ebook img

CRISE E REFORMA DA ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE Deisy Ventura e Fernanda Aguilar ... PDF

34 Pages·2014·0.19 MB·Portuguese
by  
Save to my drive
Quick download
Download
Most books are stored in the elastic cloud where traffic is expensive. For this reason, we have a limit on daily download.

Preview CRISE E REFORMA DA ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE Deisy Ventura e Fernanda Aguilar ...

CRISE E REFORMA DA ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE Deisy Ventura e Fernanda Aguilar Perez Crise e reforma são palavras que acompanham a trajetória das organizações internacionais (OIs), fadadas a conciliar os imperativos da realização de suas funções com a heterogênea vontade dos seus Estados-membros. O objetivo deste artigo é mostrar que a Organização Mundial da Saúde (OMS) cons- titui um dos mais ricos exemplos das tensões que permeiam as OIs na atualidade e, por conseguinte, que o processo de reforma da Organização, atualmente em curso, merece maior atenção da comunidade acadêmica brasileira. Originalmente considerada a “autoridade moral e porta- -voz da saúde no mundo” (OMS, 2011a, p. 11), diretora e coor- denadora da atuação internacional no domínio da saúde (OMS, 1946), a OMS oferece uma espécie de “enquadramento políti- co e técnico” aos Estados em matéria de saúde pública (OMS, 2011a, p. 12). Contudo, nas palavras de sua atual diretora-geral, Margaret Chan, “a OMS está sobrecarregada e é incapaz de res- ponder com agilidade aos desafios da saúde global” (Sridhar e Gostin, 2011, p. 1585). Depois de ver reduzido o seu protagonis- mo diante da concorrência com outros organismos internacio- nais e entidades privadas, inclusive as filantrópicas, cresceram as Lua Nova, São Paulo, 92: 45-77, 2014 CRISE E REFORMA DA ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE dificuldades de financiamento e também o dissenso acerca de quais devem ser as suas prioridades de atuação. Recentemente, a pandemia de gripe A (H1N1), ocorrida entre 2009 e 2010, deu à crise da OMS uma inédita dimensão. Denúncias de con- flito de interesses dos especialistas da OMS, ou até mesmo de que nunca houve uma verdadeira pandemia, encontraram eco no meio científico, na mídia da maior parte dos países e até em comissões parlamentares de inquérito (Ventura, 2013a). Para alguns, “a OMS enganou o mundo inteiro” (Gentilini apud Bus- sard, 2012). Para outros, a OMS estaria simplesmente “fora de moda, subfinanciada e superpolitizada” (Chow, 2010). Após breve apresentação da OMS, este artigo buscará identificar os principais elementos de sua crise, graças à revi- são da literatura especializada e da consulta aos documentos da própria Organização, complementada por pesquisas em arquivos de jornais e revistas. Num segundo momento, serão resumidos os resultados de nossa pesquisa empírica sobre a 46 presença de pautas de reforma na ordem do dia da Assem- bleia Mundial da Saúde, principal órgão decisório da OMS, de 1998 a 2014, período em que se constatará a recorrência do binômio crise e reforma. Faremos, a seguir, breve alusão às posições do Brasil e da União Sul-Americana de Nações (Una- sul) a respeito do processo de reforma da Organização, que revela, em nossa opinião, uma promissora faceta da integração regional. Por fim, questionamos se a reforma em curso torna- rá a OMS um “enclave cosmopolítico” (Held, 2007, p. 434) na complexa configuração da saúde global. A OMS como “lugar único na saúde global” Herdeira de um século de cooperação sanitária1, a OMS foi criada em 1946, pela Conferência Internacional de Saúde 1 Em 1851, vinte anos após a irrupção do cólera na Europa, Paris sediou a primeira Conferência Sanitária Internacional, com o objetivo de chegar a um acordo, en- tre doze Estados, sobre as prescrições mínimas da quarentena marítima, a fim de “prestar importantes serviços ao comércio e à navegação” (OMS, 1958, p. 6). Lua Nova, São Paulo, 92: 45-77, 2014 Deisy Ventura e Fernanda Aguilar Perez de Nova York, e é atualmente composta por 194 Estados- -membros (OMS, 2014c). Membro do sistema da Organiza- ção das Nações Unidas (ONU), ela é uma das organizações mais descentralizadas da família (Godlee, 1994). Aos seus seis escritórios regionais – África, Américas, Ásia do Sudeste, Europa, Mediterrâneo Oriental e Pacífico Ocidental – incumbe, em síntese, formular diretrizes para a respectiva região, bem como executar as decisões da sede, localizada em Genebra (Suíça), de cuja elaboração elas também par- ticipam. A OMS mantém, ainda, 150 escritórios em países, zonas ou territórios, nos quais trabalham mais de 7 mil pes- soas de mais de 150 nacionalidades (OMS, 2014c). Para além de sua vasta abrangência geográfica, a OMS ocupa um “lugar único na saúde global, graças à sua visio- nária carta constitutiva – denominada Constituição, o que é incomum no sistema onusiano – que assegura um enfoque social da saúde, e afirma a saúde como um direito humano” (Legge, 2012). Assim, a OMS muitas vezes recorreu ao dis- 47 curso dos direitos humanos para enfrentar as restrições habi- tuais da diplomacia dos Estados (Biehl e Petryna, 2013, p. 3). Seguindo a tradição onusiana, a OMS é governada por um triângulo institucional básico, constituído pela Assem- bleia Mundial da Saúde (AMS), pelo Conselho Executivo (CE) e pela Direção-Geral (DG). A AMS é o grande plenário, reunido anualmente em Genebra, em que cada Estado-membro tem direito a um voto. Cabe à AMS fixar a política geral da Organização, ado- tar decisões e recomendações, editar normas, votar o orça- mento e criar as comissões necessárias à realização de suas Nos primeiros cem anos da chamada diplomacia sanitária internacional, um “imenso corpo de direito internacional sobre saúde pública, hoje largamente esquecido, foi criado”, cujas características básicas são: a tendência de internacionalizar a saúde em função do comércio; a necessidade de cooperação que os riscos de contamina- ção impunham aos Estados; o envolvimento de corporações multinacionais e de atores não governamentais em numerosas iniciativas; e a grande diversidade entre os resultados dos diferentes regimes jurídicos adotados (Fidler, 2001, p. 846). Lua Nova, São Paulo, 92: 45-77, 2014 CRISE E REFORMA DA ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE funções. Seu sistema de votação por maioria, a depender do caso, qualificada ou simples, estende-se ao CE e às comissões. Ao CE compete aplicar as decisões da AMS, preparar suas sessões e endereçar-lhe proposições; deve, ainda, apre- sentar-lhe, para exame e aprovação, seus programas gerais de trabalho2. Cabe também ao CE tomar medidas de urgên- cia para tratar de acontecimentos que exijam ação imediata. Quanto à DG, é nomeada pela AMS, sob proposta do CE, a quem está sujeita3. Para garantir a independência da DG e do pessoal da OMS, a Constituição os proíbe de solici- tar ou receber instruções de governos ou autoridades estra- nhas à Organização. As funções da OMS encontram-se no cerne do debate sobre a reforma; eis que ela superou uma origem marcada- mente higienista para chegar a uma grande ampliação de seus domínios de atuação. Segundo o plano de trabalho em vigor até 2015, as funções básicas seriam atualmente: exer- 48 cer a liderança em temas cruciais para a saúde, e participar de alianças quando ações conjuntas são necessárias; determi- nar linhas de pesquisa e estimular a produção, difusão e apli- cação de conhecimentos; editar normas, promover e acom- panhar de perto sua aplicação prática; formular opções de políticas de saúde em conformidade aos princípios éticos e fundamentos científicos; prestar apoio técnico, catalisar as mudanças e gerar capacidade institucional duradoura; 2 O Conselho Executivo é composto por 34 Estados-membros, eleitos pela AMS com mandato de três anos, buscando uma distribuição equitativa por região. Atualmente, são eles: África do Sul, Eritreia, Gâmbia, Libéria, Namíbia, República Democrática do Congo e Tchad (África); Argentina, Brasil, Cuba, Estados Unidos, Panamá e Suri- name (Américas); Maldivas, Nepal e Coreia do Norte (Ásia do Sudeste); Albânia, An- dorra, Azerbaijão, Bélgica, Croácia, Lituânia, Reino Unido e Rússia (Europa); Arábia Saudita, Egito, Kwait, Irã e Líbano (Mediterrâneo Oriental); Austrália, China, Coreia do Sul, Japão e Malásia (Pacífico Ocidental) (OMS, 2014c). 3 O sanitarista carioca Marcolino Gomes Candau dirigiu a Organização durante duas décadas: de 1953 a 1973. Foi a época da construção da sede, em Genebra, e igualmente de uma das atualizações do Regulamento Sanitário Internacional, além do lançamento do bem-sucedido programa de erradicação da varíola (Lima, 2002; Kaplan, 1983; BMJ, 1973). Lua Nova, São Paulo, 92: 45-77, 2014 Deisy Ventura e Fernanda Aguilar Perez seguir de perto a situação em matéria de saúde e determinar as tendências sanitárias (OMS, 2006). Num grande esforço de síntese, podemos dividi-las em três categorias de funções (Laude, Mathieu e Tabuteau, 2007). A primeira corresponde à tradição histórica das insti- tuições sanitárias, de luta contra as grandes patologias e de organização da vigilância epidemiológica, tendo como prin- cipal instrumento o Regulamento Sanitário Internacional (RSI), que estipula direitos e obrigações dos Estados relati- vos à organização sanitária, regulamentação de transportes internacionais e medidas para evitar a propagação de enfer- midades. Segundo a Constituição da OMS, os regulamentos dispensam procedimentos de incorporação às ordens jurí- dicas nacionais, valendo-se da técnica do opting out4. A segunda categoria de missões da OMS diz respeito à elaboração de normas sanitárias internacionais. Segundo a sua Constituição, a OMS pode adotar acordos ou conven- ções, que entram em vigor para os Estados-membros quan- 49 do de sua incorporação às ordens nacionais pelos respec- tivos processos constitucionais. Ademais, a OMS mantém intensa produção normativa do que se costuma chamar de soft law, ou seja, de regras de natureza recomendató- ria, produzindo uma pletora de padrões técnicos, guias e 4 Enquanto o opting in corresponde ao ato positivo pelo qual um Estado decide sujeitar-se a um ato ou instrumento convencional, típico do direito dos tratados (representado por expressões como assinatura, aprovação, ratificação ou adesão), o opting out aparece normalmente nos processos decisórios relativos à adoção de nor- mas técnicas pelas organizações internacionais, em que normalmente se vota por maioria simples ou qualificada, nos quais o Estado pode expressar sua intenção de não aplicar certa norma técnica, valendo-se do opting out total (expresso em vocá- bulos como recusa ou não aprovação) ou parcial (traduzido por termos como objeção e reserva). Assim, a ratio legis da técnica de opting out é guiada pela preocupação em encontrar um equilíbrio entre a autonomia da vontade dos Estados e o exer- cício das competências normativas das organizações internacionais (Mbengue, 2006, p. 201). O RSI (de 2005) foi objeto de apenas duas reservas, da Índia e dos Estados Unidos, sendo a última, especialmente no que atine às questões fede- rativas, objetada pelo Irã; China, Grécia, Portugal, Turquia e Tonga formularam declarações interpretativas do Regulamento (OMS, 2008). Lua Nova, São Paulo, 92: 45-77, 2014 CRISE E REFORMA DA ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE boas práticas (Burci, 2012). A repercussão dessas normas é imensurável, tanto quanto a pressão do setor privado para influenciá-las, como revelam os exemplos do Codex Alimenta- rius5 e da Lista modelo de medicamentos essenciais6. O terceiro e último ramo funcional da OMS seria o das intervenções sanitárias. Ela define e implementa diretamen- te diversos programas de luta contra as grandes doenças (como tuberculose, malária etc.), além de apoiar a pesquisa sobre doenças transmissíveis (gripe, aids etc.) ou não trans- missíveis (câncer, doenças cardiovasculares etc.). Oferece, igualmente, assistência técnica aos países menos avançados (vacinação contra doenças infecciosas, provisão de água potável etc.). No mesmo diapasão, a OMS elabora impor- tantes relatórios sobre problemas de saúde pública, com o escopo de produzir e difundir informações, e propor estra- tégias aos Estados-membros e atores sociais. Eles influen- ciam a composição da imagem que “o mundo faz de si mes- 50 mo” em matéria de saúde (Ventura, 2013a, p. 94). Exemplo disso é o impacto de alguns desses relatórios: há um antes e um depois em matéria de avaliação da performance dos sis- temas de saúde, graças ao relatório mundial sobre o tema, elaborado pela OMS em 2000; o mesmo se pode dizer do 5 Elaborado pela Comissão do Codex Alimentarius, aprovada na Conferência da Organização da Alimentação e Agricultura (FAO), de 1961, e na AMS de 1963, com a função de constituir e executar o Programa Conjunto FAO/OMS sobre Normas Alimentares. Vê-se que a Comissão trata “os produtos principalmente como commodities e não como alimentos em sua dimensão total e em sua importân- cia vital para os seres humanos. Seu processo segue as diretrizes e a lógica do sis- tema industrial de produção, que direciona hoje toda a produção agropecuária, e a ele responde mais do que à preocupação com os graves problemas do acesso da população à comida (food security) e à segurança sanitária (food safety)” (Lucchese, 2003, p. 553). 6 Esta lista de medicamentos é elaborada no âmbito de um programa da OMS, com o apoio de um grupo de especialistas, a fim de identificar o mínimo que deve ser disponibilizado à população em qualquer país. Embora se trate de uma extra- ordinária forma de pressão sobre os governos dos países em desenvolvimento, o que explica a forte presença do setor industrial no debate que cerca a escolha dos medicamentos, essa lista não é discutida na AMS e suas modificações são ainda menos transparentes que o conjunto do trabalho da OMS (Charpak, 2013, p. 13). Lua Nova, São Paulo, 92: 45-77, 2014 Deisy Ventura e Fernanda Aguilar Perez impacto do relatório mundial sobre os fatores de risco para a saúde, divulgado em 2002, indicando o papel do tabaco, do álcool, de certos alimentos e do sedentarismo no desen- volvimento de doenças (Danzon e Charpak, 2012). Os novos atores da saúde global e a crise da OMS A expressão crise já aparece na literatura sobre a OMS dos anos 1990 (Tollison e Wagner, 1993; Godlee, 1994; Deveaud e Lemennicier, 1997). Entre as numerosas dificuldades enfren- tadas pela OMS na realização das funções, identificamos, tan- to na literatura como nos documentos oficiais, os cinco prin- cipais elementos da crise na organização. São eles: a erosão do seu protagonismo; a escassez e a natureza do seu financia- mento; os conflitos de interesse dos especialistas, que vieram à tona durante a gestão da pandemia de gripe A(H1N1); as dificuldades de comunicação; e os problemas de governança interna. Nesta parte do artigo, abordaremos os dois primeiros elementos. 51 No que se refere à crise de liderança, o paradigma pre- dominante da saúde internacional, desde a sua criação, foi o predomínio da ação dos Estados sob a coordenação da OMS (Biehl e Petryna, 2013). Nas primeiras décadas de funcio- namento da Organização, os ministros da saúde eram, de fato, as maiores autoridades mundiais na matéria (Chow, 2010). Ocorreram naquele período vitórias importantes como a erradicação da varíola, em 1979, resultante da gran- de campanha da OMS que aumentou o financiamento para produção de imunizantes em laboratórios localizados nos países endêmicos, garantiu maior fiscalização da qualida- de dos produtos, além de introduzir a vacina liofilizada e a agulha bifurcada em larga escala (Muniz, 2011). O sucesso desse programa influenciou os sistemas nacionais de saúde, ao disseminar o otimismo quanto à possibilidade de erradi- cação de doenças e deixar clara a necessidade de fortalecer os serviços básicos de saúde (Muniz, 2011, p. 700). Lua Nova, São Paulo, 92: 45-77, 2014 CRISE E REFORMA DA ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE Não obstante, as aspirações da OMS são historicamente condicionadas pela multiplicidade de pontos de vista, neces- sidades e preferências dos seus Estados-membros (OMS, 2011a). Exemplo disso é a crítica de que haveria uma “poli- tização” da OMS, formulada pelos países industrializados, especialmente os Estados Unidos, para quem essa OI deve ser um órgão técnico cujas atividades devem ser baseadas exclusivamente em evidências biomédicas. Quando a OMS lançou a campanha Saúde para todos no ano 2000, com ênfase na saúde primária, interpretou-se que ela estava respon- dendo à pressão de países em desenvolvimento, que agora conformavam maioria na AMS (Brown, Cueto e Fee, 2006; McInnes e Lee, 2012, p. 127). Ronald Reagan, presidente dos Estados Unidos entre 1981-1989, pressionado pelo Congresso, deixou claro à épo- ca o descontentamento do país com “a predominância de países do Terceiro Mundo em agências da ONU” (Chorev, 52 2012, p. 125). Instituições norte-americanas, como a Fun- dação Rockefeller e a Fundação Heritage, opunham-se à ideia do projeto Saúde para todos (Nuruzzaman, 2007; Birn, 2009). A Fundação Heritage chegou a lançar um estudo intitulado A OMS: resistindo às pressões ideológicas do Terceiro Mundo, enfatizando que a OI deveria ser somente um órgão técnico (Birn, 2009). Por conseguinte, visando ao controle da instituição (McInnes e Lee, 2012) e com o apoio de outros países indus- trializados (Chorev, 2012), os Estados Unidos aplicaram a política de zero crescimento real do orçamento da OMS para os anos de 1980 e de zero crescimento nominal nos anos 1990. Assim, ao tentar adaptar-se à lógica neoliberal (Chorev, 2012), a instituição teria perdido seu papel de guia nas polí- ticas de saúde, tanto por seus próprios defeitos como pelo desinteresse dos Estados (Berlinguer, 1999). Paralelamente, a partir do final dos anos 1980, uma guinada no conceito de desenvolvimento do Banco Mun- Lua Nova, São Paulo, 92: 45-77, 2014 Deisy Ventura e Fernanda Aguilar Perez dial fez com que ele expandisse sua atuação em matéria de População, Nutrição e Saúde (em inglês, PNH), tornando- -se hoje o maior financiador externo da saúde e um dos maiores apoiadores na luta contra o HIV/aids (Ruger, 2005). Na primeira década do século XXI, a saúde ascende à agenda de instâncias como o Conselho de Segurança e a Assembleia Geral da ONU; torna-se tema das “great power conferences, e chega às cúpulas dos G7/8/20/77” (Kickbusch e Ivanova, 2013, p. 22). Daí resultam parcerias mundiais com o setor privado industrial e os mecenas filantrópicos, cujos pesos político e financeiro acarretam a imposição de suas pró - prias prioridades, ameaçando a autoridade e a independên- cia da OMS (Kerouedan, 2013). Logo, houve uma mudança radical nas últimas décadas: as empresas transnacionais e os imperativos de mercado pas- saram a desempenhar um papel importante, por vezes per - verso, na formulação de políticas de saúde (Maruthappu e Williams, 2012). No atual contexto de saúde global, doado- 53 res privados e organizações, governamentais ou não, com as mais variadas agendas, parecem alcançar o mesmo peso que os organismos multilaterais, e a OMS tem se mostrado “disposta a renunciar a uma parte de sua liderança nas ini- ciativas de saúde pública, tanto no plano nacional como no global” (Cueto, 2013, p. 51). A questão do financiamento da OMS é um dos aspectos cruciais dessa crise. Embora a atuação da organização tenha se ampliado nos últimos anos, há evidente decréscimo das contribuições dos Estados para a Organização, as quais, atu- almente, constituem apenas cerca de 20% das receitas fixas, quando representavam, em 1998-1999, cerca de 50% delas (OMS, 2011b, p. 2). As contribuições voluntárias, que complementam as receitas fixas, são em grande parte destinadas a programas específicos, aos quais são formalmente vinculadas. Trata- -se da chamada doação earmarked, realizada “em dinheiro, Lua Nova, São Paulo, 92: 45-77, 2014 CRISE E REFORMA DA ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE ‘carimbada’ para determinada finalidade ou projeto, ao gosto do doador, só podendo ser gasta naquela específica destinação”, o que tende a “distorcer as prioridades pro- gramáticas definidas pelos Estados-membros”, além de dar margem a “conflitos de interesses que possam advir, por exemplo, de doações da indústria farmacêutica e outras en - tidades privadas” (Buss et al., 2012, p. 1484). Logo, é pro- vável que a ampliação das atividades da OMS esteja mais relacionada ao desejo dos doadores do que à crença de que ela é o ator mais adequado para cumprir as novas tarefas. Assim, as contribuições voluntárias provêm de alguns Esta- dos-membros que desejam financiar iniciativas precisas, mas também de fundações filantrópicas e do setor privado (inclu- sive de laboratórios farmacêuticos). No biênio 2010-2011, por exemplo, a Fundação Bill & Melinda Gates foi a maior doadora voluntária de fundos à OMS (US$ 446.161.801,00), sobrepujando até mesmo as contribuições voluntárias dos 54 Estados Unidos, de US$ 438.285.683,00 (OMS, 2012a, p. 10). A Fundação Gates fez uso da palavra na abertura de três AMSs – em 2005, 2011 e 2014 (OMS, 2014f). Em seu discurso de 2014, Melinda Gates afirmou: “salvar recém-nascidos é um ato bondoso de amor que também tem significado empresarial e pragmático” (OMS, 2014f, p. 5). Para o biênio 2012-2013, a OMS teve um orçamento total de US$ 4,210 bilhões em fundos disponíveis, dos quais US$ 2,524 bilhões foram destinados aos programas de base, US$ 1,302 bilhão para programas especiais e dispositivos de colaboração, e US$ 384 milhões para intervenções em caso de epidemias e crise; US$ 916 milhões são provenientes de contribuições fixas dos Estados-membros, enquanto US$ 3,294 milhões provêm de contribuições voluntárias (OMS, 2014b, p. 39). Na distribuição interna dos recursos, aparece a sede genebrina como a principal destinatária, consumin- do 31,06% dos fundos disponíveis; a seguir, surge a região africana, gastando 29,19% (OMS, 2014b, p. 44). Lua Nova, São Paulo, 92: 45-77, 2014

Description:
de reforma da Organização, atualmente em curso, merece experts”. Le Temps, 12 ago. CHARPAK, Y. 2012. “Focus OMS – Ce qui la France
See more

The list of books you might like

Most books are stored in the elastic cloud where traffic is expensive. For this reason, we have a limit on daily download.