C d M rítiCa do ireito à oradia e das P H olítiCas abitaCionais rafael lessa V. de sá Menezes www.lumenjuris.com.br Editores João de Almeida João Luiz da Silva Almeida Conselho Editorial Adriano Pilatti Gina Vidal Marcilio Pompeu Luigi Bonizzato Alexandre Bernardino Costa Gisele Cittadino Luis Carlos Alcoforado Alexandre Morais da Rosa Gustavo Noronha de Ávila Luiz Henrique Sormani Barbugiani Ana Alice De Carli Gustavo Sénéchal de Goffredo Manoel Messias Peixinho Anderson Soares Madeira Helena Elias Pinto Marcellus Polastri Lima Beatriz Souza Costa Jean Carlos Dias Marcelo Ribeiro Uchôa Bleine Queiroz Caúla Jean Carlos Fernandes Márcio Ricardo Staffen Caroline Regina dos Santos Jeferson Antônio Fernandes Bacelar Marco Aurélio Bezerra de Melo Daniele Maghelly Menezes Moreira Jerson Carneiro Gonçalves Junior Marcus Mauricius de Holanda Diego Araujo Campos João Carlos Souto Ricardo Lodi Ribeiro Elder Lisboa Ferreira da Costa João Marcelo de Lima Assafim Roberto C. Vale Ferreira Emerson Garcia João Theotonio Mendes de Almeida Jr. Salah Hassan Khaled Jr. Firly Nascimento Filho José Emílio Medauar Sérgio André Rocha Flávio Ahmed José Ricardo Ferreira Cunha Sidney Guerra Frederico Antonio Lima de Oliveira Josiane Rose Petry Veronese Simone Alvarez Lima C d M Frederico Price Grechi Leonardo El-Amme Souza e Silva da Cunha Victor Gameiro Drummond rítiCa do ireito à oradia e das Geraldo L. M. Prado Lúcio Antônio Chamon Junior P H olítiCas abitaCionais Conselheiros beneméritos Denis Borges Barbosa (in memoriam) Marcos Juruena Villela Souto (in memoriam) Conselho Consultivo Andreya Mendes de Almeida Scherer Navarro Caio de Oliveira Lima Antonio Carlos Martins Soares Francisco de Assis M. Tavares Artur de Brito Gueiros Souza Ricardo Máximo Gomes Ferraz Filiais Sede: Rio de Janeiro Minas Gerais (Divulgação) Av. 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A violação de direitos autorais constitui crime (Código Penal, art. 184 e §§, e Lei nº 6.895, de 17/12/1980), sujeitando-se a busca e apreensão e indenizações diversas (Lei nº 9.610/98). Todos os direitos desta edição reservados à Livraria e Editora Lumen Juris Ltda. Impresso no Brasil Printed in Brazil CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE ________________________________________ Para Ligia “Horrorizais-vos por querermos suprimir a proprieda- de privada. Mas na vossa sociedade existente, a pro- priedade privada está suprimida para nove décimos dos seus membros; ela existe precisamente pelo facto de não existir para nove décimos”. (Karl Marx e Friedrich Engels, Manifesto do Partido Comunista) Prefácio Rafael Lessa V. de Sá Menezes é um defensor público, atuante e inserido na defesa das populações mais vulneráveis da cidade de São Paulo, espe- cialmente, a população em situação de rua. Para além de sua expressiva qualificação técnica, tem sido um lutador intransigente e incansável para que haja respeito à dignidade humana de um segmento que sofre cotidianas violações em seus direitos. Neste livro, Rafael traz análises e reflexões de forma oportuna e atual de como o sistema sociometabólico do capital determina os limites da luta pelo direito à moradia, desvenda os mecanismos jurídicos para a domesticação dos conflitos de classe, traz as contradições do Programa Minha Casa Minha Vida e, ainda, aponta experiências que contribuem para enfrentar de forma mais efetiva o problema da habitação da população em situação de rua. É um trabalho denso de reflexões e críticas, consistentes e comprometidas com a efetivação dos direitos dos mais excluídos, apontando, ao longo dos ca- pítulos, novos conhecimentos que estimulam avaliar nossas práticas, analisar o atual momento de rebaixamento da democracia e de perdas e retrocessos dos direitos sociais e repensar estratégias de ações futuras. Sua análise vai se encaminhando a partir dos conflitos no interior das classes sociais e do contexto das hegemonias presentes, com base nas situa- ções concretas, possibilitando um olhar à frente das ilusões jurídicas, identi- ficando assim, as limitações de um judiciário comprometido com a agenda e os interesses do capital. A propriedade privada da terra urbana, como um dos pilares da acumulação do capital na cidade, tem sido invariavelmente protegida pelo judiciário em de- trimento da função social da propriedade e do direito à moradia. Dessa forma, na minha trajetória de atuação na área de habitação, em centenas de ações de reintegrações de posse na cidade de São Paulo, tem sido observado que o direito à propriedade prevalece sobre o direito à moradia, na quase totalidade das de- cisões judiciais. Muitas vezes, para a defesa da propriedade privada há decisões que sobrepõem até os limites da lei. IX Como não existe política fundiária e de inclusão para contribuir na inserção A experiência trazida pelo programa “Casa Primeiro” (Housing First) das classes populares nas cidades, e que deem respostas concretas às demandas, – que coloca a casa como o primeiro passo articulado a outras políticas os problemas urbanos vão se acumulando cada vez mais nas cidades brasileiras. sociais da assistência, para saída da situação de rua – é uma contribuição Outro aspecto interessante destacado por Rafael diz respeito à mobilização importante, para dar luz sobre o tema e avançar as propostas de moradia social engendrada por movimentos populares de moradia, os quais demanda- para este segmento social. Pensar a casa como primeiro passo para a saída ram e fizeram com que o direito à moradia fosse reconhecido na Constituição da rua provoca também a reflexão sobre os motivos da baixa efetividade Federal como um direito social. Em consequência, houve a aprovação do Esta- dos programas assistenciais a ela destinados. Essa perspectiva de atendi- tuto da Cidade, a criação do Ministério das Cidades, a realização das Conferên- mento habitacional como primeiro passo, devo dizer a partir de minha cias Nacionais das Cidades, a instituição do Fundo Nacional de Habitação de experiência, que é uma política pública acertada, porque são frequentes os Interesse Social, entre outras legislações urbanas, bem como, a institucionali- relatos de homens e mulheres que vivem nessa situação a respeito das difi- zações de espaços públicos para a defesa do direito à cidade, que de certa forma culdades de acessar a moradia no mercado imobiliário. Apesar de acesso a também foram capturadas pela agenda do capital. Apesar desses avanços no ar- um trabalho regular, o rendimento mensal tem sido insuficiente para alugar cabouço legal, na estrutura institucional e nos mecanismos de participação não um quarto em cortiço precário, cujo valor de locação mensal se aproxima resultou na melhoria esperada das condições de vida urbana dos trabalhadores do valor de um salário-mínimo na região central da cidade ou de moradia mais pobres. Essa situação explicita a prevalência dos mecanismos do mercado na periferia, onde o valor da locação é relativamente menor, mas elevada a imobiliário e de como são inaptas à aplicação das legislações urbanísticas, não despesa com transporte. por acaso, como parte estrutural da reprodução do capital. Essa situação de precarização e de rebaixamento salarial faz com que, a cada O autor mostra que a disputa sobre a efetivação do direito à cidade é um dia, mais pessoas fiquem em situação de rua, mais dependentes de políticas as- embate entre as classes, em que, muitas vezes, os trabalhadores que desejam sistenciais, pouco efetivas, deixando-as em um círculo sem saída. O valor pago ver suas necessidades básicas efetivadas são capturados pela linguagem e pela força de trabalho ao trabalhador é insuficiente para sua subsistência. gramática do direito. Na reflexão sobre proposta de moradia para população em situação de Com o abandono do Governo Federal ao Plano Nacional de Habitação de rua, Rafael destaca que não pode ser feito na lógica da propriedade privada Interesse Social (PlanHab), para dar lugar ao Programa Minha Casa Minha – moradia como mercadoria – mas é necessário avançar no direito à moradia Vida, emergiu a instrumentalização do sistema sociometabólico do capital no como um serviço público com fornecimento universal da habitação, indepen- Estado, fortalecendo a concepção da moradia e a cidade como mercadorias. dente de contrapartida financeira, com programas perenes de atendimento Assim, este Programa produziu expressivo número de unidades habitacionais, para esse segmento social. implementado na lógica da eficiência capitalista, reproduziu a segregação espa- Todo o percurso da análise critica mostrou que o sistema jurídico é mais efi- cial nas cidades e favoreceu a especulação imobiliária, deixando uma profunda caz na proteção do setor que utiliza da propriedade imobiliária para acumulação cicatriz na agenda do direito à cidade. A luta por uma cidade mais igualitária e rentabilização, do que do direito à moradia. Enquanto a política habitacional com inserção social pelo acesso à moradia, pautada pela agenda da reforma estiver focada na produção de casas para o mercado e não para solucionar o urbana foi derrotada. problema da exclusão habitacional, as necessidades habitacionais dos trabalha- Nesse momento, de crescente aumento do número de pessoas em situação dores de baixa renda e os problemas urbanos continuarão crescendo. de rua em todo Brasil, é de extrema pertinência a reflexão trazida pelo Rafael Este livro traz o desafio para as organizações populares, considerando que sobre a questão habitacional. O contexto de sociedade meritocrática e da mer- o custo da moradia para os trabalhadores de baixíssima renda é uma barreira cantilização da moradia e dos territórios nas cidades, esta população é estigma- intransponível. É essencial retomar o enfrentamento das contradições da rela- tizada e não reconhecida como parte do déficit habitacional. ção capital e trabalho para a efetivação de política pública de habitação para X XI os mais pauperizados. E, também, se não houver tensionamento social não será Sumário rompida a lógica jurídica reformista e subserviente da reprodução do capital. A leitura de cada capítulo do livro trouxe novos conhecimentos e aprendi- zados, além de indignação pelas reflexões críticas que me fizeram compreender, como educador popular, muitas lições do grande mestre Paulo Freire. Aqui, des- Prefácio ........................................................................................................ IX taco a Pedagogia da Indignação – cartas pedagógicas e outros escritos (2000) ... os militantes progressistas precisam, quixotescamente até, opor-se ao discurso domes- Introdução ................................................................................................... 1 ticador que diz que o povo quer cada vez mais menos política, menos conversa e mais Capítulo 1. A Crítica do Direito e dos Direitos Humanos ...................... 7 resultados; ... Lidar com a cidade, com a polis, não é uma questão apenas técnica, 1.1. A Ilusão Jurídica ................................................................................. 7 mas sobretudo política; ... A denúncia e o anúncio criticamente feito no processo da 1.2. Alicerces da ordem sociometabólica do capital e leitura do mundo dão origem ao sonho por que lutamos. transformação social ................................................................................... 17 Vejo que as contribuições trazidas por este livro são instigantes e essenciais 1.3. Análise do sistema de direito – sobre o direito à moradia .................. 28 para todos que lutam pelo direito à cidade, direito à moradia, reforma urbana e justiça social. Capítulo 2. A Característica Concomitância entre Enunciação e Ineficácia do Direito à Moradia ................................................................. 37 2.1. O papel das garantias de direito à moradia ......................................... 37 Luiz Kohara 2.2. Direito à moradia como direito social ................................................ 46 Doutor em arquitetura e urbanismo e pós-doutor em sociologia urbana. 2.3. O papel da lei e de seus conflitos de interesse na Membro do Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos. produção habitacional ............................................................................... 58 2.4. Por trás da ideologia: da ineficácia jurídica ao horizonte da transformação radical ................................................................................ 66 Capítulo 3. Políticas Públicas de Acesso à Casa Própria – O Programa Minha Casa, Minha Vida ......................................................... 81 3.1. Preliminarmente: o pressuposto da propriedade privada e a terra cativa no Brasil ................................................................................. 81 3.2. Do Projeto Moradia ao Programa Minha Casa, Minha Vida: o sonho da casa própria como ideologia para o desenvolvimento capitalista ....................................................................... 95 3.3. Linhas Gerais do Programa Minha Casa, Minha Vida ....................... 101 3.3.1. O papel lateral dos Municípios e da participação popular no PMCMV .............................................................................. 115 3.3.2. O subsídio e o crédito no PMCMV – papel do Estado e dos fundos públicos ................................................................................126 3.3.3. Experimentos de movimentos sociais no PMCMV ...................... 155 XII XIII 3.4. Alienação fiduciária como instrumento jurídico de Introdução controle fundiário ......................................................................................158 3.5 Algumas conclusões sobre a política habitacional da “casa própria” ............................................................................................ 162 Capítulo 4. Direito à Moradia para Além da Propriedade Privada? ....... 167 Pessoas sem-teto e pessoas em situação de rua circulam pela cidade tentando 4.1. Crítica da noção jurídica de segurança da posse ................................. 167 vender sua força de trabalho e encontrar meios para sua subsistência. São al- 4.2. Renda da Terra e Acesso à Habitação Via Locação ...........................180 gumas das parcelas mais pauperizadas da população. Ao redor delas há muitos 4.3. Programas públicos de aluguel social e locação social – a imóveis vazios e empoeirados à espera de compradores ou inquilinos. Mas tam- experiência recente da cidade de São Paulo ..............................................192 bém esperam valorização decorrente de melhoramentos no entorno – é o que se costuma chamar especulação imobiliária. Pelos jornais, governos anunciam a Capítulo 5. Pessoas em Situação de Rua e a Questão da Habitação ......203 construção de milhares ou milhões de imóveis para combater o “déficit habita- 5.1. Sobre as pessoas em situação de rua ..................................................203 cional”, mas ainda assim não chegam perto de resolver o problema da moradia. 5.2. Entre Habitação e Assistência Social ................................................. 210 O que separa aquelas pessoas em situação de rua dos imóveis vazios? 5.3. Acesso à Habitação pela População em Situação de Rua? ..................222 A habitação é uma necessidade humana básica e precisa ser dia-a-dia satis- feita para a reprodução da própria vida humana. Como alimentar-se e respirar, Conclusões ..................................................................................................229 habitar, com todas as suas funções, é condição para a continuidade da vida hu- Bibliografia ..................................................................................................233 mana. Em nossas sociedades, organizadas para fazer funcionar o sociometabo- lismo do capital, uma série de mediações separa cada ser humano do teto onde possa satisfazer as suas necessidades habitacionais. Estas, como outras necessi- dades humanas, são historicamente moldadas e dependem do grau de avanço técnico da sociedade. Mas dependem também e sobretudo das relações sociais estabelecidas em tais sociedades. Neste livro, resultado de uma tese de doutorado que defendi na Faculdade de Direito da USP, Largo de São Francisco, em 2016, pretende-se examinar as principais mediações jurídicas e de políticas públicas que promovem ou impe- dem o acesso à habitação. O direito se ergue sobre a base econômica da sociedade, sendo específico a cada organização econômico-social. No contexto atual, a base econômica da sociedade se apoia na apropriação do tempo do trabalhador pelos capitalistas. Isto é necessário para a produção. Mas também a apropriação do espaço em ge- ral é necessária para a circulação, para manter os complexos e funcionais meca- nismos de poupança, especulação, crédito e renda. A produção do espaço e da habitação seguem lógicas próprias, dependentes dos processos de acumulação, expansão e reprodução do capital. Todas estas relações determinam especifica- mente o direito tal qual o conhecemos. XIV 1 Rafael Lessa V. de Sá Menezes Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais O direito reflete, assim, as necessidades do próprio sociometabolismo do ca- Nesta linha, as principais questões a serem analisadas no presente livro pital. Não se trata de uma forma neutra de resolução de conflitos, mas de um são: a) o modo pelo qual garantias jurídicas e políticas públicas asseguram o conjunto de mecanismos que seleciona os conflitos que devem ser solucionados direito à moradia, em contraste com uma realidade em que as necessidades e que impõe soluções que em seu conjunto devem ser, no limite, funcionais à habitacionais das populações de baixa renda apenas se efetivam na medida base material e ao sociometabolismo do capital. Portanto, qualquer reivindica- em que se enquadrem na ordem sociometabólica do capital; b) como o de- ção jurídica de movimentos sociais esbarrará em limites muito claros, limites senvolvimento e a expansão espacial do capitalismo influenciam a escassez que basicamente são os que balizam a reprodução do sistema sociometabólico de imóveis para habitação e como a mercantilização (prevalência do valor do capital como um todo. de troca) impede o acesso das pessoas ao valor de uso dos imóveis, mesmo Estes limites levam direitos humanos a serem caracteristicamente inefetivos com todas as garantias de direito à moradia juridicamente consagradas; c) – e este é o caso do direito à moradia. Direto ao ponto: a inefetividade de direi- como o direito à moradia e a regulação urbanística da cidade se subordinam tos é inerente ao direito. Com isto fica claro que a legalização de movimentos aos imperativos do sociometabolismo do capital, em especial ao regime da sociais é antes funcional do que disfuncional aos imperativos jurídicos: a lega- propriedade privada e da posse exclusiva; d) como a exclusão social está lização impõe a linguagem jurídica, impõe o terreno e as armas jurídicas para intimamente ligada à espoliação das classes trabalhadoras e, na seara da lidar com os conflitos. As demandas sociais se tornam direitos solenemente habitação, as especificidades no modo como ocorre esta espoliação; e) como enunciados, podendo ocasionar a domesticação do conflito de classes. Esta é a as reivindicações jurídicas das lutas sociais que são absorvidas pelo direito função primordial da legalização – e ela tem sido uma estratégia bem-sucedida e tendem a levar à mitigação, cooptação, acomodação ou cooperação dos há um bom tempo. Por isso, a luta pela habitação deve aparecer apenas como movimentos sociais; f) se e como as contradições mais pulsantes da questão luta pelo direito à moradia. da habitação, quando ativadas e formuladas como reivindicações jurídicas, Mas contradições não são domesticáveis, elas existem e podem ser explo- podem ser propostas para uma renovada dinâmica social, para além do so- sivas apesar de todos os mecanismos de “resolução de conflitos”. Por isso, as ciometabolismo do capital. lutas sociais de transformação radical continuam possíveis. A formulação de Todos estes pontos perpassam os cinco capítulos nos quais o livro está or- demandas sociais em forma de demanda jurídica representa à primeira vista ganizado: no primeiro, se trata do método de estudo crítico do direito e dos uma armadilha, mas a continuidade da luta depois de se cair nesta armadilha é direitos humanos; no segundo capítulo, das garantias de direito à moradia; no decisiva para o horizonte de transformação radical. As reivindicações jurídicas terceiro, das políticas públicas habitacionais focadas em aquisição da “casa pró- podem divisar um horizonte para além do direito. Isto ocorre quando há nelas pria”, isto é, apoiadas na aquisição da propriedade via financiamento imobi- elementos que perturbem o domínio da ideologia jurídica e que tendam a sola- liário e subsídio estatal, com foco especial no Programa Minha Casa, Minha par os alicerces do sociometabolismo do capital. Vida; no quarto capítulo, se trata de acesso à habitação via aluguel público ou A compreensão crítica do fenômeno jurídico passa pelo exame dos seus privado; no quinto e último capítulo, das políticas de habitação para pessoas em próprios termos e dos fundamentos materiais destes. Passa também pelo modo situação de rua. como demandas sociais acabam sendo “capturadas” pelo direito, traduzidas O primeiro capítulo é dividido em três partes: a parte 1 trata das reivindica- para certos modos restritos de expressão. O estudo crítico do direito, além de ções jurídicas dos movimentos sociais, das ilusões que as lutas jurídicas criam e buscar desvendar a essência por detrás das aparências, além de reinserir o obje- do possível elo entre a perspectiva de longo alcance da revolução social e a de to na totalidade da sociedade que o produziu, deve também examinar o tipo de alcance mais restrito da luta jurídica; a parte 2 aponta os diversos alicerces do reivindicação que pode cumprir o papel de desestabilizar as estruturas jurídicas sociometabolismo do capital e explicita como a questão da mudança social deve de opressão e dominação. Desta maneira, explicita-se o objeto estudado e as ser entendida numa perspectiva ampla, para além da ênfase exclusiva na políti- suas possíveis transformações. ca; a parte 3, por fim, demonstra o modo pelo qual o direito (normas, tribunais, 2 3 Rafael Lessa V. de Sá Menezes Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais políticas públicas, etc.) reflete a separação real entre o trabalhador e seus meios habitação via “locação social” ou “aluguel social”, com foco especial naqueles de subsistência, especificamente a habitação. desenvolvidos na cidade de São Paulo desde o início do século XXI. O segundo capítulo é dividido em quatro partes: a parte 1 descreve um Finalmente, o quinto capítulo desenvolve a tese central deste livro, a partir conjunto de normas e instituições de direito à moradia, a nível nacional e inter- da análise de políticas públicas de habitação para pessoas em situação de rua. nacional, bem como o papel real que estas conquistas têm jogado nos conflitos Examina-se, assim, as características das pessoas em situação de rua, as políti- sociais; a parte 2 se apoia numa análise histórica sobre a cidade de São Paulo do cas de direito assistencial prevalecentes no atendimento delas e as abordagens início do século XX, onde o incipiente capitalismo já explicitava que a “questão do tipo “casa primeiro” para lidar com as exclusões múltiplas destas pessoas. A da habitação” deveria estar subordinada aos imperativos da acumulação capita- partir deste quadro, os programas do tipo “casa primeiro” serão apontados como lista (no caso, dependente, periférica), sem qualquer problematização do valor um tipo de política habitacional que pode pavimentar um caminho para além de troca imposto pelas “leis do mercado” e pelos interesses das classes domi- do sociometabolismo do capital. nantes, explicitando, assim, o papel da lei ou do ordenamento jurídico nas lutas sociais; a parte 3 tematiza as mudanças jurídicas do século XX, como o surgi- mento dos direitos sociais e a guinada pós-positivista, explicitando as limitações de princípios como o da função social da propriedade; por sim, na parte 4, se discute se a ineficácia do direito à moradia é incontornável em qualquer sentido e, em sendo, enfrenta o problema de quem seriam os sujeitos da transformação social radical no contexto atual. O terceiro e mais longo capítulo do trabalho faz uma detalhada análise da principal política de habitação existente no Brasil, o Programa Minha Casa, Minha Vida (PMCMV). O ponto de partida é uma análise do pressuposto da propriedade privada, que sustenta a ideologia da “casa própria” e fundamenta as especificidades das políticas públicas para suprimento de habitação para a população de baixa renda, as parcelas mais pauperizadas da classe trabalhadora. As políticas públicas são analisadas como instrumentos jurídicos de atuação estatal, sujeitas, por isso, a todos os limites do direito capitalista explicitados nos capítulos anteriores. Analisa-se, ademais, a centralização do PMCMV no go- verno federal, o papel central do empresariado da construção civil e do mercado imobiliário no desenho do programa, as pequenas e contestáveis conquistas dos movimentos sociais, a alienação fiduciária como instrumento de apropriação e controle fundiário e o papel do subsídio e do crédito na sustentação e funcio- nalização do PMCMV. O quarto capítulo tem três partes e o seu mote são os meios de aceso à habi- tação que não sejam pela aquisição da propriedade privada: na primeira parte, realiza-se uma crítica ao instituto da segurança da posse; na parte 2, estuda- -se a natureza da renda fundiária urbana e a questão do acesso à habitação via locação privada; na parte 3, são analisados programas públicos de acesso à 4 5