Carlos elson Coutinho i CULTURA ES OCIEDADE NO BRASIL E SAIOS SOBRE IDEIAS EF ORMAS 111 algo mais do que as leis da escrita ou a Uma das principais características que marca a produção intelectual de Carlos coerência do discurso: formas e ideias Nelson Coutinho é a vinculação de suas são também expressão condensada de reflexões teóricas (a crítica filosófica e constelações sociais, meios privilegiados Literária) e a análise histórico-política de reproduzir espiritualmente as (especialmente da fonnação social contradições reais e, ao mesmo tempo, brasileira) às lutas sociais do povo de propor um modo novo de enfrentá brasileiro. Essa vinculação é também las e superá-las." marcante em Cultura e sociedade no O processo de constituição da formação Brasil., uma reunião de diversos social brasileira é outro aspecto que ensaios, escritos ao longo de mais de 40 anos - o primeiro deles data de percorre todo o Livro, principal.mente ao 1965 e o mais recente é de 2006. analisar as transformações sócio políticas ocorridas ao longo da história São vários os aspectos que trazem unidade a este livro: a perspectiva brasileira, marcadas pela manutenção marxista adotada na análise dos no padrão de dominação de classe, que diferentes temas; a preocupação em são caracterizadas pelo autor com as compreender os diferentes aspectos da categorias de "via-prussiana" ou dinâmica da formação social brasileira, "revolução passiva". É a partir dessa e seus reflexos tanto na cultura - perspectiva que Carlos Nelson Coutinho através do trato de romancistas busca compreender o significado da brasileiros e também do papel do produção teórico-cultural e o legado de intelectual em uma sociedade como a autores como Graciliano Ramos, Lima brasileira - quanto na anáJjse política, Barreto, Jorge Amado, Caio Prado ao traçar reflexões sobre três Junior, Florestan Fernandes e Octavio importantes intérpretes marxistas da Ianni ao terem como tema a realidade reaJjdade brasileira. brasileira, seja na construção de obras literárias, seja na construção de A compreensão de que forma e reflexões teóricas. A unidade entre esses conteúdo constituem uma unidade, diferentes autores e temas trabalhados assim como a de que a sociedade deve pode ser encontrada na constante ser sempre analisada a partir do ponto preocupação que todos eles nutriam: a de vista da totalidade é algo presente ao de não apenas interpretar a realidade, longo de todo o livro. Nesse sentido, mas também de transformá-la. pode-se perceber a marcada influência de dois pensadores marxistas: Gyõrgy Lukács e Antonio Cramsci, "que nos ensinam a ver nas formas e nas ideias Copyright C 1990, Carlos Nelson Coutinho Copyrighc dcsca edição© 2011, F.dicora Expressão Popular ltda. Revisão: Maria Ekti11t Andrtoti Lmagcm da capa: lasar Stgall Paistzgnn br11Jilnr11 (1925, pintura a óko SQbrt ufa, 64 x 54 cm) AcmJO do Museu LAsar StgaU - !BRAM/MinC Projeto da capa: Z4p Design Projeto grilico e diagramação: Krits Estúdio Impressão: Cromouu Dados Internacionais de catalogação-na-Publicação (CIP) Coutinho, carlos Nelson, 1943- C871 c Cultura e sociedade no Brasil: ensaios sobre idéias e formas I Gar1os Nelson Coutinho. --4.ed. --São Paulo: Expressão Popular, 2011. 264p. Indexado em GeoDados -http://www.geodados.uem.br ISSN 978-85-n 43-187-8 1. Cultura -Brasil. 2. Sociedade - Brasil. 1. Titulo. coo 301 CDU 316.7 catalogação na Publicação: Eliane M. S. Jovanovich CRB 9/1250 Para Todos os dirci1os reservados. Nenhuma parre desce livro pode ser utiliiada Learidro Konder, ou reprodui.ida sem a au1orizaçáo da editora. lsnaia Veiga Sariema, Roberro Gabriel Dias (t), Nova cdiçáo ampliada Edição revista e acualiiada de acordo com a nova regra onogrífica. José Paulo Netto e Dariiel Tourinho Peres - l • edição: Oficina do Livro, 1990 2ª e 3• edições: DP&A, 2002 e 2005 com quem tenho conversado 4• cd.içáo: Expressão Popular, outubro de 2011 sobre muitas coisas, até mesmo sobre estes ensaios. EDITORA EXPRESSÃO POPULAR LTDA Rua Abolição, 201 - Bela Vista CEP O1 319-01O Sáo Paulo, SP Fone: (11) 3105-9500 I 3522-7516- Fax: (11) 3112-0941 [email protected] www.cxprcssaopopular.com.br Sumário PREFÁCIO ••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••..•••••••••••• 9 Os INTELECTUAIS E A ORGANIZAÇÃO DA CULTURA •••••••••••••••••••••••••.••. 13 (ULTURA E SOCIEDADE NO BRASIL ................................................. 35 Dois MOMENTOS BRASILEIROS DA ESCOLA OE FRANKFURT .................... 73 0 SIGNIFICADO DE LIMA BARRETO EM NOSSA LITERATURA ••••.••••••••.••••• 89 GRACILIANO RAMOS ................................................................ 141 0 POVO NA LITERATURA DE JORGE AMADO ................................... 195 A IMAGEM DO BRASIL NA OBRA DE ÚIO PRADO JúNIOR ................. 201 MARXISMO E "IMAGEM DO BRASIL" EM FLORESTAN FERNANDES ........ 221 0 LEGADO DE ÜCTAVIO IANNI ................................................... 241 NOTA BIBLIOGRÁFICA ................................................................ 255 ÍNDICE ONOMÁSTICO ......................................................................... 257 Prefácio Reúno nesta coletânea os principais ensaios que escrevi, ao lon go de ma.is de 40 anos, sobre as relações entre cultura e sociedade no Brasil. Durante um tão extenso período de tempo, certamente se alteraram tanto o âmbito de meus interesses temáticos quanto, muito provavelmente, alguns de meus juízos estéticos e ideoló gicos sobre figuras e movimentos da cultura brasileira. Contudo, não proporia uma leirura conjunta destes ensaios se não estivesse convencido de que eles possuem uma unidade substancial, tanto de método como de conteúdo. Embora o uso de categorias gramscianas se acentue nos ensaios mais recentes, matizando e requalificando a onodoxia lukacsiana facilmente percepáveJ nos mais antigos (sobretudo os de crítica literária), a unidade de método me parece residir num pressuposto comum a todos eles, ou seja: só é possível entender plenamente os fenômenos artísticos e ideológicos quando estes aparecem relacionados dialeticamente com a totalidade social da qual são, simultaneamence, expressões e momentos constitutivos. Enquanto marxistas, Lukács e Gramsci nos ensinam a ver nas formas e nas ideias algo mais do que as leis da escrita ou a coerência do discurso: formas e ideias são também expressão condensada de constelações sociais, meios privilegiados de reproduzir espiritualmente as con tradições reais e, ao mesmo tempo, de propor um modo novo de enfrentá-las e superá-las. Os ensaios desca coletânea, ainda que busquem respeitar a especificidade e a auronomia relativa das produções culturais que abordam, estão todos dirigidos para um objetivo principal: o de desvendar a problemática social que tais produções concribuem para elevar à consciência ou à autocons ciência. No plano do conteúdo, por oucro lado, penso haver um fio vermelho que atravessa os ensaios, dando-lhes relariva unidade: em todos eles, empenho-me sempre por demonstrar que o problema CuLTUM r SOO!OADf NO BMSll 11 central da cultura brasileira - ou seja, cm termos gramscianos, a cultura democrática e nacional-popular no Brasil sem recorrer aos escassa densidade nacional-popular de seus produtos - tem sua melhores momentos do patrimônio culcural universal. gênese na ausência de um "grande mundo" democrático cm nossa 2) Os seis ensaios scguinccs abordam momentos privilegiados sociedade (para repetir a expressão lukacsiana que utilli:o no ~ da construção daquilo que poderíamos chamar de "imagem saio sobre Graciliano Ramos). a~cia que resulta dos processos alternativa do Brasil". Os dedicados a Uma Barreto, Gracilia.no de tran.Sformaçáo pelo alto ("via prussiana", "revolução passiva") Ramos e Jorge Amado, além de analisa.rcm algumas determinações que marcaram a história brasileira, impedindo ou dificultando .. gerais de nossa evolução literária, centam mostrar como a gran a participação popular criadora nas vá.rias esferas do nosso ser deza das formas romanescas criadas pelos tr~ escritores resulta, social. A principal consequência dC$$a constelação s6cio-hist6rica cm grande pane, do fato de que tais formas simbolizam não s6 no plano da vida cultural brasileira foi a p~ndcrância de uma os im humanos rovocados r esse moddo rvcrso de cultura "ornamental", elitista. que muito SO:Utou a construção modcrninção, ~caro os imp oricn os no senti o de wm efetiva consciência crítica nacional-popular entre nós. Essa da criação de modos altcrnaâvos de vida e de organização social. preponderância, contudo, jamais signiScou monopólio: muitos Nesse mesmo eixo é que se situam os ensaios sobre Caio Prado dos ensaios aqui reunidos visam precisamente a resgatar figuras Júnior, Florcstan Fernandes e Octávio lanni: o objetivo central que se colocaram contra a corrente dominante. empenhando-se das obras dos tt~ escritores paulistas me pa.rccc ser a compreensão ,. por revdar cm suas obras as graves distorções humanas e sociais conceicual dessa via "não clássica" de transição para o capicalismo, ~cradas cm nosso país pela "via prussiana•. Ao 67.Cfêm isso, tais bem como de suas ddctérias consequências no presente brasileiro. guras criaram ao mesmo tempo as bases para o florescimento Embora utilium diferentes meios cognoscitivos (formas simbó de uma arte e de uma consciência social alternativas. Também licas ou conc.citos científicos), as imagens do Brasil construídas busco indicar, cm alguns ensaios, a emergência das novas condi por Lima Barreto, Graciliano Ramos, Jorge A.ma.do, Caio Prado ções sociais que tomaram possfvd boje dcvar C$$a cultura crítica Jr., Florcsta.n Fernandes e Octávio lanni convergem num ponto âlternativa à condição de cultura hcgcmônica - o que nada tem a essencial: daboram uma dura critica da moderniza ~o " russiana" ver, é importante sublinhar, com cultura "única• ou "oficial". ou "passiva e que mos vitimas e, ao mesmo tempo, propõem Ao reunir aqui os ensaios, preferi dispô-los não na ordem cro o esboço de uma alternativa nacional-popular e democrática para nol6gica cm que foram escritos, mas segundo dois eixos temáticos o nosso país. principais: Embora não tenha alterado csscncialmcncc meu modo de 1) Os dois primeiros, sobretudo o que dá óculo à colcclnca, têm pensar durante as quatro d6cadas que separam o ensaio sobre r.a:: como meta discutir os problemas gerais da relação coere cultura e Graciliano Ramos daqudc sobre Occivio lanni - continuo, mesmo sociedade no Brasil, examinando, cm particular, o modo com o risco de me convcrtct num "animal cm extinção", a me de formação de nossa incclocrualidadc. FJcs fornecem, cena ma considerar marxista -, modifiquei muitas das minhas posições: neira, o cnqUãdtãmcnto hiSc6rico-<:onccitual incroduc6rio para os afinal, para n6s, muxistas, o único modo de não sermos "animais de.mais textos. O terceiro, dedicado à recepção brasileira da Escola cm extinção" é assumirmos plenamente a condição de "animais de Frankfurt, permite-me ilustrar, com um exemplo concreco, uma cm mutação". Foi grande, assim, a tentação de rescrever os en tese que defendo ao longo de todo o livro, cm particular nos dois saios mais antigos, fu..cndo-os coincidir integralmente com meus primeiros cnsa.ios: a de que é impossfvd consttuir uma verdadeira atuais pontos de vista. Contudo, salvo no caso de umas poucas 12 CAia.os NWON CounNHO Os intelectuais e a organização revisões estilísticas e da supressão de uma formulação qwc hoje da cultura julgo claramente equivocada (isto é, a caracterização do Brasil como "scmifcudal", contida na primeira versão do ensaio sobre Graciliano), preferi consc.rvar os ensaios cm sua forma original, mesmo quando eles &Iam de coisas hoje tão fora de moda, como / "realismo socialista". Tomei a mesma decisão no que se refere 1 , à presença de formulações semelhantes cm d.ifetenres ensaios: suprimi-las talvez evita.sse repetições, mas com o risco de, muicas Gostaria de começar com úma questão terminológica. O vezes, empobrecer ou tornar obscura a argumentação de cada en título que me foi sugerido para esta exposição, "Os intelectuais saio tomado isoladamente. Além do mais, isso impediria o leitor e a organização da culrura", é - como se sabe - o título de uma de julgar se, cm tais possíveis repetições, já não estarão contidos coletânea de cscrioos do cárcere de Antonio Gramsci, que reúne alguns indícios daquela necessária mutação a que me referi. É o precisamente os textos relativos à questão dos intelccrua.is e da que sinceramente espero: relação deles com os mecanismos de reprodução culrural da rea lidade (sistema educacional, jonWismo etc.). Mas esse átulo náo é do próprio Gramsci. úzrlos N~lson Coutinho Os famosos Culnnos átJ cárc~ foram publicados a partir Rio de Janeiro, kvcreiro de 2011 de 1948, sob a orientação editorial de Fel.ice Platone e Palmiro Toglian:i, náo na ordem cm que haviam sido escritos, mas agru pados segundo grandes temas, divididos cm seis volumes, cujos . ' cículos foram escolhidos pelos próprios cdirores'. Pois bem: no ~- caso que nos interessa aqui, não só o título não é de Gramsci, como também não é muito frequente em suas notas a expressão "organiz.ação da culrura". Mas isso náo quer dizer que ela seja infiel ao espírito da reflexão gramsciana. AD contrário: cem um forte vínculo com o conceito de "sociedade civil", que, como se sabe, é um conceito central na obra do fundador do Panido Comunista Italiano. Em certo sentido, podemos mesmo dizer que, sem uma "organização da cultura", não existe sociedade civil no sentido gramsciano da expressão. Vamos resumir alguns tópicos conhecidos. O maior mérito A primeira edição claa colcdnca (Belo HorU.oncc, Oticína do Livro, 1990) oonlinha um de Gramsci consiste cm ter "ampliado" a teoria marxista clássica cnsajosobre "A rca:pç'odc Gramsd no Brasil'", agora induldo, numa vcnioan. .l inda, como apêndice ao meu livro Gn.msd Um m.M s.brr - ,_-mJJo polida (Rio de Janeiro, Ovili:zaçlo Brasilcira, 1999, p. 279-305). En:a o~udi.çk>da E:q>rcmo PopubT, Somcncc cm 1975, sob os cuidados cdi.corials de Valentino Gcmcana, foi publica4a além de reproduzir o cn.salo sobre. Florcstan Fum.ncles (íá conóclo nas duas edições da (Qtuuúmí tk/ ellJ'mr, Turim, Eliuudi) uma cd~ a\tic:a, que não apcnu apttSC1112 os colmnca pubUadas pda edicora DPM. !Uo ~)~iro, 2000 e 2005,), i.nd.ul ainda c:adcmos na ordem cm que foram csc:rit.os, mas fornece cambttn as ~tcs dos ccxcos os ensaios sobre Jorge Amado e Oetavio laruü. e recolhe na lntqva oc aponcamcncos de G~. 14 C.W.0S NE1..50N COUTINHO Cun·uM E SOCRDADE NO 811AS1l 15 1 r do Estado. Ele viu que, com a intensificação dos p~ de e consenso para poderem funcionar. Papel decisivo, na c.onquista socialização da política, com algo que de chama algumas vezes dessa legitimidade por um Estado, digamos, de tipo absolutista, de "estandardização" dos comportamentos humanos gerada pela vinha da ideologia religiosa: a Igreja era um "aparel.ho ideológico pressão do desenvolvimento capitalista, surge wna esfera social de Estado", fundamental na época do absolutismo. Basta pensar, nova, dotada de leis e de funções relativamente autônomas e cs por exemplo, na ccoria do "direito divino" dos reis, da origem pccí6cas e - o que nem sempre é observado -de wna dimensão di\'.Ílla da soberania do monarca. material própria. ~essa esfc.ra que de vai chamar de "sociedade Não usei por acaso o termo de Louis Althusscr, "aparelhos civil", introduzindo uma novidade terminológica com relação a ideológicos de Estado", que a meu ver não é sinônimo do termo Marx e Engels (para os quais "sociedade civil .. é sinônimo de rela gramsciano "aparelhos 'privados' de hegemonia", com o qual ções de produção econômicas). mas retomando alguns aspectos do Gramsci denomina os organismos da sociedade civil. Não quero conceito tal como aparece cm Hegel (que introduz.ia na sociedade aqui entrar na discussão sobre o valor do conceito de Althusser, civil as "corporações", isto é, associ.açócs político-econômicas que, mas apenas me servir dde para indicar uma diferença histórica. de cerco modo, podem ser vistas como formas primitivas dos Na época absolutista. é justo dizer que a Igreja, por exemplo, é modernos sindicatos). um "aparelho ideológico de Estado". E por quê? Porque havia Nessa nova situação, ou seja. nas fom>açócs sociais que Gramsci uma unidade indissolúvd entre Estado e Igreja: a Igreja não se . chama de "ocidentais" por contraste com as "orientais" e mais pri colocava como algo "privado,, cm face do Estado c.omo entidade ' mitivas, o Estado - os mccânismos de poder- não se limita mais "pública. .. A ideologia que da veiculava (e não se deve esquecer aos institutos de dominação direta, aos mecanismos de cocrçáo; cm que da.controlava todo o sistema escolar) não tinha nenhuma suma, ao que Gramsci chama ora de "Estado cm sentido estrito", autonomia cm relação ao Estado propriamente dito. O Estado ora de "sociedade política", e que de identifica com o governo, impunha a sua ideologia de modo tão coercitivo como impunha a \ com a burocracia executiva, com os aparelhos policial-militares, sua dominação cm geral: quem discordava dessa ideologia cometia com os organismos repressivos cm geral. wn crime contra o Estado. É daro que tais institutos continuam a existir nas sociedades Com as revoluções democrático-burguesas, com o triunfo do "ocidentais" mais complexas; continuam a ter papel fundamental liberalismo, acontece um fato novo: o que poderíamos chamar de na reprodução da sociedade segundo os intcrcSSCS de uma classe laiciz.açáo do Estado. As instâncias ideológicas de legitimação pas dominante. Mas, ao lado ddes, Gramsci ve a emergencia da sam a ser algo "privado" cm relação ao "público": o Estado já não "sociedade civil". E o que especifica essa sociedade civil é o &to impõe uma religião, ou uma visão do mundo cm geral; a rcligiáo de, através dela, ocorrerem rdaçõcs sociais de direção político deve conquistar consci~ncias, deve confrontar-se, entrar em luta ideológica, de hegemonia, que - por assim dizer-"completam" a contra outras ideologias, contra outras visões do mundo. Criam-se dominação estatal, a coerção, assegurando também o consmso dos assim, enquanto portadores materiais dessas visões de mundo, o dominados (ou assegurando tal consenso, ou hegemonia, para as que Gramsci chama de •aparelhos 'privados' de hegemonia". Por forças que querem destruir a vdha dominação). um lado, velhos "aparelhos ideológicos de Estado" (como as igrejas, Pode-se observar que também as formas anteriores de domi as universidades) tornam-se autônomos, passam a f.u.cr parte da nação de classe, as formas abertamente ditatora.i.s ou autoritárias, "sociedade civil"; e, por outro, com a própria iotcnsi6cação das apoiavam-se na ideologia, careciam de algum modo de legitimação lutas sociais, criam-se novas organizações, novos institutos também (ULTUAA ( SOCllOAl>f. NO 8ltASll. 17 l autônomos cm face do Estado - os sindicatos, os partidos de .massa, sociedade civil Desse modo, os intelectuais já n2o são mais neces os jornais de opinião etc. -, os quais, embora possam ter como sariamente ligados ao Estado ou aos seus aparelhos ideológicos; eles objetivo a defesa de interesses particulares, ªprivados", tornam-se podem se articular agora com essa esfera de organismos "priv.ados", wnbém po~dore$ materiais de çylf;W'i, de ideologias. exercendo suas atividades (e, entre das, a de lutar pela hegemonia Vemos assim que a sociedade civil tem, por um lado, uma política e ideológica do grupo social que representam) aJravés e no função social própria: a de garantir (ou de oontcstar) a legitimidade sD4 dessas formas autônomas de criação e de difusão da cultura. de uma formação social e de seu Estado, os quais não cem mais le Esta, aliás, me parece uma acepção, talvez a mais importante, gitimidade cm si mesmos, careocndo do consenso da sociedade civil da noção gra.msciana de "intelectual o~ioo". Com a em~ncia para se legitimarem. E, por outro, que da tem uma materialidade da sociedade civil e de sua organização cultural, os intelectuais social própria: apresenta-se e.orno um conjunto de organismos ou ligam-se predominantemente às suas classes de origem ou de ado de objetivações sociais, diferentes tanto das objetivações da esfera ção - e, por meio delas, à sociedade como um todo - através da coonômica quanto das objetivações do Estado miau smsu. Diga mediação representada pelos aparelhos "privados" de hegemonia. mos que, entre o Estado que diz representar o interesse público Começam a surgir fenômenos desconhecidos em épocas anterio e os indivíduos atomizados no mundo da produção, surge uma res: o intelectual de partido, o intelectual ligado ao sindicato, o esfera pluralista de organizações, de sujeitos ooletivos, cm luta intelectual que trabalha nos Jornais, nas editoras etc., de partidos ou em aliança entre si. Essa esfera intcrmcdima é precisamente ou de sindicatos, de associações de variado tipo, de correntes de a sociedade civil o campo dos apazdbos privados de hegemonia, opinião; em suma: o intelectual que já não é funcionário direto do o espaço da luta pelo consenso, pela direção políriro-ideológica Estado (um burocrata executivo), nem tampouco um intelectual 1 (não é aqui necessário falar sobre o papel dos partidos políticos "sem vínculos" (Mannheim), que - em sua atividade cuJtural - nesse quadro: o de agregar as correntes dominantes na sociedade julga comprometer apenas a si mesmo (este seria o caso típico do ). civil, de promover uma síntese política que sirva como base para "intelectual tradicional": e um Voltaire, na França do século 18, a conservação da velha dominação ou para a construção de um poderia bem expressar o que Gramsci 6.gura com esse termo). Sem novo poder de Estado). Quando surge esse mundo intermediá ncccssariamente perder sua autonomia e sua indcpcn~ncia de rio da "sociedade civil", e quando ele n2o está totalitariamente pensamento, o "intelectual orginico" tem uma maior consciên subordinado a um Estado despótico, podemos dizer que a socie cia do vínculo indissolúvel entre sua função e as contradições dade passou de seu período meramente liberal para um período concretas da sociedade. liberal-democrático. A "organização da cultura", cm suma, é o sistema das institui ., O que tem tudo isso a ver com a questão da "organização da ções da sociedade civil cuja função dominante é a de concretizar o cultura"? Embora Gramsci tenha usado apenas esporadicamente papel da cultura na reprodução ou na transformação da sociedade o termo, de me parece indicar um momento nccesdrio do seu como um todo. Um momento básico da organização da cultura sistema categorial; ele vê que, numa for~o social de ripo é o sistema educacional: cada vez mais, com o crescimento da "ocidental", a organização da cultura já não é algo diretamente sociedade civil, o sistema educacional deixa de ser uma simples subordinado ao Estado, mas resulta da própria erama oomplexa insdncia direta da legitimação do poder dominante para se tornar e pluralista da sociedade civil. Mais que isso: aparece como um um campo de luta entre as várias concepções político-ideológicas e momento necessário da articulação da afinmçáo da própria (basta pensar, por exemplo, na luta entre ensino laico e ensino 18 CMa.o$ No..loN CoonNHO CULTUllA 1 SOCllDADt: NO 811ASR 19 religioso). E até mesmo nas organllaçócs de ensino ligadas di c:xaminar como da se criou no passado e vem se transformando retamente ao Estado ocorre hoje uma ampla batalha de ideias: até nossos d.ias. Diria, antecipando minha conclusão, que o Brasil se a sociedade civil é rcalment.e autônoma, as universidades, por conhece uma trajetória que leva de uma siru.açáo de completa de exemplo, tomam-se um campo de luta pela hegemonia cultural bilidade (ou mesmo a~cia) de sociedade civil até outra situação, de determinados projetos de conservação ou de transformação a presente, caracterizada por uma sociedade civil mais ativa, mais das rcla.çócs sociais. A luta de classes se trava também no interior complexa, mais articulada. E é preciso lembrar que essa trajetória das universidades. E "organizaçõcs culturais" são wnbbn as insti é exprcssáo do progressivo ingresso do Brasil, ainda que por vias tu.içõcs que servem para difundir ideologia de um modo geral: as t:ransVcrsas, na era do capitalismo indusrrial. editoras, os jornais, os grupos teatrais etc., estejam ou não ligados Vou esboçar aqui um quadro histórico-evolutivo extremamente diretamente a algum organismo (tipo sindicato ou panido) da esquemático; repetirei muitas coisas já ditas cm outros trabalhos sociedade civil. meus, nos quais creio que esse esquematismo aparece - se me Para simplificar: não pode existir sociedade civil efctivamcnce permitem o jogo de palavras - um pouco menos esquemático1 • autônoma e plw:alista sem uma ampla rede de organismos cultu Se examinarmos o Brasil da época colonial, uma sociedade rais; e, vice-versa, não pode existir organização da cultura efetiva pré-<:apitalista (ainda que anio1lada com o capitalismo através do mente democrática sem estar apoiada numa sociedade civil desse mercado mundial), vcICmos facilmente a completa incxistblcia tipo. E a luta de classes, sob a forma da batalha de ideias, da luta de uma sociedade civil. Não tínhamos parlamento, nem panidos pela hegemonia e pelo consenso, atravessa tanto a sociedade civil políticos, nem um sistema de educação que fosse além das escolas quanto esse sistema de "organização da culwra" (não é preciso de catequese; não únhamos sequer o direito de imprimir livros insistir aqui sobre o faro de que o Estado, enquanto permanecer ou publicar jornais. Em suma: a organização da cultura, se é que sob controle capiralista clou burocrático, interfere nessa batalha se pode falar de "organização" nesse caso. era tosca e primitiva. de ideias, obstaculizando sua Üvn: dialética imanente: tão somente Os intdcctuais, os poucos que havia. eram diretamente ligados à numa sociedade socialista fundada na democracia política é que administração colonial, à sua burocracia, ou então à Igreja (que podem se criar as condições para um relacionamento verdadeira era na época um aparelho ideológico direto do Estado colonialis~ mente autônomo corre as organizações culrwais e o Estado). ta). Há indícios de novidade na época imediatamente anterior à Independência, mas não pas.çam de indícios. 2 O modo pelo qual se processou nossa Independ~ncia não Como Marx disse, a chave da anatomia do macaco está na alccrou substancialmente o quadro: a Independ~ncia resultou de anatomia do homem. Tracei aqui, con.scieotcmentc. as ünhas gerais urna manobra "pelo alto", de um golpe palaciano, e não de uma das rcJaçõcs entre Estado e sociedade civil, cnttc sociedade civil ativação prévia da sociedade civil (ainda inexistente). Mas as pró e organização da cultura, entre intelectuais e sociedade civil etc., prias necessidades políticas do país tornado independente, bem cal como se manifestam numa sociedade desenvolvida, sob uma como o desenvolvimento econômico, colocaram novas questões: forma que - ainda segundo uma indicação metOdológica de Marx swgiu a necessidade de elaborar uma camada de intelectuais capaz - poderíamos chamar de "forma clássica". Essa forma clássica mais de servir ao novo Estado. Isso impôs, por exemplo. a criação de ins-- desenvolvida nos permite pensar a anatomia do caso brasileiro, ou seja, de uma forma mais primitiva e menos explicitada, bem como Cf. prindpalmcnce o ensaio rol>re "Cuhura e sociedade no Brasir, infoi, p. 35-72.