,. Contracultura através dos tempos Do mito de Prometeu à cultura digital KenGoffman (R. U. Sirius) e DanJoy TRADUÇÃO Alexandre Martins Ediouro Título original Counterculture through the ages: from Abraham to Acid House. Copyright © 2004 by Ken Goffman Copyright da tradução © Ediouro Publicações S.A., 2007 DeKen: Tradução publicada mediante acordo com Villard Books, selo da Random House Publishing Group, uma divisão da Random House, Inc. À minha noiva, Eve Berni, sem a qual o sol se apagaria. Capa Tita Nigrí À falecida Rosemary Woodruff Leary, que ajudou a tornar isto possível. Foto de capa Roger-Viollet/Topfoto Ao meu pai ausente e à minha mãe muito viva, Arnold e Roberta: livres-pensadores. Copidesque Paulo Corrêa A São Judas, meu brilhante e engraçado parceiro de redação em tantos projetos- descanse em paz. Revisão Elisa Rosa Maryanne B. Linz Produção editorial Felipe Schuery DeDan: CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE A Cate Leggett e Randi Mates, que me ajudaram; e a Trmothy Leary, que me mostrou. SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ. S634c Este livro não existiria se não fosse pelo falecido Kathy Acker; por James Fasci; Sirius, R. U., 1952- Douglas Goffman; Harriett Joy; David Latimer; nosso incrivelmente estimulante Contracultura através dos tempos: do mito de Prometeu à cultura digital/ Ken Goffman (R.U. Sirius) e Dan Joy; introdução de Trmothy editor, Bruce Tracy; e nossa agente extraordinária, Laurie Fox. Leary; tradução Alexandre Martins. - Rio de Janeiro: Ediouro, 2007 Tradução de: Counterculture through the ages Assistente de desenvolvimento: Leon Fernandez ISBN 85-0001-665-5 1. Contracultura - História. I. Joy, Dan. II. Título. Assistentes de redação: Gracie e Zarkov 06-4169 CDD 306.1 Agradecimentos também a: Lenny Bailes, Ben Ballard, John Perry Barlow, Claire Burch, CDU316.723 Linda Chester Literary Agency, Michael Coblentz, Helen Donlon, Benjamin Feen, Steve Follmer, Norman Girardot, Evan Gourvitz, Peter Hudson, Jason Keehn, Alison Todos os direitos reservados à Ediouro Publicações S.A. Kennedy, Beth Kennedy, Phil Leggiere, Linda Lowrance, Sharon Martin, Walter Miles, Rua Nova Jerusalém, 345-Bonsucesso Rio de Janeiro - RJ-CEP 21402-235 Jay Schwartz, Dan Sieradski, Jeremy Tarcher e Peter Lamborn Wilson. Tel.: (21) 3882-8200 Fax: (21) 3882-8212 I 3882-8313 www.ediouro.com.br Sumário 9 Introdução de Timothy Leary 11 Prefácio de Dan Jo y 19 Des/Orientação de R. U. Sirius PARTE I A construção de contraculturas 23 cAPITULO UM: Abraão e Prometeu: Rebeldes contraculturais míticos 45 cAPITULo Dois: Uma outra forma de excelência humana: Definindo contracultura PARTE 11 Superando os intervalos de tempo e lugar 67 cAPITULO TRÊS: Politicamente incorreto: Sócrates e a contracultura socrática 85 cAPITULo QUATRo: Mergulho no infinito: Taoísmo 109 cAPITULo ciNco: A mão que parou a mente: A contracultura zen 125 cAPITULo sEis: Amor e evolução: A contracultura oculta dos sufis 143 CAPITULO sETE: Refazendo amor: Os trovadores e o espírito herético da Provença 161 cAPITULo OITo: Revolução cultural e política: O Iluminismo dos séculos XVII e XVIII 18 9 cAPITULo NOVE: A cada qual, seu próprio deus: Os transcendentalistas americanos 219 CAPITULo DEz: Brilhantes explosões de riso: A Paris boêmia, 1900-1940 Introdução PARTE IIl Após Hiroshima, ''X' contracultura 249 CAPITuLO oNzE: Rebeldes sem causa: Os anos 1950 2 71 CAPITULo noZE: Quando você muda a cada novo dia: A contracultura jovem, 1960-1967 309 CAPITULo TREZE: Selvagens nas ruas: A contracultura jovem, 1968-1972 Nota: esta introdução não é uma mensagem de além-túmulo, mas 339 CAPITULo QUATORZE: O que não me mata me deixa ligado: As contraculturas um dos últimos textos de Timothy Leary, escrito assim que o traba- hedonistas/niilistas dos anos 1970 lho neste livro começou. 363 cAPITULo QUINZE: Global. Digital. Condenada?: A contracultura aponta para o futuro A contracultura floresce sempre e onde quer que alguns membros de uma 397 Bibliografia sociedade escolham estilos de vida, expressões artísticas e formas de pensamen- 405 Índice to e comportamento que sinceramente incorporam o antigo axioma segundo o qual a única verdadeira constante é a própria mudança. A marca da contracultura não é uma forma ou estrutura em particular, mas a fluidez de formas e estruturas, a perturbadora velocidade e flexibilidade com que surge, sofre mutação, se trans- forma em outra e desaparece. A contracultura é a crista movente de uma onda, uma região de incerteza em que a cultura se toma quântica. Tomando emprestada a expressão do Prêmio Nobel de física llya Prigogine, a contracultura é o equivalente cultural do "tercei- ro estado da termodinâmicà: a "região não-linear" em que equihbrio e simetria deram lugar a uma complexidade tão intensa que a nossos olhos parece caos. Aqueles que fazem parte de uma contracultura se desenvolvem nessa região de turbulências. É o seu meio natural, a única matéria maleável o bastante para ser moldada e remodelada rapidamente o bastante para dar conta da velocidade de suas visões internas. Eles conhecem a corrente, são engenheiros do caos, migrando na crista da onda da máxima mudança. Na contracultura, as estruturas sociais são espontâneas e efêmeras. Os que fazem parte de contraculturas estão constantemente se reunindo em novas molé- culas, se fissionando e reagrupando em configurações adequadas aos interesses do momento, como partículas se esbarrando em um acelerador de grande potên- cia, trocando cargas dinâmicas. Nessas configurações eles colhem a vantagem de trocar idéias e criações por intermédio de resposta rápida em pequenos grupos, 10 CONTRACULTURA ATRAVÉS DOS TEMPOS conseguindo uma sinergia que permite que seus pensamentos e suas visões cresçam Prefácio e se modifiquem quase que no mesmo instante em que são formulados. A contracultura não tem uma estrutura formal nem uma liderança formal. Em certo sentido, ela não tem liderança; em outro sentido, é abarrotada de líderes, com todos os seus participantes inovando constantemente, invadindo novos territórios em que outros podem acabar penetrando. A contracultura pode surgir em alianças (algumas vezes constrangedoras) com grupos políticos radicais ou mesmo revolucionários ou forças de insurreição, e os Certo belo dia, no auge de sua conquista do mundo mediterrâneo, Alexandre, o participantes das contraculturas e desses grupos muitas vezes são os mesmos. Grande, estava no campo, perto de Atenas - que acabara de se render às suas forças Mas o que interessa à contracultura é o poder das idéias, imagens e da expressão -, contemplando a paisagem acidentada banhada pelo sol que cercava aquela cida- artística, não a obtenção de poder pessoal e político. Assim, partidos políticos de, que era para ele a jóia mais brilhante do vasto território que ele então controlava. minoritários, alternativos e radicais não são, em si, contraculturas. Embora vários Enquanto desfrutava daquilo, Alexandre chegou perto de um homem querela- memes* contraculturais tenham implicações políticas, a conquista e a manutenção xava ao lado de um córrego. Aquecendo-se ao sol da tarde, o homem estava tão de poder político exige a adesão a estruturas inflexíveis, incapazes de acomodar a absorto em alguma espécie de transe bucólico que não se dava conta da presença inovação e a experimentação que são a base da razão de ser contracultural. do conquistador nem do tumulto que acabara de tomar conta da cidade próxima. A contracultura-como este livro mostra-é um fenômeno perene, provavel- Alexandre reconheceu de imediato o homem e se aproximou dele, dizendo: - Eu mente tão velho quanto a civilização e possivelmente tão velho quanto a própria sou Alexandre. Há algo que eu possa fazer por você? cultura. De fato, muitos dos personagens que acabaram ocupando lugar de desta- O homem abriu os olhos preguiçosamente, olhou para cima e respondeu: que nos livros escolares- de Sócrates a Jesus, Galileu, Martinho Lutero e Mark - Sim. Saia da frente da minha luz. Twain - eram contraculturais em sua época. Quem era aquele homem, por quem o recém-empossado regente do mundo Este livro levanta a pergunta "O que é contracultura?" e identifica os temas conhecido interrompia seu momento de glória para humildemente oferecer seus comuns que perpassam as contraculturas em diferentes épocas e lugares. Também serviços-apenas para receber uma resposta arrevesada? descreve o importante papel de catalisador de mudanças desempenhado pelas O homem ao lado do córrego era Diógenes - um renomado autor teatral e ao contraculturas no desenvolvimento das grandes culturas, mostrando de que ma- mesmo tempo um completo miserável e excêntrico criador de casos ateniense sem neira a cultura como um todo surge da contracultura. residência fixa. Diógenes vivia ao ar livre, freqüentando as ruas e as áreas públicas Essa discussão serve como um ponto de referência em um passeio divertido por de Atenas e normalmente perturbando os cidadãos com seu humor iconoclasta e um enorme número de contraculturas, do taoísmo à acid house. Espero que você suas brincadeiras maliciosas, algumas vezes grosseiras, mas sempre brilhantes. Fa- leia e goste deste livro, e que ele o inspire a viver a mensagem contracultural de moso em todo o mundo grego por sua sabedoria aforística e suas criações individualidade, coragem e criatividade com seu próprio esplendor e glória. dramatúrgicas, ele também era um dos principais nomes do movimento socrático, uma contracultura grega que iria mudar a face do mundo ocidental para sempre. A resposta de Diógenes a Alexandre -"Saia da frente da minha luz"-simbo- Timothy Leary liza a atitude das contraculturas através dos tempos frente à autoridade imposta: ela bloqueia a luz. * Termo criado em 1976 por Richard Dawkins em O gene egoísta, é considerado uma unidade A luz - a força brilhante de uma expressão individual sem amarras, o brilho autônoma de informação que se multiplica de cérebro em cérebro. (N. do E.) radiante da criatividade humana liberta de roteiros e controles externos. A luz-o 12 CONTRACULTURA ATRAVÉS DOS TEMPOS PREFACIO 13 brilho liberado quando, individualmente, e em especial coletivamente, os seres O impacto final da contracultura na história freqüentemente é determinado humanos livremente compartilham recursos internos e externos para criar seu pela adoção de seus símbolos, artefatos e práticas pela cultura dominante de uma mundo de acordo com os ditames do verdadeiro eu. E o brilho numinoso do pró- forma que os isola violentamente de suas fontes na experiência real. Ainda assim, prio mundo nos olhos daqueles que exercitam esse tipo de liberdade. os traços históricos deixados pelas contraculturas podem ser identificados ao se Se Alexandre tivesse se recusado a sair da frente da luz de Diógenes, o filósofo- observar a história com uma compreensão da essência da contracultura. Essa forma dramaturgo mais provavelmente se levantaria e sairia da sombra do conquistador de ler os registros culturais oferece uma interminável fonte de inspiração, infor- do que iniciaria um pugilato com ele. Porque se Diógenes reagisse à separação de mação e afirmação, permitindo que as contraculturas extraiam muita energia de seu amado sol tentando derrotar aquele que o tinha separado dele, o sol-como épocas e personagens históricos anteriores. Diógenes tinha a sabedoria de reconhecer - muito provavelmente se poria antes A contracultura é "rupturà' por definição, mas também é uma espécie de tradição. que o conflito fosse resolvido. É a tradição de romper com a tradição, ou de atravessar as tradições do presente de O objetivo primordial das contraculturas, portanto, não é tomar as rédeas ou modo a abrir uma janela para aquela dimensão mais profunda da possibilidade hu- eliminar o controle externo nem mover uma guerra contra aqueles que o detêm- mana que é a fonte perene do verdadeiramente novo-e verdadeiramente grandio- embora em alguns momentos as contraculturas possam participar de forma apai- so na expressão e no esforço humano. Dessa forma, a contracultura pode ser uma xonada de tais empreitadas. Em vez disso, as contraculturas buscam basicamente tradição que ataca e dá início a quase todas as outras tradições. viver tão livres das restrições à força criativa quanto seja possível, onde e como quer que seja possível fazê-lo. E quando as pessoas buscam esse tipo de liberdade com compromisso e vigor, elas desbloqueiam a passagem da luz, de modo que as gera- Três fios de ligação ções posteriores podem se aquecer com seu calor. Três diferentes cabos de conexão organizam o mosaico heterogêneo de contraculturas em uma tradição contínua: contato direto, contato indireto e resso- Tradição sem convenção nância. Os dois primeiros são trilhas óbvias ao longo das quais idéias, influência e inspiração são transmitidas de uma cultura a outra, enquanto o terceiro envolve Eu deliberadamente escolhi romper com as tradições de modo a ser uma espécie mais sutil e misteriosa de ligação entre culturas. mais fiel à Tradição do que as atuais convenções e idéias permitem. O caminho mais vital normalmente é o mais dificil, e passa por conven- ções muitas vezes transformadas em leis que precisam ser rompidas, Contato direto com a conseqüente liberação de outras forças que não suportam a liberdade. Portanto, uma ruptura dessa natureza é algo perigoso, em- O mais poderoso e óbvio tipo de ligação entre contraculturas é o contato direto. bora indispensável para a sociedade. A sociedade reconhece o perigo, e Nesse caso, participantes de uma contracultura interagem diretamente com parti- faz com que a ruptura normalmente seja fatal para o homem que a cipantes de outra, abrindo canais de comunicação que encorajam a individualida- produz. Ela não deve ser feita sem que sejam avaliados o perigo e o de e amplificam o impulso contracultural. sacrificio, sem a capacidade de suportar violentas punições, nem sem a O contato direto foi fundamental no impacto histórico do sufismo, a contra- fé sincera em que o fim justifica os meios, nem eu acredito que isso cultura islâmica, tema do capítulo 6. Por intermédio do contato direto com os sufis na possa ser efetivamente conseguido sem tudo isso. relação entre as culturas islâmica e cristã na Europa Ocidental, os trovadores apren- Frank Lloyd Wright deram a arte de afirmar o primado do amor em verso e música - que se tornaria a 14 CONTRACULTURA ATRAVÉS DOS TEMPOS PREFACIO 15 marca de excelência da heresia erótica mais transcendental da cristandade. Influen- produtos artísticos, meios de desenvolvimento e formas de vida que se apresenta em ciado por encontros com "iluminados" sufis, frei Roger Bacon subverteu a autoridade contraculturas entre as quais não há nenhum indício de contato, direto ou indire- religiosa de seu tempo, criando as bases para o "método científico': O contato com to. O fenômeno da ressonância se destaca em semelhanças entre as mais antigas modelos sufis também inspirou São Francisco de Assis a abraçar um cristianismo contraculturas discutidas longamente nestas páginas, a dos socráticos e a dos radicalmente pacifista durante o período mais violento daquela religião. taoístas. Embora separados por metade da circunferência do planeta, esses movi- O contato direto também teve papel importante durante o século XX. Persona- mentos filosóficos surgiram praticamente ao mesmo tempo e foram surpreenden- gens fundamentais dos movimentos de vanguarda europeus se misturaram com temente semelhantes em seu desenvolvimento inicial. escritores americanos nas livrarias, nos salões e nos ateliês de Paris, ajudando a Mais de duzentos anos mais tarde, a vida e o trabalho do prototípico contra- catalisar o movimento literário da Geração Perdida. Algumas décadas mais tarde, culturalista americano Henry David Thoreau remetiam intensamente ao taoísmo. muitos dos integrantes das contraculturas jovens dos anos 1960 foram inspirados Como destacou Alan Watts, o particular toque de anarquismo de Thoreau, seu e instruídos por muitos dos beatniks, herdeiros literários da Geração Perdida. panteísmo e sua louvação à natureza tinham uma clara característica taoísta. Em- bora Thoreau, como outros transcendentalistas, tenha mergulhado no estudo de filosofias orientais como hinduísmo e vedanta, não há indícios de que ele tenha Contato indireto estudado taoísmo. Portanto, a impressionante semelhança entre o taoísmo e o transcendentalismo de Thoreau pode ser creditada unicamente à ressonância. Influência e inspiração também são transmitidas de uma contracultura a outra Como demonstram os escritos de Thomas Jefferson, a contracultura revolucio- por contato indireto, ou mediado. Nesse caso, uma cultura fecunda outra através do nária do Novo Mundo buscou inspiração e modelos nas formas de vida e de gover- tempo por intermédio de obras de arte, registros e lendas. Nos últimos cem anos, à no adotadas pelos povos nativos americanos. De fato, os Artigos da Confederação medida que as contraculturas proliferaram a um ritmo sem precedentes e a facilidade foram estruturados a partir de acordos intertribais nativos. Muitos dos grupos de acesso ao depósito planetário de idéias e imagens chegou a níveis cibernéticos, esse contraculturais que nasceram no mesmo terreno dois séculos mais tarde, durante a cabo ligando contraculturas começou a se emaranhar com fascinante intensidade. explosão contracultural dos anos 1960, se voltaram para essa mesma fonte, adotan- Embora não tenha a vitalidade e o imediatismo do contato direto, o contato media- do modelos de vida tribal e mesmo formas de vestir baseadas nos padrões dos do tem sido fundamental para definir o conteúdo conceitual das contraculturas. Platão, americanos nativos. Porém, parece pouco provável que o entusiasmo disseminado cuja jornada filosófica teve como ponto de partida seu envolvimento com a contracultura entre contraculturalistas dos anos 1960 pelos índios americanos tenha tido sua socrática da Grécia antiga, deixou um substancial legado escrito. Desde então, várias origem nos documentos escritos pelos pais da pátria. Mais uma vez, a semelhança permutações de pensamento neoplatônico serviram de base a um grande número de deve ser creditada à ressonância. contraculturas, do gnosticismo dos primeiros cristãos ao transcendentalismo da Nova A chave para compreender ressonâncias aparentemente misteriosas entre Inglaterra do século XIX. E no século XX, os escritos do poeta Ezra Pound reviveram o legado dos trovadores, de influência sufi, e o transmitiram à contracultura literária da contraculturas distantes no tempo e no espaço pode ser os valores profundos e Geração Perdida. Em todos esses exemplos, uma tradição contracultural anterior é básicos que as contraculturas partilham. Esses valores, bem como outras caracterís- revivida e uma posterior é formatada e definida por intermédio do contato indireto. ticas que as contraculturas têm em comum, são apresentados no capítulq 2. Ressonância Prévia O terceiro fio de ligação de continuidade contracultural é um tipo de ressonância A parte I de Contracultura através dos tempos começa investigando as anti- cuja fonte é um mistério. É a freqüentemente impressionante semelhança de idéias, gas histórias de Prometeu e Abraão. Essas histórias nos dizem muito acerca das 16 CONTRACULTURA ATRAvts DOS TEMPOS PREFACIO 17 motivações que movem as contraculturas e os papéis que elas desempenham na O principal critério para a inclusão de contraculturas foi a sua identificação cultura como um todo. Assim, a parte I, então, busca identificar os elementos pelo amplo público contemporâneo. Os autores acreditam que muitos leitores irão definidores da contracultura. apreciar novas visões de movimentos e personagens conhecidos-de Sócrates aos A parte II é um relato cronológico de contraculturas fundamentais que surgi- beats-oferecidas por este quadro da evolução de contraculturas de todo o mundo ram de 500 a.C. até o início do século XX, começando com o movimento iniciado através do tempo. No caso do leitor desapontado por descobrir que sua contracultura por Sócrates na Grécia antiga e terminando com a boêmia parisiense do inicio do predileta ficou de fora deste livro, os autores esperam que ele possa encontrar século XX que produziu o cubismo, o dadaísmo, a "Geração Perdida'' e aquele nestas páginas muitas expressões de criatividade, coragem e visão que reflitam solitário criador de uma linguagem alternativa chamado James Joyce (além de fielmente o personagem ou grupo excluído. outras tendências artísticas e culturais). Cada contracultura abordada na parte II exerceu uma influência que se desdobrou através do tempo, conseguindo uma enorme expressão geográfica. De legados e vidas A parte III pesquisa a impressionante profusão de contraculturas que floresceram na segunda metade do século XX, da agitação pós-Hiroshima dos hipsters america- O verdadeiro poema não é aquele que o público lê. Há sempre um nos dos anos 1950 até os ciberpunks e os ativistas antiglobalização dos anos 1990. poema não impresso no papel, que coincide com a produção deste, estereotipado na vida do poeta. É aquilo em que ele se transformou por intermédio de seu trabalho. A questão não é como a idéia é ex- Arranhando a superfície pressa em pedra, tela ou papel, mas em que grau ela conquistou for- ma e expressão na vida do artista. Sua verdadeira obra não estará na Como investigação de contraculturas mundiais, contraculturalistas e sua impor- galeria de nenhum príncipe. tância para a história, Contracultura através dos tempos é necessariamente incom- Henry David Thoreau pleto. Contraculturas de algum tipo e magnitude muito provavelmente surgiram em quase todas as regiões do mundo, em quase todas as épocas da história. Da mesma Embora novidades revolucionárias em arte, no pensamento ou na forma, muitos indivíduos isolados com valores e inclinações contraculturais - em espiritualidade costumem com maior freqüência ter surgido de um ambiente outras palavras, contraculturalistas solitários produziram trabalhos de importân- contracultura!, a grande inovação - não importa quão contrária ao status quo cia e influência, a despeito da falta de um grupo contracultura! de apoio. Seria prati- possa ser-não constitui em si uma contracultura. A verdadeira contracultura é camente impossível registrar, na estrutura narrativa de um único livro, cada movida por um impulso muito mais profundo do que apenas o desejo de inovar contracultura ou contraculturalista que deixou um registro histórico. ou derrubar convenções. Os autores fizeram muitas escolhas dificeis - e algumas vezes arbitrárias -, A contracultura não pode ser construída ou produzida: precisa ser vivida. Se a que implicaram a exclusão de importantes grupos e personagens contraculturais. contracultura valoriza ampliar as fronteiras da arte, ela valoriza muito mais levar a Pode-se argumentar que muitos dos que foram descartados - desde sábios da vida como uma experiência artística em progresso. Se a contracultura valoriza o floresta e antigos hereges tantristas da antiga Índia até Mark Twain, o grande pensamento inovador, ela se empenha ainda mais em exprimir essa idéia na ação iconoclasta americano do século XIX - são tão importantes quanto aqueles que do momento. Se a contracultura abraça o espírito, ela não defende o contato perió- foram incluídos. De certa forma, este livro só é capaz de arranhar a superfície de seu dico com a divindade por intermédio de qualquer gestual arbitrário; em vez disso, tema sem se transformar em uma enciclopédia de verbetes curtos. busca viver cada dia como a expressão dinâmica e constante do próprio espírito. 18 CONTRACULTURA ATRAVÉS DOS TEMPOS Os artefatos de uma determinada contracultura são subprodutos, não produtos Des/Orientação finais de uma vida contracultural. Por esse motivo, Contracultura através dos tempos se dedica tanto a contar histórias quanto a analisar obras de arte, idéias e crenças. Algumas das histórias incluídas neste livro são bem documentadas-as experiências de vida de Thoreau, as complicadas mas férteis interações sociais de Sylvia Beach, James Joyce e Ezra Pound, as palhaçadas dos Merry Pranksters. Outros casos reproduzidos são origi- Antes de tudo, obrigado a Timothy e Dan por essas introduções otimistas de- nalmente apócrifos-os estranhos e subversivos ensinamentos das tradições taoísta, mais. Como o idiota proverbial de muitas histórias contraculturais de outrora, eu zen e sufi; as lendas românticas deixadas na trilha dos trovadores. Os dois tipos de mergulhei de cabeça na impetuosa corrente caótica da história humana armado histórias nos ajudam a estabelecer uma ligação com as vidas em meio aos legados. apenas de suas belas visões e mapas. São histórias daqueles que criaram e fizeram parte de contraculturas. De como É, eu tentei tecer uma colcha adoravelmente simétrica com os fios multicoloridos essas pessoas coexistiram, criaram, arriscaram, ousaram, sacrificaram, conquista- desses períodos culturais altamente diferentes, esperando, por fim, encontrar um ram e fracassaram que revelam a fonte viva de onde brota o legado contracultural. objeto bem definido cuja coerência seria óbvia até mesmo para a inteligência O julgamento de Sócrates nos diz muito mais sobre a essência da contracultura do mediana. que as longas dissecações e sistematizações do pensamento socrático feitas por Mas, maldição, as pessoas são engraçadas - inclusive não intencionalmente. Platão; a visão de Timothy Leary de sua própria morte diz muito mais do que Olha, turma, as coisas que eu descobri ainda me fazem tremer. Grandes pessoas, manuais acadêmicos sobre como usar LSD. pessoas espertas, pessoas ligadas, pessoas extremamente criativas, obviamente en- A distinção estabelecida aqui-as vidas das pessoas e o legado cultural produ- volvidas não apenas em trabalhos transformadores, mas em extravagante insensa- zido por suas vidas - reforça a distinção entre as definições formal e informal da tez e contradição; deixando atrás de si não apenas um legado de luta destemida própria palavra "cultura': Formalmente, cultura se refere às crenças, aos costumes, pela verdadeira autonomia contracultural, mas uma pletora de questões sem res- hábitos e práticas tradicionais segundo os quais as pessoas vivem, bem como às posta. Mas deus( es ), estejam eles vivos ou mortos, são todos humanos -humanos linguagens de artes e ofícios que elas empregam. A palavra também é utilizada, demais. E iríamos querer que fosse de outra forma? menos formalmente, mas talvez mais freqüentemente, para se referir às próprias E você, caro leitor? Eu só posso humildemente pedir que, ao mergulhar nesta pessoas, aos indivíduos, grupos e sociedades que criam, perpetuam e algumas narrativa histórica, deixe suas expectativas junto à porta. Você poderá pegá-las intactas, vezes rejeitam - essas práticas e tradições. se quiser, ao final da viagem. Contracultura através dos tempos incorpora essas duas definições de cultura. Ao Há muitos tipos relacionados aqui, e eu acredito que todos vocês irão encontrar mesmo tempo em que conta histórias, este livro também estuda hábitos, sistemas de coisas merecedoras de seu interesse e atenção. Mas, atenção: nos últimos dois anos, crença e formas de arte. Mas ao dar ênfase à definição menos formal de cultura, busca enquanto escrevia isto, eu revelei o título a algumas pessoas. Muitas vezes, alguém me extrair a essência viva dos episódios culturais que investiga. falava, excitado, sobre certa sub cultura realmente obscura, eXXX:trema, normalmente envolvendo a palavra "tântrico': Entre os charmes atribuídos a essas culturas estava o DanJoy fato de que eles faziam coisas como comer cérebros ou arrancar cabeças de morcegos 23/6/2003 a dentadas e beber o sangue deles. (Insira aqui a piadinha sobre Ozzy.) Isto não é um show de horrores, galera! Embora um livro sobre esse tipo de fenômeno cultural exerça um profundo fascínio sobre este autor (não, eu não estou 20 CONTRACULTURA ATRAVÉS DOS TEMPOS sendo irônico), este trabalho em particular é sobre culturas que tiveram um impac- to muito mais amplo. Claro que eu quero que o mais ligado dos ligados sabe, aqueles com retratos de AntoninArtaud e Lynette "Squeaky"Fromme nos monitores de seus computadores-reconheça valor neste livro. Mas a minha maior esperan- ça é a de que ele tenha algo a dizer às pessoas comuns que foram influenciadas ou sofreram o impacto da "contraculturâ'; de que ele tenha algum interesse para aque- contra les que falam a contracultura; e, finalmente, que seja acessível ao curioso, que talvez nem saiba o que a palavra representa. Por isto eu resisti bravamente ao impulso de me envolver no tipo de discussão acadêmica, tão popular nas últimas décadas, que questiona nossa compreensão co- PARTE I mum de certas palavras que eu uso com freqüência neste texto, como individualidade A construção de contraculturas e liberdade. Eu não necessariamente nego o valor desses discursos, mas eu os consi- dero no mínimo impraticáveis para este estudo. Portanto, se sua idéia de Fab Four é Foucault, Deleuze, Derrida e Lacan, talvez ache esse procedimento um tanto pueril. O.k., agora que algumas das maiores expectativas dos meus leitores foram ade- quadamente frustradas, podemos seguir em frente. Bem-vindo à primeira história das contraculturas. Dan Joy teve a idéia deste livro em 1994, durante conversas com Trmothy Leary, cujo trabalho posterior em particular deu inspiração para algumas idéias fundamen- tais. Dan foi o responsável pela maior parte do esboço e das bases conceituais deste livro e contribuiu com dois capítulos, bem como com outras passagens fundamentais do resultado final. Leon Femandez deu uma inestimável contribuição ao projeto inicial, na seleção de contraculturas e idéias básicas. Eu também contribuí com o esboço e com a articulação dos conceitos fundamentais, assumindo total responsabi- lidade pelo projeto em 2001, quando foi assinado o contrato com a editora. Grade e Zarkov contribuíram com algumas linhas e parágrafos dos capítulos 1 e 8, e Dan retomou ao projeto para a última rodada de trabalho editorial. Eu sou responsável pela maior parte do texto e por pontos de vista específicos expressos aqui. Portanto, quando o pronome pessoal "Eu'' é usado, refere-se a mim (R. U. Sirius), e quando é empregado o "Nós': refere-se a Joy e a mim. Finalmente, no que se refere a pronomes de gênero como "dele" ou "delâ: eu gosto de misturá-los. Algumas vezes utilizo o genérico no masculino, outras, no feminino. Não se preocupe com isso. Ken Goffman ou R.U. Sirius 23/6/2003