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conselho de paz e segurança da união africana PDF

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243 BOARD OF EXECUTIVE DIRECTORS OF WORLD BANK CONSELHO DE PAZ E SEGURANÇA DA UNIÃO AFRICANA frgs 2016 UFRGS Model United Nations | VOL. 4 | 2016 244 UFRGSMUN | UFRGS Model United Nations ISSN 2318-3195 | v.4, 2016 | p.244-279 QUESTÃO DE GÊNERO EM CONFLITOS: A VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER COMO ARMA DE GUERRA Katiele Rezer Menger¹ Rafaela Pinto Serpa² RESUMO No continente africano, a violência sexual e a marginalização da mu- lher ainda são fortes elementos estruturantes de situações conflituosas. Mi- lhares de mulheres já foram sujeitas a uma série de violações, incluindo a prostituição forçada, estupro, mutilação e exploração econômica. Apesar dos avanços já obtidos pela União Africana em relação aos direitos humanos, a organização ainda precisa garantir que tais mecanismos sejam de fato ra- tificados e implementados pelos países membros. Assim, é necessário que o Conselho de Paz e Segurança da União Africana trabalhe em meios de qualificar a violência sexual como uma arma de guerra, não apenas apon- tando a importância de proteger a mulher em situações conflituosas, mas que discuta a representatividade feminina no que diz respeito aos processos de construção da paz, colocando a mulher no centro decisório das questões securitárias. 1 Katiele é estudante do 4º ano de Relações Internacionais na Universidade Federal do Rio Gran- de do Sul. 2 Rafaela é estudante do 4º ano de Relações Internacionais na Universidade Federal do Rio Gran- de do Sul. 245 CONSELHO DE PAZ E SEGURANÇA DA UNIÃO AFRICANA 1 HISTÓRICO 1.1 PAPÉIS DE GÊNERO E O ENVOLVIMENTO DE CIVIS EM CONFLITOS ARMADOS Historicamente, o papel exercido pelas mulheres em guerras e confli- tos armados foi marginalizado ou ignorado. A violência perpetrada exclusi- vamente sobre o gênero feminino, e com fins específicos de vitimar mulheres – majoritariamente com o uso de violência sexual – é recorrente e se estende também aos conflitos contemporâneos. A retratação histórica dos papéis de gênero, durante e depois da guer- ra, salienta a invisibilidade da figura feminina e, por outro lado, a valoriza- ção do masculino (Pankhurst 2003). O homem, em geral, é representado em relatos históricos ou em retratações artísticas como o ator da guerra, a figu- ra heroica que ao fim recebe as honras e tem seus sacrifícios reconhecidos. A mulher, em contrapartida, é retratada como o ser passivo, a vítima inocente cujo sofrimento maior é esperar a volta do chefe da família ao lar. Mesmo as mulheres que se envolvem diretamente com a guerra, seja no campo de operação ou no front externo (fabricando armas, produzindo tecnologias, fazendo estudos táticos), também são marginalizadas. Ainda que essa retratação dos papéis de gênero possa ter alguma varia- ção, é fato que “as histórias de coragem e bravura dos homens como lutado- res sempre tendeu a eclipsar os papeis ativos também desempenhados pelas mulheres” (Pankhurst, p. 157, 2003, tradução nossa), bem como os efeitos da guerra sobre elas. E se os papéis de gênero em períodos de guerra são estig- matizados e o feminino sofre um processo ainda maior de marginalização, a violência sexual contra a mulher tende a aumentar. Segundo um estudo da UNICEF (1996), mulheres e meninas vivenciam conflitos e deslocamentos em situação de guerra de maneiras diferentes dos homens por causa da di- visão dos papéis de gênero e, consequentemente, de suas responsabilidades nesses contextos. Há também que se destacar o fato de que em tempos de guerra é co- mum que as mulheres assumam funções ou ocupem espaços ditos ‘mascu- linos’ na sociedade civil, tendo em vista que parte da população de homens está em combate. Por outro lado, nos processos de paz pós-guerra, as mulhe- res, não raro, sofrem uma reação do governo e da sociedade contra a liber- dade e os espaços sociais conquistados, sendo forçadas a voltar às cozinhas e aos campos, como aconteceu em países como Zimbábue, Namíbia, Eritréia UFRGS Model United Nations | VOL. 4 | 2016 246 UFRGS Model United Nations e Moçambique (Pankhurst 2003). Em grande parte dos Estados Africanos a desigualdade entre homens e mulheres, bem como a incidência de violência sexual, estão entre as mais altas do mundo. Em períodos de conflito, com a fragilização do poder estatal, as já incipientes políticas de combate à vio- lência sexual são reduzidas. A União Africana, ciente desse quadro, vem se dispondo a instituir meios de alterá-lo. Assim, antes de introduzir diretamente os conceitos de violência se- xual contra mulheres e sua ocorrência em conflitos africanos como arma de guerra, é fundamental a compreensão histórica do crescente envolvimento de civis em guerras (em sua maioria mulheres) e o entendimento do conceito de violência estrutural, a qual cria as bases para a perpetração da violência sexual. Em relação às guerras, é importante destacar que o número de civis atingidos diretamente é cada vez maior em relação ao número de comba- tentes. De acordo com relatório da UNICEF (1996), as mortes de civis em guerras subiram de 5% entre o fim do século XIX e início do século XX para mais de 90% nas guerras da década de 1990. Na I Guerra Mundial, morre- ram mais civis do que soldados; já na II Guerra, a antiga União Soviética perdeu 9 milhões de soldados para 16 milhões de civis (Seifert 1996). Se- gundo Seifert (1996), há um envolvimento sistêmico mundial da população civil em conflitos, principalmente mulheres e crianças. Cabe ressaltar que conflitos armados também tendem a criar novas organizações familiares, como agrupamentos de refugiados, em grande par- te liderados ou compostos majoritariamente por mulheres e crianças. Du- rante as guerras civis da República Democrática do Congo, Libéria, Serra Leoa e, mais recentemente, Costa do Marfim, muitos dos espaços onde estes grupos se refugiavam foram sujeitos a crimes de violência sexual (UNI- CEF). A Guerra Civil da Serra Leoa, finalizada em janeiro de 2002, durou mais de uma década e deixou metade da população desabrigada, além de 50 mil mortos, 100 mil mutilados e mais de 250 mil mulheres estupradas. Na Guerra Civil da República Democrática do Congo, iniciada em 1996, mor- reram mais de 3 milhões de civis e mais de 3 milhões ficaram desabrigados, fazendo desta um conflito mais mortal para civis do que qualquer outro desde a Segunda Guerra Mundial (UNICEF). Além disso, agências da ONU estimam que mais de 200 mil mulheres foram estupradas na República De- mocrática do Congo desde 1998, sendo a maioria em decorrência direta ou indireta do conflito (ONU). Ademais, adentrando mais especificamente a problemática de gênero 247 CONSELHO DE PAZ E SEGURANÇA DA UNIÃO AFRICANA em conflitos, também há que se considerar a questão da violência estrutu- ral contra mulheres. Segundo Leatherman apud Finger (2013), a violência estrutural se efetiva por meio da supressão de direitos e oportunidades, da imposição de dificuldades ao acesso a recursos e a espaços decisórios. Em relação ao gênero, a violência estrutural é visível nas desigualdades entre homens e mulheres em diversas áreas (Finger 2013). Leatherman (2011) afirma que a violência sexual em conflitos está in- timamente relacionada a condições socioeconômicas e culturais preexisten- tes baseadas em opressão de gênero, e que essa desigualdade estrutural é uma das grandes condicionantes para que mulheres sejam vitimadas. Em um relatório de 2011 da campanha da Secretaria Geral da ONU pelo fim da violência contra a mulher, se atesta que a violência contra as mulheres não se limita a uma cultura, região ou país específico, ou a grupos específicos de mulheres dentro da sociedade. As raízes da violência contra as mulheres estão na persistente discriminação contra elas. É a cultura de inferiorização da mulher em relação ao homem que ‘justifica’ a violência sexual como mais um meio de fortalecer a submissão delas. 1.2 A VIOLÊNCIA SEXUAL COMO ARMA DE GUERRA Quando se trata de violência sexual como arma de guerra, a questão de gênero é uma variável central. A violência sexual em conflitos é uma bar- bárie que afeta milhões de pessoas, mas principalmente mulheres e meninas. Caracteriza-se a violência sexual como arma de guerra quando ela é empre- gada como uma estratégia consciente, utilizada em larga escala por grupos armados para humilhar os adversários, aterrorizar as pessoas e destruir as sociedades (United Nations 2011). Estupros³ em massa e outros tipos de violência sexual em tempos de crise ou guerras não são um novo fenômeno. Todavia, pode-se destacar que somente depois que as atrocidades a que mulheres foram submetidas du- rante a Guerra na Bósnia-Herzegovina4 ganharam atenção internacional, houve uma preocupação generalizada em como explicar o estupro e a vio- lência sexual em tempos de guerra e como enquadrá-los em crimes contra a 3 Seguindo a definição utilizada por tribunais de crimes de guerra, define-se por estupro o ato coercitivo (sob uso de violência física ou ameaça de violência sobre a vítima ou terceiros) de pene- tração do ânus ou da vagina pelo pênis ou outro objeto, ou da boca pelo pênis. Estupro está incluso na categoria de violência sexual, que inclui também a retirada forçada de roupas e agressão sexual sem penetração, como a mutilação genital (Wood 2006). Vale ainda ressaltar que o estupro não é considerado um ato sexual, mas um ato de violência e de submissão, em que o estuprador não busca o prazer sexual, mas o sofrimento da vítima (Pankhurst 2003). UFRGS Model United Nations | VOL. 4 | 2016 248 UFRGS Model United Nations humanidade (Seifert 1996; Wood 2006). Além disso, cada vez mais mulheres passaram a ocupar espaços - como a academia ou organizações internacio- nais - que lhes permitem se apropriar da temática do estupro e trazê-la como uma questão a ser debatida politicamente e não mais ignorada ou relativi- zada. Acadêmicas feministas têm sido pioneiras em estabelecer a visão de que a violência sexual é uma forma social de poder, sendo estruturada pelas dinâmicas de gênero (Seifert 1996; Kirby 2012). O estupro, em situação de guerra ou não, é um instrumento de domesticação. Ele quebra o espírito, humilha, doma (...). Sua men- sagem para mulheres e meninas é a de que vamos ter em nossos próprios corpos somente o controle que é concedido por homens e, assim, em geral, somente o domínio sobre espaços que nos são concedidos pelos homens. (...) Se há um conjunto de funções funda- mentais de estupro, é para exibir, comunicar e produzir ou manter o domínio (...) Estupro é uma linguagem supra-cultural de domina- ção masculina (Card 1996, p. 6, tradução nossa). O estupro transmite a mensagem de que mulheres precisam de prote- ção. A ameaça constante de estupro produz uma sociedade de mulheres que, em geral, acabam por se dedicar a serviços ‘inferiores’ e subservientes aos homens como forma de garantir a proteção masculina, criando laços com aqueles a que se submetem e desenvolvendo inclusive o sentimento de grati- dão pela suposta proteção advinda de sua submissão (Card 1996). Em casos de guerra, segundo Card (1996), o estupro visa romper estruturas familiares e alianças, fragilizando as estruturas sociais e fortalecendo o sentimento de superioridade dos homens. Em caso de guerra, esse sentimento fortalece o elo entre os combatentes estupradores. 4 A partir das direções políticas estabelecidas na guerra na Bósnia-Herzegovina, territórios fo- ram organizados etnicamente e houve uma redefinição das categorias étnico-nacionais. Soldados combatiam nas linhas de frente e, simultaneamente, inúmeras atrocidades aconteciam em casas, vilas e cidades. Além dos campos de detenção e concentração, houve campos específicos para es- tupro, que nesse conflito foi utilizado como arma de guerra e um instrumento de limpeza étnica e de tentativa de extermínio (Peres 2011). O abuso sexual de mulheres bósnias-muçulmanas por forças bósnio-sérvias era sistemático e generalizado, sendo, posteriormente à guerra, considerado por tribunais internacionais um crime contra a humanidade. Os crimes sexuais foram investiga- dos por uma comissão específica da ONU e dentre as características deste crime destacadas no relatório da comissão, há a ênfase na vergonha e humilhação propositais dos abusos. Alguns eram cometidos em frente à família das vítimas, e havia também a escolha preferencial de meninas jo- vens ou líderes comunitárias (Wood 2006). 249 CONSELHO DE PAZ E SEGURANÇA DA UNIÃO AFRICANA Ruth Seifert (1996) aponta que o estupro é utilizado como arma de guerra para destruir a cultura de uma nação e fragilizar o inimigo. Segundo a autora, em tempos de guerra, é a mulher que permanece como mante- nedora da família e da unidade comunitária, portanto sua destruição física e emocional visa destruir a estabilidade social e cultural da comunidade. Além disso, os efeitos psicológicos que estupros em massa têm podem levar à desvalorização e dissolução de todo um grupo, já que a “posse” forçada da mulher é vista pelo homem em sociedades patriarcais como um “bem” seu sendo violado (Finger 2013). Também, é importante ressaltar que a estig- matização de vítimas de estupro, as quais muitas vezes são culpabilizadas ou até punidas pela violação sofrida, contribui para que muitas delas não denunciem a prática. Assim sendo, qualificar estupro como arma de guerra significa, mais do que a caracterização do seu uso sistemático como um meio de afetar o ini- migo, o reconhecimento de que concepções patriarcais permeiam as socieda- des, e, por conseguinte, os conflitos. Ao reconhecer que o estupro como arma de guerra é fruto da polarização dos papeis de gênero, se admite que há uma estrutura social anterior ao conflito que permeia uma cultura de submissão e objetificação da mulher. Essa estrutura patriarcal varia muito entre as socie- dades (e mesmo entre suas divisões internas), mas se faz presente em todas as organizações sociais de alguma maneira, o que leva à conclusão de que mesmo em períodos de paz esse tipo de violência, bem como os mecanismos para coibi-la, tem uma grande variação. Portanto, há de se considerar que esses mecanismos são geralmente mais fracos durante a guerra, resultando em índices mais elevados de violência sexual (Wood 2006). Segundo Elizabeth Wood (2006), há pelo menos três variáveis que po- dem fortalecer e ampliar a violência sexual em período de guerra. A primei- ra seria a oportunidade: uma vez que a guerra tende a aumentar a vulnera- bilidade de mulheres e meninas, sendo que os combatentes tendem a serem homens jovens, longe de controle social ou de seu locus habitual, o que con- tribui para uma diminuição dos constrangimentos para a consumação de violência sexual, principalmente se não há nenhuma política de coibição des- se tipo de ato ou nenhum mecanismo coercitivo efetivo. A segunda seria o incentivo, dado que a violência sexual pode ser incentivada como estratégia para degradação do inimigo (seja ele outro Estado ou um grupo dentro do Estado). Por último, a terceira variável seria a violência como meio de atin- gir os objetivos do grupo. Neste caso, a violência seria tolerada como forma de solidariedade e fortalecimento de laços entre combatentes, como forma de recompensa, e também como forma de garantir domínio sobre o inimigo. UFRGS Model United Nations | VOL. 4 | 2016 250 UFRGS Model United Nations Essa questão da recompensa é exemplificada na criação de campos de estu- pro, como ocorreu no Japão e em Berlim durante a segunda guerra mundial (Wood 2006). O domínio do grupo sobre o inimigo também foi latente no caso de Ruanda, quando houve um esforço em propagar a sexualização de mulheres Tutsis, criando um clima de validação da violência sexual em mas- sa como forma de humilhar tal etnia. 2 APRESENTAÇÃO DO PROBLEMA 2. 1 VIOLÊNCIA SEXUAL EM CONFLITOS AFRICANOS O uso de violência sexual como arma de guerra marcou o continente africano nas últimas décadas. Conflitos no Burundi, República do Congo, Costa do Marfim, Libéria, Ruanda, Serra Leoa, Uganda, República Demo- crática do Congo (RDC), República Centro-Africana (RCA), Chade, Etiópia, Nigéria, Somália e Sudão tiveram como uma de suas características o uso generalizado de estupros, violência física e psicológica baseadas no gênero; portanto, as mulheres foram as grandes vítimas dessas atrocidades (Arieff 2010). Estima-se que entre 100.000 e 250.000 mulheres tenham sofrido al- gum tipo de violência sexual em meio ao genocídio em Ruanda, em 1994. Em Serra Leoa, durante os 10 anos de guerra civil, mais de 60.000 mulheres foram violadas. Mais de 40.000 mulheres também sofreram violência sexual na guerra civil da Libéria, entre 1989 e 2003. Na República Democrática do Congo os números de estupros chegam a 200.000 desde 1998 (NU 2014). Conforme relatado por Binaifer Nowrojee - integrante da Coligação para Direitos Humanos das Mulheres em Situações de Conflito - para a Africa Renewal (2005): A violência contra a mulher não era apenas acidental para o confli- to, mas foi rotineiramente usada como um instrumento de guerra. A violência sexual foi utilizada de forma generalizada e sistemática como arma, e as mulheres foram estupradas em maneiras extra- ordinariamente brutais (Ben-Ari e Harsch 2005, tradução nossa). Entretanto, períodos de paz não se caracterizam por igualdade de gê- nero e não-violência na África. O sistema patriarcalista é predominante no continente africano, fazendo com que as mulheres sejam tratadas como su- bordinadas aos homens. A elas é negado o acesso à terra, crédito, saúde e 251 CONSELHO DE PAZ E SEGURANÇA DA UNIÃO AFRICANA educação, muitas vezes sendo feito a partir de leis, como a proibição de he- ranças ou da posse terras. A exclusão das mulheres dos processos de toma- das de decisão econômica e política inviabiliza mudanças profundas, como criação de novas leis mais igualitárias. Como consequência desses fatos, as mulheres são a maioria dos pobres na África, chegando a 70% em alguns pa- íses (Mutume 2005; Njogu e Mazrui). No entanto, a principal consequência da cultura patriarcal é a agressão contra as mulheres. Estima-se 53% das mulheres africanas são propensas a agressão masculina (Sanday 1981). Des- sa forma, os conflitos agravam as desigualdades entre homens e mulheres na África (United Nations 2016b). Como podemos notar, o uso do estupro ou outros tipos de violência ba- seada no gênero foi amplamente utilizado de maneira estratégica nas guer- ras africanas, e também permeia a sociedade africana nos tempos de paz. Mesmo que muitas vezes o descrevam como um dano colateral da guerra, ao analisar como a violência sexual foi empregada em cada Estado africano, percebemos claramente um objetivo para seu uso: atores estatais e não-esta- tais utilizaram amplamente a violação das mulheres como arma de guerra, enquanto uma prática de genocídio e terrorismo (Arieff 2010). 2.1.1 VIOLÊNCIA SEXUAL COMO GENOCÍDIO Assim como o alvo principal da violência sexual em conflitos são as mulheres, devido a questões estruturais explicadas na seção anterior, em muitos casos, a questão étnica é também essencial para a escolha do alvo. Dessa forma, como ocorrido no conflito em Ruanda, a violência sexual per- petradas nas mulheres tutsis tinham por objetivo a eliminação da etnia como um todo. O estupro como genocídio, segundo Claudia Card (1996), visa o enfra- quecimento do tecido nacional, político e cultural de uma sociedade, modifi- cando, nas futuras gerações, o reconhecimento identitário. Segundo o Guia da Cruz Vermelha sobre as mulheres afetadas em conflitos armados (2004), isso ocorre porque “as mulheres estão em risco em virtude do fato de que elas muitas vezes são retratadas como portadoras simbólicas da sua identi- dade cultural ou étnica, e como as produtoras das gerações futuras” (p.10). Em decorrência, Ruth Seifert (1996) complementa afirmando que o estupro como genocídio é uma tentativa de eliminação da cultura e de conexões so- ciais de determinada população. Além da limpeza de fato, com a morte de milhares de mulheres, o ge- nocídio pode ser através do que Card denomina “imperialismo genético”. O UFRGS Model United Nations | VOL. 4 | 2016 252 UFRGS Model United Nations objetivo dessa ação é “impregnar” o grupo étnico inimigo, “contaminar” o sangue e os genes, e dessa forma, as novas gerações não pertenceriam mais ao grupo, mas sim ao grupo étnico do inimigo (Card 1996; Farwell 2004). Em Ruanda, por exemplo, milhares de mulheres tutsis ficaram grávidas de seus agressores. Dessa forma, a violência sexual como mecanismo de lim- peza étnica visa perturbar as estruturas sociais e impedir a reprodução cul- tural e de fato do grupo alvo (Arieff 2010). Assim, há uma destruição da coesão, do espírito e da identidade do inimigo (Farwell, 2004), como Carolyn Nordstrom (1998) expressou em seu artigo sobre a guerra em Moçambique, em que “a primeira vez que um moçambicano disse-me que a guerra havia tirado deles tudo o que tinham, incluindo quem eles eram, eu percebi que a identidade e a personalidade, bem como os corpos físicos, são alvos estraté- gicos de guerra” (p.105). O estupro e outros atos de violência sexual podem ser atos genocidas também porque estes estão ligados à intenção dos autores em cometerem tais atos. Conforme o artigo 2° da Convenção sobre a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio (conhecida como Convenção do Genocídio): O genocídio é qualquer dos seguintes atos cometidos com a inten- ção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, tais como: (A) Assassinato de membros do grupo; (B) Causar grave dano físico ou mental a membros do grupo; (C) Sujeitar intencionalmente um grupo a condições de vida que, calculadamente, levem a destruição física no todo ou em parte; (D) Medidas destinadas a impedir nascimentos dentro do grupo; (E) Transferência forçada de crianças do grupo para outro grupo. (United Nations 1948, 280 tradução nossa, grifo nosso) Como podemos observar de acordo com o ponto (B), o ato de violência sexual pode ser caracterizado como genocídio nos casos em que através da violência física e psicológica empregada contra as mulheres, busca-se a des- truição total de um grupo. Além do ponto (B), os pontos (C) e (D) podem amplamente caracterizar a violência contra as mulheres ocorrida em confli- tos como o de Ruanda (HRW 1996; Seifert 1996). O exemplo do conflito em Ruanda, relatado no documento da Human Rigths Watch “A violência sexual durante o genocídio de Ruanda e suas consequências” (1996), mostra, através de relatos de autores e vítimas, que

Description:
sistemático de violência contra mulheres (Mustafayeva 2016). A violência (Mustafayeva 2016, tradução nossa). Cadernos pagu, 117-162. Pillay
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