões); de como e porque o foram e, finalmente, em que circunstâncias vel de ser designado como de interesse para o campo historiográfico ex­ e com que objetivos tal projeto se desenvolveu. Voltando ao exemplo do cede a análise da trajetória de historiadores, de obras históricas e da própria Estado Novo, pode-se dizer que, se o conhecimento histórico produzido disciplina (escolas, currículos). Ou seja, também se está considerando como por historiadores aí não floresceu tanto, floresceu uma política cultural objeto de conhecimento desse campo de estudo o tratamento que uma que consagrou uma cultura histórica pela apropriação não apenas de au­ questão ou uma categoria vem recebendo da literatura, ao longo de um tores e obras históricas, mas igualmente de um vasto conjunto de discur­ período, o que inclui tanto os balanços bibliográficos como o acompa­ sos e práticas que falava sobre o “povo” e a “nação”. Essa cultura histórica nhamento da trajetória de um conceito. iria marcar tanto a cultura política que o regime estava propondo para o Além dessas dimensões, ainda se pode considerar outra, que envolve­ país como igualmente a própria tradição acadêmica na área da história, ria, grosso modo e de forma certamente imprecisa, a análise de representa­ por tempo nada desprezível. O fato de o Estado Novo não ser um perío­ ções construídas por grupos sociais de dimensões variadas sobre “sua” do particularmente frutífero em termos de produção de obras históricas própria história. Uma operação que situa problemáticas como a da memó­ não o torna menos estratégico em termos da importância de uma cultura ria coletiva, da identidade (da nação, de instituições, de famílias e de gru­ histórica que então foi produzida, o que, aliás, qualifica a relação assimé­ pos mesmo não formalmente organizados) e das políticas (governamentais trica, mas fundamental, ocorrida entre ambas. ou não), visando a consolidação de um passado comum; visando o enqua­ Em busca de tocar nesse conjunto de questões, mas sem querer esgotá- dramento de uma memória de grupo, especialmente se for um grupo naci­ lo, este texto acompanha algumas iniciativas da política cultural estado- onal. O trabalho de investigar como, quem e com que recursos de poder uma novista de valorização do “passado nacional”/Tal “passado” tinha tanto dada cultura histórica é conformada, é muito difícil, mas a tentativa pode o sentido de uma tradição que marcava a cultura popular como a forma ser útil, pois culturas históricas costumam marcar uma memória nacional, de um discurso histórico datado, em que a figura do historiador e suas estando, freqúentemente, vinculadas a culturas políticas e a políticas cultu­ obras deviam ser recuperadas7o que se postulava, em sentido amplo, era rais. Dessa forma, esse é um esforço de nítido interesse historiográfico, no uma grande harmonia entre essas duas vertentes do “passado nacional”, sentido aqui explicitado. Assim, se a identidade de qualquer grupo social o que não excluía tensões e choques advindos de uma bricolage difícil. (não se faz sem recurso a “seu” passado, e se esse processo é dinâmico, mas Contudo, o que também fica evidente, sendo o objetivo mais específico não arbitrário, torna-se matéria de particular valor para o historiador com­ deste texto demonstrar, é a existência de um esforço que visava a alargar preender as leituras de passado que as memórias coletivas empreendem, o “lugar” do conhecimento histórico no interior da própria cultura histó­ sobretudo se estão relacionadas a políticas governamentais explicitamente rica, e desta, no interior da cultura política proposta pelo Estado Novo. dirigidas ao enquadramento da memória nacional.5 Esses intentos podem ser observados, por exemplo, quer através do esta­ belecimento de subsídios a instituições históricas e a eventos comemora­ Por conseguinte, se os historiadores estão envolvidos, em graus muito tivos, quer através do apoio à publicação e à divulgação de textos definidos variados, com tais construções memorialísticas, podendo, inclusive, não s 1 5 o CULTURA POLlTICA E LEITURAS DO PASSADO POLlTICA, HISTÓRIA E MEMÓRIA como de interesse histórico. A principal fonte utilizada para essa pesquisa do que chamava “homogeneidade nacional” em nosso país. Moder­ foi a revista de estudos brasileiros Cultura Política. Dirigida por Almir de namente, segundo a revista, esta “homogeneidade” recebia a designação Andrade e circulando mensalmente, entre 1941 e 1945, era uma publica­ de “espírito” ou “consciência” nacional. ção do poderoso Departamento de Imprensa e Propaganda, o DIP. Nela, A dificuldade da produção dessa consciência no Brasil se devia, inclu­ toda nossa atenção estará concentrada no material que compõe sua últi­ sive, ao fato de a “nacionalidade” ter sido reduzida a um simples “grémio ma seção, intitulada “Brasil social, intelectual e artístico”.6 político”, mantido por “contrato de interesses”, concepção utilitária em “completa contradição com o conceito orgânico, racional e cristão” que herdamos de “nossos maiores”.9 Alcrítica ao liberalismo lé evidente, sen­ UMA POLlTICA CULTURAL DE RECUPERAÇÃO DO PASSADO NACIONAL do a condução política empreendida por nossas elites a responsável pelo “atraso” vivenciado pelo país. Assim, essa concepção equivocada de nacio-' No editorial de Rosário Fusco apresentando a seção “Brasil social, inte­ nalidade, que, bem entendido, se desviava de nossa “herança”, respondia lectual e artístico”, a promessa era a de que as páginas que se seguiriam pela impossibilidade de produção de uma “consciência coletiva” que pu­ refletiriam sempre o “espetáculo extraordinário de renascimento” das desse orientar os rumos da política e, em o fazendo, desencadear suas capacidades criadoras dos brasileiros em todas as esferas.7 Logo a seguir, potencialidades estimuladoras. em outro texto, a razão precípua desse fato é explicada nos seguintes O “espírito nacional” de um país podia muito bem ser encontrado/ termos: criado — a idéia é sempre plena dessa ambiguidade — nos “costumes da tradição, da religião, da raça, da língua e da memória do passado” do povo. Hoje, podemos afirmar que existe uma política brasileira que é uma au­ O acordo entre ordem política e social, o equilíbrio entre forças dirigen­ têntica expressão do nosso espírito nacional. Nesse espírito social ajusta- tes e dirigidas que o Estado Novo produzia, advinha fundamentalmente ram-se as necessidades do nosso presente às conquistas do nosso passado, dessa adequação cultural profunda, causa e produto de sua legitimidade. para formarem esta permissão tríplice da política, que nos concede agir, Toda a política do pós-37 era uma reação ao “materialismo” anterior que, pensar e criar o Brasil [...]* segundo os editoriais, romantizava o futuro, hipervalorizava o presente e Como fica claro, o cerne da reflexão que se encaminhava e sustentava condenava o passado.10 Havia, por parte de nossas elites políticas, um erro “original” no tratamento dos “tempos”, o que estava sendo sanado pelo estava contido na adequação entre “política” e “espírito da nacionalida­ Estado Novo. Ele enfrentava os problemas do presente sem idealizações de”, ou seja, conseguira-se finalmente delinear esse “espírito nacional”, o do futuro, mas com a certeza de produzi-lo melhor exatamente porque que possibilitava o encontro da harmonia social. Não só nesse como em não se negava a refletir sobre o passado, buscando-o como um “manancial inúmeros outros artigos fica claro que tal categoria não devia ser entendi­ de inspiração”. da como uma “entidade metafísica” ou alguma forma de “sentimento es­ ! Espírito nacional e passado eram categorias independentes, devendo pontâneo transcendente”, desde sempre existente e pronto a revelar-se aos ser examinadas com extrema atenção. Em primeiro lugar, salta a idéia de brasileiros. O “espírito da nacionalidade” era um construto, ao mesmo que o Brasil era um país que condenava “seu passado” porque o temia. tempo buscado e criado por nossa intelectualidade. Tanto que o artigo Não temer o passado, portanto, transformava-se numa espécie de primei­ citado se inicia com uma menção a Joaquim Nabuco e a um de seus escri­ ro mandamento para o Estado Novo. Isso se testemunhava nas falas do tos à época da campanha abolicionista, diagnosticando justamente a falta 5 5 2 5 3 CULTURA POLlTICA E LEITURAS DO PASSADO POLlTICA. HISTÓRIA E MEMÓRIA próprio presidente, que não perdia a oportunidade de atar passado e pre­ do”, de interpretar uma realidade social, mas não pela constatação sim­ sente, mostrando que, “mesmo em plena vigência das lutas internas mais ples de algo que existe — um destino, um tempo cíclico —, e sim por um espetaculares” vividas no país, conseguíamos manter os princípios huma­ tipo de aproximação — pelo uso de um método — que consiste em se nos e cristãos da nacionalidade. Portanto, “o passado” aparece como uma “chegar ao real por trás”, a partir de seu “passado”. 0 presente não é as­ espécie de fantasma a ser enfrentado; como condição para deixar de as­ sim o começo do futuro, mas o último momento do passado, numa pers- sombrar e poluir o “espírito nacional”. As razões desse temor não são muito pectiva evolucionista, mas não progressivista.12 Finalmente, em terceiro bem equacionadas, mas as indicações são tanto de que ele advinha de um lugar, essa postulação de “passado” não é unitária. Se o “espírito nacio­ real desconhecimento de nossas origens como de um sentimento de infe­ nal” está nos costumes, na raça, na língua e na memória, devendo todos rioridade que precisavam ser definitivamente exorcizados. ser recuperados e valorizados, há duas concepções de passado sendo pro­ Em segundo lugar, “o passado” é postulado como um “manancial de postas e convivendo nesse discurso: a de um passado ligado à cultura inspiração”. Mas não se trata de acreditar em retorno nem em uma con­ popular e que, manifestando-se através de um conjunto de tradições, convi­ cepção de passado (história) como “mestre” do presente e futuro. Essa ve com o presente, sendo a-histórico e referido a uma idéia de tempo não concepção ficava comprometida pela assertiva anterior, que indicava uma datado; e a de um passado histórico, ligado a uma idéia de tempo linear, tradição de deméritos bem maior que a de méritos. É claro que sempre se cronológico, datado e referido à memória de fatos e personagens únicos, poderia argumentar que se aprende também com erros, com os maus exem­ existentes numa sucessão à qual é vedado conviver com o presente. plos, mas não seria esse propriamente o objetivo da política cultural do Esses dois sentidos de passado e suas formas de relação com o presen­ Estado Novo em seu esforço de “recuperação do passado”. A necessidade te e o futuro convergem para uma visão de totalidade que emerge de for­ do passado, sua inscrição como “fonte” da nacionalidade e, por conse­ ma fundamental na organização da própria seção “Brasil social, intelectual guinte, como bússola da política, advinha muito mais da orientação que e artístico”. Nela há espaços reservados para cada uma dessas dimensões: os ideólogos do regime sustentavam de que não havia governos bons ou “folclore” ao lado de “história”; costumes regionais ao lado de páginas maus — não havia modelos universais —, e sim governos adequados ou do passado nacional. Dessa forma, o esforço de “recuperação do passa­ não a uma realidade singular. Ajperspectiva historicista aí assumida impu­ do” não hierarquizava um desses sentidos em relação ao outro, mas os nha uma valorização do “passado”, única “realidade” capaz de preencher qualificava, estabelecendo operações específicas em cada caso. Tanto os com respostas verossímeis tal exigência de “adequação”. Também fica “conteúdos” vinculados às tradições populares quanto à história do Bra­ evidente que essa demanda implicava uma leitura positiva do “passado”, sil precisavam ser trabalhados de forma adequada, sem preconceitos de o que igualmente não poderia resvalar para excessos idealizadores que a inferioridade ou de superioridade ufanista, ambos prejudiciais ao “espíri­ política “realista” do Estado Novo igualmente não comportava. to nacional”. O “lugar do passado” nessa construção discursiva é crucial e, nesse “passado”, o “lugar da história” é extremamente relevante, como A nova política do Brasil não inspira outra coisa senão a união da cultura a argumentação de Cultura Política pretende demonstrar.13 com a vida. Realista, seus postulados se firmam em bases de uma seguran­ ça que, existindo no presente, vai afirmar seu ponto de apoio nos alicer­ ces do passado.11 0 PASSADO NACIONAL: SENTIDO E LUGAR DA HISTÓRIA A operação intelectual não deixa dúvidas. Trata-se de buscar um “senti- Nos artigos de Cultura Política, “interpretar” a nossa história era tarefa 5 4 1 POLlTICA, HISTÓRIA E MEMÓRIA CULTURA POLlTICA E LEITURAS DO PASSADO contrário. Assim, o que os textos dos editoriais da revista parecem indicar fundamental para nela se encontrar um “sentido” da nacionalidade, algo é uma espécie de dupla operação. De um lado, reserva-se o “passado tra-\ postulado como muito distante de idéias de utopia, fatalismo ou imobilismo dicional da cultura popular” para uma concepção espacial dos fatos de T presentes em regimes políticos anteriores. Esse “sentido” vai ser identifi­ “nossa evolução social”, organizada por regiões geográficas, com seus cado no processo de centralização polídca que estaria presente na evolu­ costumes religiosos, alimentares, musicais. Portanto, não se tratava de ção social do Brasil. Iniciada com Tomé de Sousa, no século XVI, “nossa expulsar ou minimizar essa percepção geográfica, tão marcante, mas sim evolução” ganharia contornos contemporâneos com Getúlio Vargas e o de circunscrevê-la e/ou, principalmente, de abrir campo para outro tipo Estado Novo. A “vocação” centralizadora que o estudo da história do Brasil > de concepção. De outro lado, o “passado histórico brasileiro” precisava demonstrava confirmava-se também em todas as experiências fracassadas libertar-se desta preeminência “geográfica”, apontada como aquela que de descentralização, quer fossem a das capitanias hereditárias, quer fos­ procurava derivar nossa evolução de fatores “naturais”, como se eles fos­ sem a do hiperfederalismo da designada República “Velha”. sem capazes de determinar completamente as características dos “homens Nada surpreendente, considerando-se a proposta política estadono- de uma raça”, de um “povo”. vista. O que torna essa leitura da “evolução histórica brasileira” mais in­ Embora numa primeira leitura a linha de argumentação pareça indi­ teressante é a forma como ela se associa a uma concepção de fazer história car tão-somente uma atualização do debate entre duas vertentes datadas que ataca uma “outra”, considerada ainda persistente e resistente. Isso de fins do século XIX — a que defendia a determinação do meio/clima, e porque, para Cultura Política, aqueles que sempre defenderam a descen­ a que insistia na centralidade da questão “racial” —, o que ocorria não tralização política o fizeram esgrimindo o forte argumento da extensão era tão simples. Em primeiro lugar, porque os argumentos “geográficos” geográfica do país, indicador tanto de sua grandeza quanto de suas difi­ continuavam coexistindo, de forma muito própria, com os “históricos”; culdades de alcançar integração e harmonia. Uma pequena citação pode em segundo lugar porque, quando se falava em “raça”, não mais se mobi­ ser pedagógica: lizavam os mesmos referenciais biológicos próprios ao pensamento de fins do século XIX e início do XX. A palavra “raça” era a mesma, mas, no Imbuídos das teorias sociológicas da época [...] eles [os partidários da descentralização] queriam [...] fazer tudo derivar dos chamados fatores novo contexto, estava sendo preenchida por conteúdos socioculturais e internos [...]. Entretanto, nós sabemos [...], a geografia não é tudo, sendo, não tanto por conteúdos étnicos. Por essa razão, talvez, os dois sentidos antes de mais nada, incapaz de fazer modificar a natureza do homem de do “passado” e do “tempo” — um eminentemente histórico e cronológi­ uma determinada raça.14 co e outro não datado e “vivo” no presente — constituíssem as faces de uma mesma totalidade, razão pela qual ela precisava ser montada com tanta Dessa forma, embora o djscursojEt revista procurasse construir uma his­ eficiência e cuidado. tória política do Brasil marcada basicamente pela continuidade da centra­ Do ponto de vista que nos interessa destacar, se o presente permanece lização, própria do pensamento conservador que valoriza a autoridade, ancorado no passado como tradição, durante os anos do Estado Novo se ele não excluía rupturas nesse processo, responsabilizando uma concep­ faz um esforço consciente e avultado para redescobrir esse “passado his­ ção mais “espacial” de nossa história por tais desvios. Por conseguinte, o tórico” enquanto realidade fundamental para a compreensão da nação. elemento de continuidade com a linha da tradiçâo/centralização, no caso Um passado que não podia, como a tradição, coexistir com o presente, da construção de um discurso histórico, não impedia a afirmação de uma mas que, exatamente por isso, era fonte de explicação para o novo. ordenação mais temporal do que espacial dos acontecimentos, antes pelo 5 7 5 6

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