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CONFEDERALISMO DEMOCRÁTICO* Abdullah Öcalan PDF

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* CONFEDERALISMO DEMOCRÁTICO Abdullah Öcalan Tradução de Daniel de Oliveira Cunha ** Bülend Karadağ*** Para Özlem De modo sucinto e preciso, no fi m dos anos 70, o poeta e ensaísta mexicano Octavio Paz resumiu o “estado da arte” sobre o que ele denominava o “câncer do estatismo”: “A grande realidade do século XX é o Estado. Sua sombra cobre todo o planeta. Se um fantasma percorre o mundo, esse fantasma não é o comunismo, mas o da nova classe universal: a burocracia. Embora talvez o termo burocracia não seja inteiramente aplicável a esse grupo social. A antiga burocracia não era uma classe, mas uma casta de fun- cionários unidos pelo segredo de Estado, enquanto a burocracia contemporânea é realmente uma classe, caracterizada não apenas pelo monopólio do saber administrativo, ao modo antigo, como do saber técnico. E há algo cada vez mais decisivo: tem o controle das armas e, nos países comunistas, o da economia e dos meios de comunicação e publicidade”. E prossegue, sobre o legado de certa literatura política sobre a “Im- pessoa” que é o Estado: “Por tudo isso, qualquer que seja nossa defi nição da burocracia moderna, a pergun- ta sobre a natureza do Estado é a pergunta central da nossa época. Por infelicidade, só há pouco renasceu entre os estudiosos o interesse por esse tema. Para cúmulo dos males, nenhuma das ideologias dominantes – a liberal e a marxista – contém elementos sufi cientes que permitam articular uma resposta coerente. A tradição anarquista é um precedente valioso, porém, é preciso renová-la e ampliar suas análises: o Estado que Proudhon e Bakunin conheceram não é o Estado totalitário de Hitler, Stalin e Mao. Assim, a pergunta sobre a natureza do Estado no século XX continua sem resposta”. Nas últimas quatro décadas, houve uma profunda renovação dos estudos sobre o Estado, por exem- plo, em autores tão diferentes como Michel Foucault (em seus cursos ministrados no Collège de France) e Michael Mann, para muito além das insistências neo-hegelianas que caracterizaram a “Teoria Geral do Estado”, disciplina bem conhecida nas faculdades de direito, ao longo dos séculos XIX e XX. Mas também houve importantes atualizações e derivações do pensamento anarquista, a exemplo do “anarquis- http://www.freeocalan.org/wp-content/uploads/2012/09/Ocalan-Democratic-Confederalism. pdf. ** Daniel de Oliveira Cunha: Programa de Direitos Humanos da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo; Centro de Estudos Rurais e Urbanos e Imargens-USP. E-mail: oliveiracunha@hotmail. *** Bülend Karadağ, nascido na Turquia, é mestre em Economia pela Universidade de Ankara (Turquia) e em Ciência Política pela Universität Kassel (Alemanha) e pela Berlin Economic and Law School. E-mail: [email protected]. com. CADERNOS CERU V. 26, n. 2, dez. 2015 115 Conferderalismo democrático mo verde” de Murray Bookchin. Muitos pensadores, Estado e teorias do nacionalismo, sobre feminismo e em diálogo permanente com uma nova tradição críti- sobre ecologia. Sua defesa foi publicada em quatro ca formada nos países ditos “desenvolvidos”, como volumes com o titulo Manifesto da Civilização De- Bookchin, Noam Chomsky, Immanuel Wallerstein e mocrática. A pretensão de dar uma proposta completa outros, moldaram suas ideias próprias não nos am- e de relacionar os conceitos principais do Confedera- bientes acadêmicos, mas no calor das lutas conduzi- lismo Democrático com seu caso judicial individual das por movimentos de resistência popular, entre os ao longo da sua defesa, aparentemente, deixou uma quais o Subcomandante Marcos, em Chiapas, e Ab- obra difícil para iniciantes, particularmente para mui- dullah Öcalan, no Curdistão turco. tos daqueles que hoje em dia são inspirados pela resis- tência da Rojava, no norte da Síria. Além dos esforços Öcalan é não só um dos líderes do movimento recentes de tradução iniciados, devido à reputação do curdo contemporâneo, mas também uma das mentes luta curda contra o ISIS, as obras do Öcalan ainda têm mais produtivas do mundo intelectual curdo. Ele vem poucas traduções em outras línguas. Sem dúvida, o abordando vários aspectos da sociedade curda nos rápido crescimento dos curdos como um novo poder domínios da antropologia, da política linguística, da no político do Oriente Médio aumentou a necessidade política internacional, do direito internacional e da de se introduzir as ideias do Öcalan a outras partes do abordagem feminista chamada jineologia (do curdo mundo o mais rapidamente possível. Por isso, alguns jîn, “mulher”). É autor de mais de quarenta livros e trechos de seu Manifesto da Civilização Democrática um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores da ou os assuntos abordados pelo conceito Confedera- Curdistão (PKK, em curdo), criado em 1978. Os estu- lismo Democrático têm sido reproduzidos por uma dos de Öcalan foram caracterizados por necessidades comissão transnacional do PKK, a fi m de aumentar do movimento curdo espalhadas por quatro países da internacionalmente o conhecimento das propostas do região Oriente Médio (Turquia, Irã, Iraque e Síria). movimento curdo. Após ter sido capturado no Quênia por uma operação internacional organizada pelos serviços secretos dos Essa adaptação, simplifi cada e introdutória, vários países (EUA, Israel, Grécia, Turquia, entre ou- do manifesto Demokratik Konfederalizm foi lançada tros), ele tem sido mantido em regime de isolamento, primeiramente em inglês pela iniciativa de “Freedom sendo o único prisioneiro da ilha-prisão de İmralı. No for Abdullah Öcalan – Peace in Kurdistan”, em 2011. entanto, ele aproveitou seu tempo para elaborar suas Depois, este foi traduzido em muitas línguas, como o propostas sobre a questão curda e sobre sua solução alemão, o francês, o italiano, o espanhol e, mais re- política. Em 2005, o Tribunal Europeu dos Direitos centemente, o português. Um dos responsáveis por Humanos condenou a Turquia por ter decidido sen- sua composição é o ativista curdo Memed Aksoy, tenciar o réu à pena capital depois de um processo atualmente residente em Londres. injusto. Quando a Corte pediu novo julgamento para A proposta de Öcalan é inovadora em vários Öcalan, ele utilizou essa oportunidade para dar uma sentidos, sobretudo por sua ênfase na jineologia – visibilidade a sua proposta do que ele chamou de uma forma renovada de abordagem do feminismo, Confederalismo Democrático. De fato, isto serviu para muito além da poderosa simbologia das com- para abrir uma brecha em seu isolamento e comparti- batentes do YPJ em Rojava –, e também na agroe- lhar suas propostas internacionalmente. cologia, como dois pilares essenciais do Confedera- Desde então, ele aprofundou sua defesa com lismo Democrático. O desenvolvimento agrário foi, estudos sobre relações internacionais no quadro da durante algumas décadas, negligenciado por muitos historia da região do Oriente Médio, sobre teorias do movimentos socialistas de libertação nacional, espe- CADERNOS CERU V. 26, n. 2, dez. 2015 116 Conferderalismo democrático cialmente no continente africano, em parte porque a de propriedade, além de ser um termo mais utilizado experiência do colonialismo, de triste lembrança, foi no antigo direito colonial de matriz britânica. Em seu durante muito tempo associada aos investimentos lugar, preferimos “auto-administração”. Um dos con- maciços da administração colonial no setor agrário e, ceitos mais recorrentes no texto, “nation-state”, equi- com a transformação de antigas colônias de povoa- vale ao termo turco “Ulus-Devlet”, e ambos seriam mento europeu, como Angola e a Rodésia do Sul, em traduzidos ao pé da letra como “nação-estado”. Esta verdadeiros celeiros agrícolas. Apenas dois países também seria talvez a preferência do estudioso dos africanos buscaram inovar em direção a uma espécie nacionalismos Anthony D. Smith, quando ele afi rma de agrário-socialismo (como o chamou Björn Hett- que “podemos falar de nações-Estado no caso dos Es- ne): a Tanzânia, de Julius K. Nyerere, e principalmen- tados poliétnicos que aspiram a ser nação e procuram te o Burkina Faso, de Thomas Sankara, que também se tornar nações unifi cadas (mas não homogêneas) se havia lançado em propostas, incrivelmente bem- por meio de medidas de acomodação e integração”. -sucedidas, de renovação ecológica em um território No entanto, preferimos utilizar o termo “Estado na- semiárido. Nos últimos anos, os curdos têm saído ao cional”, de aspecto mais geral, uma vez que Öcalan se mundo para conhecer novos métodos agroecológicos, refere não apenas aos Estados do Oriente Médio, mas que, aliás, não se resumem à inovação tecnológica, aos Estados de todo o mundo. mas também à inovação social levada adiante por po- pulações rurais que recusam qualquer passividade. Enfi m, seu questionamento incisivo sobre a indispensabilidade do Estado nacional chama a aten- ção para os riscos envolvidos na persistência sobre ÖCALAN, Abdullah. Kürdistan: Devrim Manifesto- seus amálgamas ideológicos, geralmente de laivos su. Demokratik Uygarlık Manifestosu. Diyarbakır: Ararat Yayıncılık, 2012. racistas, exclusivistas e belicistas, entre os quais se destacam, no caso do Oriente Médio: o sionismo de PAZ, Octavio. O ogro fi lantrópico. Rio de Janeiro: Guanabara, 1987. p. 14-15. Theodor Herzl, o kemalismo de Atatürk e Ayşe Afet İnan, o turanismo de Hüseyin Nihâl Atsız, o pan-a- SMITH, Anthony D. Nacionalismo. Lisboa: Teore- rabismo de Michel Áfl aq e Gamal Abdel Nasser, o ma, 2001. p. 31. “xiismo sunitizado” (segundo Ernest Gellner) dos aia- tolás, o neo-otomanismo de Fethullah Gülen e Ahmet Davutoğlu, o nacionalismo curdo de Masoud Barzani e Jalal Talabani, além de muitos outros micronaciona- lismos de aspecto imitativo e dos fundamentalismos islâmicos ressurgidos. Por fi m, alguns termos foram traduzidos tendo em vista considerações críticas. Assim, para “sexism”, preferiu-se “sexismo” ao invés de “machis- mo”, em razão de o primeiro termo ser mais abran- gente e menos biologizante que o segundo. Já a tra- dução melhor encontrada para “self-administration” fugiu ao correspondente habitual “administração pró- pria”, uma vez que o adjetivo tem subjacente a ideia CADERNOS CERU V. 26, n. 2, dez. 2015 117 Conferderalismo democrático da modernidade capitalista naquele momento. Não acreditávamos, contudo, que qualquer es- Abdullah Öcalan quema político não original seria capaz de melhorar de forma sustentável a situação das pessoas no Orien- te Médio. Não foram o nacionalismo e os Estados nacionais que criaram tantos problemas no Oriente Médio? Por mais de trinta anos, o Partido dos Traba- Vamos, portanto, dar uma olhada mais de per- lhadores do Curdistão (PKK) tem lutado pelos direi- to no contexto histórico desse paradigma e ver se nós tos legítimos do povo curdo. Nossa luta, nosso com- podemos mapear uma solução que evite a armadilha bate pela libertação transformou a questão curda em do nacionalismo e sirva melhor à situação do Oriente um assunto internacional que afetou todo o Oriente Médio. Médio e conduziu uma solução da questão curda para dentro do alcance. Quando o PKK foi formado na década de 1970, o clima ideológico-político internacional ca- racterizava-se pelo mundo bipolar da Guerra Fria e pelo confl ito entre os campos socialista e capitalista. O PKK foi inspirado, naquela época, pela ascensão Com a sedentarização das pessoas, elas co- de movimentos de descolonização em todo o mundo. meçaram a formar uma ideia da área em que elas Nesse contexto, nós tentamos encontrar nosso pró- estavam vivendo, de sua extensão e de seus limites, prio caminho de acordo com a situação particular em área esta determinada principalmente pela natureza e nossa terra natal. O PKK nunca considerou a ques- pelas características da paisagem. Clãs e tribos que tão curda como um mero problema de etnicidade ou haviam se estabelecido em uma determinada área e de nacionalidade. Em vez disso, acreditávamos, era que ali viveram por um longo período de tempo de- o projeto de liberar a sociedade e de democratizá-la. senvolveram as noções de uma identidade comum e Esses objetivos cada vez mais determinaram nossas da terra pátria. Os limites entre o que as tribos viram ações desde a década de 1990. como suas terras natais ainda não eram fronteiras. O comércio, a cultura ou a língua não eram restringidos Também havíamos reconhecido um nexo cau- pelas fronteiras. Os limites territoriais mantiveram-se sal entre a questão curda e a dominação global do fl exíveis durante um longo tempo. Estruturas feudais moderno sistema capitalista. Sem questionar e desa- prevaleceram em quase toda parte e, de tempos em fi ar essa relação, uma solução não seria possível. Não tempos, monarquias dinásticas ou grandes impérios sendo assim, nós só seríamos envolvidos em novas multiétnicos ascenderam com suas fronteiras conti- dependências. nuamente cambiantes, tais como o Império Romano, Até agora, tendo em vista questões de etnia e o Império Austro-Húngaro, o Império Otomano ou o nacionalidade, como a questão curda, que têm suas Império Britânico. Eles sobreviveram durante longos raízes profundas na história e nas fundações da so- períodos de tempo e a despeito de muitas mudanças ciedade, parecia haver apenas uma solução viável: a políticas, porque a sua base feudal lhes permitiu uma criação de um Estado nacional, que era o paradigma distribuição de poder sobre uma vasta gama de cen- CADERNOS CERU V. 26, n. 2, dez. 2015 118 Conferderalismo democrático tros menores e secundários de poder. do poder. 1. Estado nacional e poder 2. Com o surgimento do Estado nacional, o in- As raízes religiosas do Estado já foram [por tercâmbio, o comércio e as fi nanças impulsionaram nós] discutidas em detalhe (A. Öcalan, As Raízes da a participação política e, posteriormente, somaram Civilização, Londres, 2007). Muitos conceitos e no- seu poder ao das estruturas tradicionais do Estado. ções políticas contemporâneas têm sua origem em O desenvolvimento do Estado nacional, no início da conceitos ou estruturas religiosas ou teológicas. Na Revolução Industrial, há mais de duzentos anos atrás, verdade, um olhar mais atento revela que a religião e andava de mãos dadas com a acumulação desregulada a imaginação divina trouxeram as primeiras identida- do capital, por um lado, e com a exploração sem obs- des sociais na história. Elas formaram a cola ideológi- táculos da população em rápido crescimento, por ou- ca de muitas tribos e outras comunidades pré-estatais tro. A nova burguesia, que ascendeu dessa revolução, e defi niram sua existência enquanto comunidades. queria tomar parte nas decisões políticas e nas estru- Mais tarde, depois que estruturas estatais já turas do Estado. O capitalismo, seu novo sistema eco- haviam se desenvolvido, as ligações tradicionais nômico, assim, tornou-se um componente inerente ao entre o Estado, o poder e a sociedade começaram a novo Estado nacional. O Estado nacional necessitava se desgastar. As ideias e práticas sagradas e divinas da burguesia e do poder do capital, a fi m de substi- que haviam estado presentes na origem da comuni- tuir a velha ordem feudal e sua ideologia, baseada em dade crescentemente perderam seu signifi cado para a estruturas tribais e em direitos de herança, por uma identidade comum e foram, em vez disso, transferidas nova ideologia nacional que unia todas as tribos e clãs para estruturas de poder como monarcas ou ditadores. sob o abrigo da nação. Dessa forma, o capitalismo e o O Estado e seu poder foram derivados da vontade e da Estado nacional tornaram-se tão intimamente ligados lei divinas e seu governante tornou-se rei pela graça um ao outro, que seria inimaginável um existir sem de Deus. Eles representavam o poder divino na Terra. o outro. Como consequência disso, a exploração não só foi sancionada pelo Estado, mas até incentivada e Hoje, os Estados modernos em sua maioria facilitada. chamam a si mesmos de seculares, ao afi rmarem que os antigos vínculos entre religião e Estado foram rom- Mas, acima de tudo, o Estado nacional deve pidos e que a religião não é mais uma parte do Estado. ser pensado como a forma máxima de poder. Nenhum Esta é, sem dúvida, apenas meia-verdade. Mesmo que dos outros tipos de Estado tem tal capacidade de po- instituições religiosas ou representantes do clero não tência. Uma das principais razões para isso é que a mais participem da tomada de decisões políticas e so- parte superior da classe média foi ligada ao processo ciais, eles ainda devem infl uenciar essas decisões até de monopolização de modo sempre crescente. O pró- certo ponto, assim como eles mesmos são infl uencia- prio Estado nacional é o monopólio completo mais dos por ideias e desenvolvimentos políticos e sociais. desenvolvido. É a unidade mais desenvolvida dos Portanto, o secularismo, ou laicismo, como é chama- monopólios, em termos comercial, industrial, fi nan- do na Turquia, ainda contém elementos religiosos. A ceiro e energético. Deve-se também pensar em mono- separação entre Estado e religião é o resultado de uma pólio ideológico como parte indivisível do monopólio CADERNOS CERU V. 26, n. 2, dez. 2015 119 Conferderalismo democrático decisão política. Ele, o Estado, não veio naturalmen- ciedade. Aí, cresceu como câncer, infectando todos os te. É por isso que, mesmo hoje, o poder e o Estado sinais vitais da sociedade. A burocracia e o Estado na- parecem ser algo dado, dado por Deus, por assim di- cional não podem existir um sem o outro. Se o Estado zer. Noções como Estado secular ou poder secular nacional é a espinha dorsal da modernidade capitalis- permanecem ambíguos. ta, é certamente a jaula da sociedade natural. Sua bu- rocracia assegura o bom funcionamento do sistema, a O Estado nacional também tem atribuído um base da produção de bens e os lucros para os agentes número de atributos que servem para substituir atri- econômicos interessados, tanto no Estado nacional do butos religiosamente arraigados mais antigos tais socialismo real quanto no Estado nacional propício à como: nação, pátria, bandeira nacional, hino nacio- livre-empresa. O Estado nacional domestica a socie- nal, e muitos outros. Particularmente noções como a dade em nome do capitalismo e aliena a comunidade unidade do Estado e da nação servem para transcen- de suas fundações naturais. Qualquer análise destina- der as estruturas políticas materiais e são, como tal, da a localizar e resolver problemas sociais necessita rememorativas da pré-estatal unidade com Deus. Elas apreender mais de perto essas conexões. foram colocadas no lugar do divino. Quando em épocas anteriores uma tribo sub- jugava outra tribo, seus membros tinham de adorar os 4. deuses dos vencedores. Podemos, sem dúvida, cha- mar esse processo de um processo de colonização, mesmo de assimilação. O Estado nacional é um esta- O Estado nacional, em sua forma original, vi- do centralizado, com atributos quase divinos que têm sava à monopolização de todos os processos sociais. desarmado completamente a sociedade e que mono- A diversidade e a pluralidade tiveram de ser combati- poliza o uso da força. das, em um confronto que induziu à assimilação e ao genocídio. Ele não só explora as ideias e o potencial laboral da sociedade e coloniza as cabeças das pes- 3. soas em nome do capitalismo. Ele também assimila todos os tipos de ideias e espirituais e intelectuais e de culturas, a fi m de preservar sua própria existência. Uma vez que o Estado nacional transcende sua Objetiva a criação de uma única cultura nacional, de base material, os cidadãos, ele assume uma existência uma única identidade nacional e de uma única comu- para além de suas instituições políticas. Ele precisa de nidade religiosa unifi cada. Assim, também reforça a instituições adicionais próprias para proteger suas ba- cidadania homogênea. A noção de cidadão foi cria- ses ideológicas, bem como suas estruturas jurídicas, da como resultado da busca de tal homogeneidade. A econômicas e religiosas. A burocracia civil e militar cidadania da modernidade não defi ne nada além da resultante e sempre em expansão resultante é dispen- transição da escravidão privada para a escravidão es- diosa e serve apenas para a preservação do próprio tatal. O capitalismo não pode alcançar o lucro na au- Estado transcendente, que, por sua vez, sobrepõe a sência de tais braços escravos modernos. A sociedade burocracia acima do povo. nacional homogênea é a sociedade mais artifi cial cria- da e é o resultado do “projeto de engenharia social”. Durante a modernidade europeia, o Estado teve todos os meios à sua disposição para expandir Esses objetivos são geralmente realizados pelo sua burocracia para dentro de todos os estratos da so- uso da força ou por incentivos fi nanceiros e muitas CADERNOS CERU V. 26, n. 2, dez. 2015 120 Conferderalismo democrático vezes resultaram na aniquilação física das minorias, culturas ou línguas ou em assimilação forçada. A his- tória dos últimos dois séculos está cheia de exemplos ilustrativos das tentativas violentas de criação de uma No passado, a história de estados foi muitas nação que corresponda à realidade imaginária de um vezes equacionada com a história de seus governan- verdadeiro Estado nacional. tes, a qual emprestou a eles qualidades quase divinas. Essa prática mudou com o surgimento do Estado na- cional. Agora, o Estado inteiro foi idealismo e eleva- 5. do a um nível de divindade. Diz-se frequentemente que o Estado nacional 1. está preocupado com o destino das pessoas comuns. Isso não é verdade. Pelo contrário, é o governante na- cional do sistema capitalista mundial, um vassalo da Supondo que comparássemos o Estado na- modernidade capitalista que é mais profundamente cional a um deus vivo, então, o nacionalismo seria a enredado nas estruturas dominantes do capital do que religião correspondente. Apesar de alguns elementos geralmente tendemos a considerar: ele é uma colônia aparentemente positivos, o Estado nacional e o na- do capital. Independentemente de quão nacionalista cionalismo apresentam características metafísicas. o Estado nacional possa se apresentar, ele serve na Nesse contexto, o lucro capitalista e a acumulação de mesma medida os processos capitalistas de explora- capital aparecem como categorias envoltas em mis- ção. Não há outra explicação para as terríveis guerras tério. Há uma rede de relações contraditórias por trás de exploração da modernidade capitalista. Assim, o desses termos que se baseia na força e na exploração. Estado nacional não está com as pessoas comuns – ele Seu esforço hegemônico pelo poder serve para a ma- é um inimigo dos povos. ximização dos lucros. Nesse sentido, o nacionalismo aparece como uma justifi cativa quase religiosa. Sua Relações entre outros Estados nacionais e mo- verdadeira missão, no entanto, são seus serviços pres- nopólios internacionais são coordenadas pelos diplo- tados ao divino Estado nacional nação e à sua visão matas do Estado nacional. Sem o reconhecimento por ideológica que permeia todas as áreas da sociedade. parte de outros Estados nacionais, nenhum deles po- Artes, ciência e consciência social: nenhum deles é deria sobreviver. A razão pode ser encontrada na lógi- independente. Portanto, um verdadeiro esclarecimen- ca do sistema capitalista mundial. Os Estados nacio- to intelectual necessita uma análise fundamental des- nais que deixam a falange do sistema capitalista serão tes elementos da modernidade. surpreendidos pelo mesmo destino que o regime de Saddam no Iraque experimentou ou serão postos de joelhos por meio de sanções econômicas. 2. Vamos agora derivar algumas características do Estado nacional a partir do exemplo da República da Turquia. O paradigma de uma ciência positivista ou descritiva constitui outro pilar ideológico do Estado nacional. Ela alimenta a ideologia nacionalista, mas CADERNOS CERU V. 26, n. 2, dez. 2015 121 Conferderalismo democrático também o laicismo, que tomou a forma de uma nova esse respeito, as mulheres também podem ser consi- religião. Por outro lado, ela é um dos fundamentos deradas como uma nação explorada. ideológicos da modernidade e seus dogmas infl uen- No curso da história da civilização, o patriarca- ciaram e deram sustentação às ciências sociais. O po- do consolidou sua estrutura tradicional de hierarquias, sitivismo pode ser circunscrito como uma abordagem que no Estado nacional é alimentada pelo sexismo. O fi losófi ca que é estritamente confi nada à aparência das sexismo socialmente arraigado, exatamente como o coisas, a qual é equiparada à própria realidade. Desde nacionalismo, é um produto ideológico do Estado na- que no positivismo aparência é realidade, nada que cional e do poder. O sexismo socialmente arraigado não tenha aparência pode ser parte da realidade. Sa- não é menos perigoso que o capitalismo. O patriarca- bemos da física quântica, da astronomia e de algumas do, no entanto, tenta esconder esses fatos, a qualquer áreas da biologia e até mesmo da substância do pró- custo. Isso é compreensível, tendo em vista o fato de prio pensamento que a realidade ocorre em mundos que todas as relações de poder e da ideologia de Esta- que estão além de eventos observáveis. A verdade, na do são alimentadas por conceitos e comportamentos relação entre o observado e o observador, mistifi cou a sexistas. Sem a repressão das mulheres, a repressão si mesma, na medida em que já não se adapta a qual- de toda a sociedade não é concebível. O sexismo na quer escala física ou defi nição. O positivismo nega sociedade do Estado nacional, enquanto, por um lado, isso e, portanto, em certa medida, assemelha-se à ido- dá ao macho o máximo poder, por outro lado, por meio latria dos tempos antigos, em que o ídolo constitui a da mulher, transforma a sociedade na pior de todas as imagem da realidade. colônias. Por conseguinte, a mulher é parte da nação colonial da sociedade histórica, e alcançou sua pior posição dentro do Estado nacional. Todo o poder e to- 3. das as ideologias estatais decorrem das atitudes e dos comportamentos sexistas. A escravidão da mulher é a mais profunda e disfarçada área social onde todos os Outro pilar ideológico do Estado nacional é o tipos de escravidão, opressão e colonização são reali- sexismo que permeia toda a sociedade. Muitos siste- zados. O capitalismo e o Estado nacional agem com mas civilizados têm empregado o sexismo, a fi m de plena consciência disso. Sem a escravidão da mulher, preservar seu próprio poder. Eles reforçaram a explo- nenhum dos outros tipos de escravidão pode subsistir ração das mulheres e as usaram como um reservatório e muito menos se desenvolver. Capitalismo e Estado valioso de mão de obra barata. As mulheres também nacional signifi cam o mais institucionalizado macho são consideradas um recurso valioso, à medida que dominante. Mais vigorosa e abertamente falando: o produzem descendência para proporcionar a reprodu- capitalismo e o Estado nacional são o monopólio do ção de homens. Assim, a mulher é tanto um objeto macho despótico e explorador. sexual e uma mercadoria. Ela é uma ferramenta para a preservação do poder masculino e pode, na melhor das hipóteses, avançar para se tornar um acessório da 4. sociedade masculina patriarcal. Por um lado, o sexismo da sociedade do Es- tado nacional reforça o poder dos homens. Por outro Mesmo que aja aparentemente como um Es- lado, o Estado nacional transforma sua sociedade em tado secular, o Estado nacional não se coíbe de usar uma colônia por meio da exploração das mulheres. A uma mistura de nacionalismo e religião para seus pro- CADERNOS CERU V. 26, n. 2, dez. 2015 122 Conferderalismo democrático pósitos. A razão é simples: a religião ainda desempe- do povo, uma vez que outro Estado somente seria a nha um papel importante em algumas sociedades ou criação de injustiça adicional e cercearia ainda mais o em partes delas. Em particular o Islã é muito ativo a direito à liberdade. este respeito. A solução para a questão curda, portanto, pre- No entanto, a religião na era da modernidade cisa ser encontrada em um confronto que enfraqueça não mais desempenha seu papel tradicional. Seja ela a modernidade capitalista ou a empurre para trás. Há uma crença radical ou moderada, a religião no Esta- razões históricas, peculiaridades sociais e desenvol- do nacional não tem mais uma missão na sociedade. vimentos reais, assim como o fato de que a área de Ela só pode fazer o que for permitido pelo Estado na- povoamento dos curdos se estenda pelos territórios de cional. Sua infl uência ainda existente e sua funcio- quatro diferentes países, o que torna a solução demo- nalidade, que pode ser abusivamente utilizada para a crática indispensável. Mais além, há também o impor- promoção do nacionalismo, são aspectos interessan- tante fato de que todo o Oriente Médio sofra de uma tes para o Estado nacional. O xiismo do Irã é uma das defi ciência de democracia. Graças à situação geoes- armas ideológicas mais poderosas do Estado iraniano. tratégica da área de povoamento dos curdos, projetos Na Turquia, a ideologia sunita desempenha um papel democráticos bem-sucedidos dos curdos prometem similar, porém mais limitado. avançar a democratização de todo o Oriente Médio. Permitam-nos chamar esse projeto democrático de Confederalismo Democrático. Após uma breve introdução precedente sobre o Estado nacional e sobre noções básicas de sua ideo- logia, vamos ver agora por que a fundação de um Es- Esse tipo de governo ou administração pode tado nacional curdo não faz sentido para os curdos. ser chamado de administração política não estatal ou de democracia sem um Estado. Processos democráti- Nas últimas décadas, os curdos não só luta- cos de tomada de decisão não podem ser confundidos ram contra a repressão pelos poderes dominantes e com os processos conhecidos como administração pelo reconhecimento de sua existência, mas também pública. Estados apenas administram enquanto de- pela libertação de sua sociedade das amarras do feu- mocracias governam. Estados são baseados em po- dalismo. Por conseguinte, não faz sentido substituir der; democracias são baseadas em consenso coletivo. as antigas correntes por outras, ou mesmo aumentar a A função pública no Estado é determinada por de- repressão. Isto é o que a fundação de um Estado na- creto, embora ela possa ser em parte legitimada por cional poderia signifi car no contexto da modernidade eleições. Democracias recorrem a eleições diretas. O capitalista. Sem oposição contra a modernidade capi- Estado recorre à coerção como meio legítimo. Demo- talista, não haverá espaço para a libertação dos povos. cracias baseiam-se na participação voluntária. Esta é a razão pela qual a fundação de um Estado na- cional curdo não é uma opção para mim. O Confederalismo Democrático é aberto a ou- tros grupos e facções políticas. Ele é fl exível, mul- O chamado para um Estado nacional sepa- ticultural, antimonopolístico e orientado para o con- rado resulta de interesses da classe dirigente ou dos senso. Ecologia e feminismo são pilares centrais. No interesses da burguesia, mas não refl ete os interesses CADERNOS CERU V. 26, n. 2, dez. 2015 123 Conferderalismo democrático quadro desse tipo de autoadministração, uma econo- ro para o confederalismo. Não os monopólios, mas a mia alternativa irá se tornar necessária, aumentando sociedade está no centro do foco político. A estrutura os recursos da sociedade ao invés de explorá-la, assim heterogênea da sociedade está em contradição com fazendo justiça às necessidades múltiplas da socieda- todas as formas de centralismo. O centralismo pro- de. nunciado somente resulta em erupções sociais. Desde tempos imemoriais, os povos têm sem- pre formado grupos livres de clãs, tribos ou outras co- A. munidades com aspectos federais. Desse modo, eles foram capazes de preservar sua autonomia interna. Mesmo a governança interna dos impérios empregou métodos diversos de autoadministração para suas di- A composição contraditória da sociedade ne- ferentes partes, que incluíram autoridades religiosas, cessita de grupos políticos com formações ao mes- conselhos tribais, reinos, e mesmo repúblicas. Por mo tempo verticais e horizontais. Grupos centrais, isso é importante compreender que mesmo impérios regionais e locais necessitam ser organizados dessa aparentemente centralistas seguem uma estrutura or- maneira. Somente eles, cada um por si próprio, são ganizacional confederada. O modelo centralista não é capazes de lidar com sua situação concreta especial e um modelo administrativo desejado pela sociedade. desenvolver soluções apropriadas para problemas so- Em vez disso, ele é a fonte da preservação do poder ciais de longo alcance. É um direito natural expressar dos monopólios. a identidade cultural, étnica ou nacional com o auxílio de associações políticas. Todavia, esse direito neces- sita de uma sociedade ética e política. Quer seja sob C. a forma de Estado nacional, de república ou de de- mocracia – o Confederalismo Democrático é aberto a transigências relativas a tradições estatais ou gover- A classifi cação da sociedade em categorias e namentais. Ele permite coexistência equitativa. termos segundo certo padrão é produzida artifi cial- mente pelos monopólios capitalistas. O que importa em uma sociedade como esta não é o que você é, mas B. o que você aparenta ser. A aparente alienação da so- ciedade de sua própria existência estimula o afasta- mento da participação ativa, uma reação que é sem- pre chamada de desencantamento com a política. No Novamente, então, o Confederalismo Demo- entanto, as sociedades são essencialmente políticas crático apoia-se na experiência histórica da sociedade e orientadas para valores. Monopólios econômicos, e em sua herança coletiva. Não é um sistema político políticos, ideológicos e militares são construções que moderno arbitrário, mas, sim, acumulação de história contradizem a natureza da sociedade por unicamen- e de experiência. É uma decorrência da existência da te empenhar-se pela acumulação de lucro. Eles não sociedade. criam valores. Uma revolução também não pode criar uma nova sociedade. Ela pode somente infl uenciar o O Estado continuamente orienta-se para o tecido ético e político da sociedade. Algo além fi ca a centralismo, de modo a seguir os interesses dos mo- critério da sociedade política de base ética. nopólios de poder. Exatamente o oposto é verdadei- CADERNOS CERU V. 26, n. 2, dez. 2015

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dos de Öcalan foram caracterizados por necessidades do movimento nacionalismo religioso e racial incrustado em seu ín- timo. Do ponto de vista
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