Contextos de Socialização e Reconstrução Identitária de Adolescentes com Consumos de Drogas Tese de Candidatura ao grau de Doutor em Ciências do Serviço Social, submetida ao Instituto de Ciências Biomédicas de Abel Salazar da Universidade do Porto Orientadora - Celina Paula Manita Santos Categoria – Professora Associada Afiliação – Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto RESUMO O objecto de investigação de que damos conta nesta dissertação prende- se com as relações existentes entre constrangimentos sociais e estruturas psicológicas específicas de adolescentes originários de meios sociais altamente vulneráveis. Prende-se, igualmente, com as relações acima referidas e o consumo de drogas. Trata-se, pois, de analisar a existência de possíveis relações entre as trajectórias de vida, atravessadas por vários tipos de rupturas, e a entrada numa carreira de dependência de psicotrópicos. Interessa-nos, para além disso, levar a cabo uma reflexão aprofundada sobre as respostas que é necessário criar para interromper este tipo de processo comprometedor da possibilidade de o indivíduo se desenvolver mais plenamente como pessoa e como cidadão. Ao longo da primeira parte, procuramos relacionar o enfraquecimento generalizado da vida colectiva e a emergência do individualismo negativo, para mostrar como o actual contexto social contribui para a instalação de predisposições favoráveis ao consumo de drogas. Admitimos, pois, que a origem das dependências dos produtos psicotrópicos não descarta a influência dos factores internos ao indivíduo, mas também acreditamos que tais factores se desenvolvem em estreita relação com os processos, mecanismos e lógicas inerentes à acção social, no seu conjunto. Na segunda parte deste trabalho continuamos a investir na construção de uma síntese teórica e práxica para este fenómeno, no cruzamento de diversas abordagens disciplinares especificamente voltada para esclarecer os processos sociais que conduzem à formação de estruturas psicológicas de risco face ao consumo de substâncias psicotrópicas. Muito particularmente entre os jovens cujas histórias recolhemos. Para conseguir ultrapassar a concepção da droga como doença, delinquência ou vício e substituí-la pelo conceito da droga – plano de significação existencial, proposto por Cândido da Agra, que nos aparece como mais integrador e adequado à leitura deste fenómeno, consideramos importante integrar outros contributos, mais voltados para o reconhecimento dos processos macro-estruturais e das dinâmicas de interacção social responsáveis pela privação severa dos recursos que condicionam o desenvolvimento pessoal e social dos jovens que nos ocupam. Por último, na terceira parte procuramos analisar a intervenção desenvolvida no âmbito de uma comunidade terapêutica, a Clínica do Outeiro. Orientamos fundamentalmente a reflexão para a (in)adequação deste tipo de estrutura aos problemas e necessidades muito específicos dos adolescentes cujas histórias evidenciam uma acumulação de rupturas, indissociáveis, como mostramos, da insipiência das políticas de família, de educação, de redistribuição, de ordenamento urbano e de emprego. As interrogações que fomos desenvolvendo ao longo do trabalho têm por suporte empírico as trajectórias de vida de 18 jovens que, à data da entrevista, tinham idades compreendidas entre os 12 e os 19 anos, e que conheceram profundas rupturas no seu processo de socialização. No momento do estudo encontravam-se, por intervenção das Comissões de Protecção de Menores/Tribunais, na Comunidade Terapêutica da Clínica do Outeiro Socializados nos consumos de álcool e drogas, estes jovens conviveram desde sempre com progenitores e/ou outros adultos consumidores e consumidores/traficantes, familiares ou não, e sempre lhes foi fácil o acesso aos produtos. Desde muito cedo aprenderam a naturalizar tanto as práticas de consumo quanto as estratégias a mobilizar (entre outras, os roubos e o tráfico) para as manter. Não será, pois, de surpreender que tanto as idades de início de consumos tivessem sido precoces (para a maioria deles a primeira experiência verificou-se entre os 9 e os 10 anos) como, e sobretudo, lhes estivesse facilitada a iniciação a práticas delinquentes, senão mesmo as etapas que já percorreram na ―carreira‖ de delinquência. RÉSUMÉ Les relations existantes entre les contraintes sociales et les structures psychologiques très particulières d‘adolescents originaires de milieux sociaux particulièrement vulnérables constituent l‘objet de recherche de cette dissertation. Tout comme les liens entre ce premier ensemble de relations et la consommation de drogues. Il s‘agit donc d‘analyser l‘existence de liens entre des trajectoires de vie, dominées par toute une série de ruptures, et le développement d‘une carrière de toxicomane, afin de pouvoir mener une réflexion approfondie au sujet des réponses qu‘il est nécessaire créer pour interrompre ce type de processus qui affectent la possibilité de se développer comme personne et comme citoyen. Dans la première partie, nous établissons la relation entre l‘affaiblissement généralisé de la vie collective et l‘émergence de l‘individualisme négatif, afin de montrer comment le contexte social actuel contribue à installer des dispositions favorables à la consommation de drogues. Nous admettons parfaitement que les facteurs internes aux individus jouent un rôle dans la genèse des dépendances de produits psychotropes, mais nous montrons que ces facteurs, eux-mêmes, se développent en étroite relation avec les processus, mécanismes et logiques inhérentes à l‘action sociale, dans son ensemble. Dans la deuxième partie de ce travail, nous continuons notre travail de construction d‘une synthèse théorique et praxique, au croisement de diverses disciplines et perspectives, mettant en lumière les processus sociaux qui conduisent à la formation de structures psychologiques de risque face à la consommation de drogues. Tout particulièrement chez les jeunes dont nous avons recueilli l‘histoire de vie. Afin de parvenir à dépasser la conception de la drogue comme maladie, délinquance ou vice et à la remplacer par le concept de drogue – visée ayant une signification existentielle, proposé par Cândido da Agra, il faut absolument intégrer d‘autres apports, qui permettent, notamment, de reconnaître les processus macro structuraux et les dynamiques d‘interaction qui sont responsables de la très sévère privation de ressources indispensables pour le développement personnel et social des jeunes dont nous parlons. Finalement, dans la troisième partie, nous analysons l‘intervention développée dans le cadre d‘une communauté thérapeutique, la «Clínica do Outeiro». Notre réflexion vise fondamentalement élucider l‘adéquation (ou não) de ce type de structure aux problèmes et besoins très spécifiques d‘adolescents dont l‘histoire de vie est marquée par une accumulation de ruptures, indissociables, comme nous le montrons, du caractère très embryonnaire des politiques de famille, éducation, redistribution, aménagement urbain et emploi. Les interrogations que nous développons tout au long du travail s‘appuient sur l‘observation empirique des trajectoires de vie de 18 jeunes qui, au moment des interviews avaient entre 12 et 19 ans et qui tous connurent de profondes ruptures dans leur processus de socialisation. Ils se trouvaient dans la Communauté Thérapeutique en vertu de l‘intervention de Commissions de Protection des Mineurs ou de tribunaux. Il s‘agit de jeunes qui furent socialisés dans des milieux très perméables à la consommation d‘alcool et de drogues. Ayant généralement vécu avec des parents et/ou d‘autres adultes toxicomanes et toxicomanes/trafiquants, il leur fut toujours très facile d‘accéder aux substances consommées. Ils apprirent très tôt à naturaliser aussi bien les pratiques toxicomanes que les stratégies auxquelles recourir (entre elles, le vol et le trafic) afin de les maintenir. Il n‘y a donc pas lieu de se surprendre ni de l‘âge précoce auquel ils commencèrent à consommer (dans la majorité des cas, entre 9 et 10 ans), ni de leur initiation facile aux pratiques délinquantes, ni du trajet déjà parcouru dans la carrière délinquante. SUMMARY The object of research of this dissertation concerns the relations between the social constraints and the psychological structure among teenagers from vulnerable environments, as well as the close link between those relations and drug abuse are. We will try to analyze the relationships between life pathways dominated by social ruptures and drug dependency, with the purpose of finding how to stop this circle that enables youngster to develop themselves as persons and citizens. In the first part, we try to relate the generalized weakening of collective life and the dawning of the negative individualism, with the purpose of showing how the present social context contributes to the settlement of favorable predispositions to drug use. We assume that the origin of the dependence on psychotropic products is influenced by individual internal factors. However, we also believe that these factors develop in close relationship with the processes, the mechanisms and the logics behind the whole social action. In the second part we continue to build a theoretical synthesis, crossing different disciplinary approaches and aiming to clarify the social processes that lead to the development of the risk psychological structures regarding the psychotropic substances consumption. This analysis will focus mainly on the youngsters whose histories we collected. Moreover, in order to be able to replace the concept of drug as a disease, an addiction or delinquency for the concept of drug as a level of existential signification – as suggested by Cândido da Agra – it is important to integrate other contributes concerning the recognition of the macro-structural processes and the dynamics of social interaction responsible for the severe deprivation of the resources that condition the individual and social development of the teenagers. Finally, in the third part, we will analyze the work developed by a therapeutic community - Clínica do Outeiro. The focus of the discussion will be set on the (in)adequacy of these kind of structure to respond to the specific problems and needs of the teenagers whose history shows successively breakdowns, closely connected to the inefficiency of the policies of family, education, redistribution, urban planning and employment. The empirical support of the questions that have been put during the current study relies on the life course of 18 teenagers aged between 12 and 19, and who suffered deep fractures in their socialization process. At the time of the study, these teenagers where institutionalized, by court order, in the therapeutic community of Clínica do Outeiro. Socialized in the context of drugs and alcohol strong consumption , these teenagers have always lived together with drug users or users/dealers – parents or other adults both in and out of the family – and, hence, the access to these products have always been easy for them. Moreover, they learned very soon how to naturalize both the drug/alcohol use and the strategies to keep it, such as theft and traffic. Therefore, it is not surprising the precocity of the beginning of using (most of the teenagers had their first experience between 9 and 10 years old) and, mainly, the ease of developing practices of delinquency, the same steps they had already taken in their ‗career‘ of delinquency. ÍNDICE INTRODUÇÃO……………………………………………………………………………………………1 I - CRISE GENERALIZADA DOS MECANISMOS DE INTEGRAÇÃO SOCIAL: A SOCIEDADE DE RISCO……………………………………………………………………....9 Capítulo 1 - NOVO CAPITALISMO E DECLÍNIO DO COLECTIVO…………………….27 1.1. O mal-estar identitário e o problema dos usos de drogas e das toxicodependências……………………………………………………………27 Capítulo 2 - CRISE DOS MECANISMOS DE INTEGRAÇÃO SOCIAL PELA FAMÍLIA: O INDIVÍDUO E A FAMÍLIA……………………………………………….....47 2.1. Dinâmicas familiares: fraco envolvimento afectivo, fortes tensões e conflitos, rejeição mútua………………………………………………………49 Capítulo 3 – CONSIDERAÇÕES SOBRE O MÉTODO…………………………………..66 3.1. Objecto e objectivos……………………………………….....................66 3.2. Posicionamento metodológico…………………………………………..66 3.3. O mundo vivido e a atribuição de significados………………………..69 3.4. Das narrativas aos conteúdos de vida: vida subjectiva e singularidade de cada mundo vivido…………………………………………………………71 3.5. A entrevista como método de recolha de ―histórias de vida‖ – procedimentos e reflexões em torno da violência simbólica na relação social entre investigador e investigado……………………………………...72 3.6. Análise de conteúdo e interpretação das entrevistas………………...75 3.7. A selecção dos entrevistados. ―amostra intencional‖ versus ―amostra estatística”……………………………………………………………………..76 Capítulo 4 – HISTÓRIAS NARRADAS, VIDAS REVISITADAS: O QUE OS PRÓPRIOS DIZEM A RESPEITO DO SEU INÍCIO DE VIDA………………………77 Capítulo 5 – A RETIRADA DA FAMÍLIA: REPRODUÇÃO DA MARGINALIZAÇÃO/ INTERRUPÇÃO DO DESTINO SOCIAL?........................................119 II – CONTRIBUTOS PARA A CONSTRUÇÃO TEÓRICA E PARA UMA PRAXIS CIENTIFICAMENTE SUSTENTADA EM TORNO DO FENÓMENO DA TOXICODEPENDÊNCIA: UMA ABORDAGEM TRANSDISCIPLINAR……………………………………………………………………….145 Capítulo 6 – SERÃO OS CONSUMIDORES DE DROGAS PORTADORES DE ALGUMA CARACTERÍSTICA PSICOLÓGICA PRÓPRIA?...................146 Capítulo 7 – DA ―DROGA-DOENÇA‖, ―DROGA-DELINQUÊNCIA‖, ―DROGA-VÍCIO‖ À DROGA – PLANO DE SIGNIFICAÇÃO EXISTENCIAL” …………………166 7.1. Jovens de lugares de exílio……………………………………………178 7.2. A crise do laço social: emergência de um modo de socialização e de individualização inédito…………………………………………………217 III– DAS MODALIDADES DE TRATAMENTO: MODELO PORTAGE………….....................................................................................................238 Capítulo 8 - ABORDAGEM TERAPÊUTICA DA CLÍNICA DO OUTEIRO……………239 8.1. Componente comportamentalista do programa Portage…………...244 8.2. Componente cognitivista do Programa Portage…………………….246 8.3. Contributo da teoria da aprendizagem social para o Programa Portage……………………………………………………………………252 Capítulo 9 – COMO SUPERAR AS RUPTURAS QUE OCORRERAM NA CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE…………………………………….266 9.1 Desenvolver sentimentos de pertença e de auto-valorização……...267 9.2 Dimensão moral do comportamento humano………………………..269 9.3 Será que a oferta de um meio terapêutico fechado pode suprir as falhas persistentes que avassalam o mundo social dos adolescentes em causa?.....................................................................................................281 REFLEXÕES FINAIS E CONCLUSÕES: NOVO PONTO DE PARTIDA……………..328 BIBLIOGRAFIA………………………………………………………………………………345 ANEXOS……………………………………………………………………………………...354
Description: