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Colonização centro-africana e seus desdobramentos: o genocídio de Ruanda Andreia Terzariol PDF

27 Pages·2016·0.54 MB·Portuguese
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Colonização centro-africana e seus desdobramentos: o genocídio de Ruanda Andreia Terzariol Couto1 Resumo A história da região dos Grandes Lagos é indissociável da historiografia europeia que surgiu com a colonização, desde a coleta de depoimentos dos habitantes da região, que recuperaram a fala de seus ancestrais, aos escritos estrangeiros. No entanto, deve-se ter cuidado para evitar certas armadilhas provenientes de explicações simplistas. A cultura política da região fascinou a todos os observadores que por ali passaram no final do século XIX e encontraram sistemas monárquicos organizados, sobretudo em um lugar cujas populações não dispunham nem de escrita, nem de sistema monetário. Tudo funcionava pelas mensagens verbais, ligações pessoais, redistribuição do gado, através de uma história baseada na memória preservada em mitos e lendas que remontam ao antigo reino dos Banyaruandas. A história seguia seu curso até que, no final do século XIX chegam os colonizadores, estruturando seu domínio a partir de escolhas entre Tutsis e Hutus, os primeiros, privilegiados, aceitaram de bom grado a situação que lhes era apresentada. Durante décadas, os Tutsis viveram confortavelmente essa colocação, até que o próprio quadro interno da sociedade não pudesse mais se sustentar sobre os pilares dos privilégios étnicos. Esse foi um dos geradores dos violentos conflitos que Ruanda iria testemunhar. Palavras-chave: História da África; África dos Grandes Lagos; Ruanda; Genocídio As origens ancestrais Os primeiros testemunhos sobre o país das mil colinas vieram de caravanas suahilis2 que se embrenhavam no coração de África para comercializar seus produtos e de lá voltavam falando de uma região de lagos e reinos. Estes primeiros contatos foram 1 Jornalista (UNIP), Bacharel em Letras (UFOP); Mestre em Jornalismo (UMESP) e Doutora em Planejamento e Desenvolvimento Sustentável (UNICAMP). Professora do curso de Jornalismo da Universidade Paulista, pesquisadora sobre África Central, autora do livro O país das mil colinas: relato do último genocídio do século XX, obra na qual o presente artigo se baseia. [email protected] 2 Essas caravanas foram também as responsáveis pela disseminação da língua kiswahili pelo interior da África, hoje uma espécie de língua franca falada por quase todo o continente, e uma das línguas oficiais de vários países da África Central e do Leste. Macek, J. Introdução ao estudo do Kiswahili. São Paulo, 2006 (mimeo). substituídos pelas expedições europeias, notadamente anglo-saxônicas que, utilizando as rotas das antigas caravanas, vão então revelar aos ocidentais a existência desses reinos.3 No entanto, enquanto os exploradores descrevem Burundi e Uganda, Ruanda é vagamente mencionada por Henry M. Stanley, durante a conferência de Berlim, em 1885, e somente em 1894 o país será visitado por um alemão. Na sequência, vem o período de ocupação colonial nos países vizinhos, como Quênia, Uganda, Burundi e Congo (este último transformado em Congo Belga em 1908). Os reinos ali encontrados no século XIX foram assim denominados porque possuíam os atributos habituais desse tipo de regime: o poder supremo de um soberano, as regras de transmissão dinástica, as referências mítico-religiosas, o controle do território segundo regras militares e fiscais e uma jurisprudência à qual estavam sujeitos todos os súditos.4 Mas essa instituição não nasceu em uma data precisa. Ela é fruto de uma maturação, e também de rupturas a partir de linhagens de clãs muito antigas, cuja origem, à falta de fontes documentais escritas, é muito difícil de precisar. No ocidente, pode-se lançar mão de documentos e da reconstituição histórica através de referências bíblicas, por exemplo. No caso da África, nada disso foi possível. Era preciso, então, decifrar o imaginário social regional capaz de explicar a adesão e a identificação das populações às suas respectivas linhagens (Chrétien, 2001). A explicação para o surgimento dos reinos e seus reis na região dos Grandes Lagos tem sua origem na memória de seu povo a partir da interpretação de histórias fantásticas de uma dominação lendária. Uma delas trata da lenda dos Bacwezi, conhecida principalmente no oeste ugandês, mas difundida além da região e reproduzida na historiografia contemporânea.5 Mesmo sendo a estrutura monárquica muito diferente em Ruanda com relação aos outros antigos reinos da região, a simbologia das narrativas de origem também mostra uma configuração que implica na existência de grandes clãs.6 3 Chrétien, 1999, p. 16. 4 A. T. Couto e J. A. de Souza. O tambor e a toga. Os tribunais gaccaca de Ruanda. In: Curso de Direito. Leituras essenciais. Campinas: Alínea, 2015. 5 O “Império dos Bacwezi” é explicado, primeiro, a partir de linhagens de clãs e de toda uma série de dinastias reinando a partir dos séculos 16 e 17. A influência de um certo número delas se apoia no controle de lugares sagrados ou na presença de um de seus ancestrais nas lendas. 6 Chrétien, ‘Mythes et strategies autour des origines du Rwanda – XIX e XX siècles: Kigwa e Gihanga, entre le ciel, les collines et l’Ethiopie’, in: Id. et Triaud (Jean-Louis) éds, 1999, p. 281-320. 2 A combinação de uma “ingenuidade etnográfica”, por parte dos primeiros europeus a interpretarem essas histórias, somada ao interesse político dos povos tradicionalistas locais, no contexto da ideologia racial propagada pelos colonizadores, acabou reforçando a ideia da existência de elementos sobrenaturais a uma situação específica da história da região. Nela, os Tutsis surgem como povos superiores, descendentes dos Bacwezi. Manuais e atlas ocidentais reforçaram, durante muito tempo, sem que tivessem quem os contestasse, a existência do “Império dos Bacwezi”. Ainda hoje, numerosos são os observadores da região que parecem ter necessidade de acreditar na existência desse império e utilizam essa lenda para explicar a emergência dos reinos dos Grandes Lagos.7 Outra vertente legendária parte diretamente em direção às origens de um reino, por volta do final do século XV, identificado sob o nome de Bunyoro, da dinastia dos Babito, vinda depois dos Bacwezi. O reino de Bunyoro é mencionado como um império multissecular que teria dado origem a outros reinos. Essa narrativa se encontra, entre outras, nas tradições da zona meridional dos países dos Grandes Lagos oferecendo uma verdadeira genealogia dos reinos ramificados dos Bacwezi. 8 A chegada dos europeus na segunda metade do século XIX coincidiu com o declínio desse reino e com a difusão da teoria hamita, segundo a qual os Tutsis eram descendentes dos povos hamitas. A lenda dos Bacwezi, que os descreve como grandes guerreiros e até mesmo o papel representado pelos chefes das tribos que se pintavam com kaolin9 branco em certos ritos observados pelos europeus, vai ser interpretada de uma maneira racial, reforçando a tese de um antigo povo “caucasiano” na região.10 7 Não havendo documentação que registrasse a existência desse império, as especulações em torno dos Bacwezi apóia-se nas histórias orais, lendas e mitos da região. Segundo levantou Chrétien (op. cit., p. 82), “Emin Pacha em 1881 descreve os “cantores mágicos ambulantes” chamados de “Wichwezi”; Roscoe, 1923, diz que “ninguém pode dizer se eles representam realmente as famílias reais ou se são personagens puramente míticas; Cory e Hartnoll, 1945, sobre o país haya afirma: ‘Aqui os Bachwezi não são conhecidos como seres humanos que de fato existiram, mas são considerados como seres puramente sobrenaturais’. O fato é que há um vasto espaço cultural percorrido por crenças aparentadas” (Chrétien, 2001., p.78-79). 8 Chrétien, 1999, p. 84. 9 Koalin: minério branco utilizado em diferentes culturas africanas para pintar o corpo durante certos rituais. 10 Chrétien, op. cit., p. 85. O explorador John H. Speke (Journey of the Discovery of the source of the Nile, Edimbourg, 1863, apud Chrétien, p. 86), lançou a hipótese de uma antiga invasão de Galla (os Galla são mais precisamente os Oromo da Etiópia, sendo o termo galla não mais que um sobrenome), ancestrais de grupos pastoris Hima, que explicavam a existência dos reinos dessa região por uma influência vinda da 3 Toda essa estrutura montada pelos europeus para explicar a origem tanto dos Tutsis como dos Hutus, fez com que essas teorias racistas tivessem sucesso junto aos notáveis dos países envolvidos (Ruanda, Burundi e Quênia), que se viam em posição de destaque nessas histórias interpretadas pelos europeus. Foi assim que o antigo chefe Nyakatura via na evocação do ‘império’ Banyoro uma ferramenta de promoção de sua pequena pátria, ligada à tese da ‘raça dos homens brancos conhecidos como Abachwezi’.11 O reino dos Banyaruandas Os primeiros exploradores viram-se admirados com o que se depararam na região onde hoje se encontra Ruanda: um país verde, ondulado e arredondado por colinas sem fim, de clima fresco, altitude elevada, em meio às florestas, campos cultivados de bananeiras, cereais e criações de gado. O reino estava organizado em complexo sistema monárquico, existindo ao lado de uma forte tradição oral apoiada em uma língua refinada, nutrida de referências míticas.12 O que mais impressionou os primeiros viajantes foi a complexidade das sociedades e das capitais reais.13 No entanto, para os colonizadores, a história do lugar só começou a ser contada com a sua chegada e o passado que foram desvendando foi enquadrado de acordo com seus interesses. Até a chegada do europeu, o reino dos Banyarwanda, resguardado pelas muralhas naturais da sua cadeia montanhosa, pôde proteger-se de invasões, de tráfico e sua língua única preservou-se, mesmo ao lado do francês do colonizador. Também devido a essa proteção natural, manteve-se afastado de contatos com outros povos, conservando suas tradições de forma regular sem interferências externas. E como não tinham ambições de conquistas territoriais, mantiveram-se em suas colinas por tempos e tempos, enquanto que a presença de estrangeiros era também evitada. O comércio com os vizinhos era bastante Etiópia. Através de uma incrível “bricolage etimológica”, Speke imaginava o papel de uma ‘raça admirável de origem semi-hamita’. As coletas de tradições nesse contexto deixavam o caminho livre para todas as especulações: o segundo nome de Rukidi (Branco e Preto) fazia dele um mestiço; como os nobres Banyoro tinham dito a Speke que seus ancestrais vinham do Norte, ele concluiu que ‘estes últimos ligam-se, em tempos remotos, a uma origem européia’. No início do século XIX, em 1902, outro autor, Harry Johnston (A survey of He ethnography of Africa. Journal of the Royal anthropological institut, 1913, p. 43, apud Chrétien, p. 86), dá autoridade à equação galla-hima-cwezi. Segundo ele, as lendas dos Bacwezi ilustravam, com o ‘império de Kitwara’, criado por um ‘estoque quase caucasiano’, o ‘apogeu da civilização hamita’ nessa parte da África. O declínio teria vindo com a ‘negrificação’ dos governantes (Chrétien, 2001, p. 86). 11 Chrétien, op. cit., p. 87. 12 Chrétien, 2001, p. 12. 13 Chrétien, 2001, p. 69. 4 limitado e Ruanda não possuía sistema monetário. Kinyarwanda, a língua oficial e dos ancestrais do reino de Ruanda, é formada pelo único povo chamado Banyarwanda, este dividido em etnias que, por suas atividades, são assim designadas: os Hutus, ou agricultores, constituem 85% da população; os Tutsis, ou criadores de gado, 14% da população e a menor delas, os Tuás, os caçadores e fabricantes de cerâmica, 1%. Essa configuração, constituída há tempos ancestrais, não guarda registros escritos de sua formação, o que começou a ser feito somente com a chegada do elemento europeu.14 O que se sabe é que o rei, denominado mwami,15 era da etnia Tutsi, e o local real era a cidade de Nyanza, ainda hoje preservada. O poder do mwami cobria todo o território de Ruanda e seu reinado esteve estabelecido durante séculos. A partir da chegada dos europeus, surge a primeira geração de africanos escolarizados que darão, eles mesmos, sua interpretação sobre a história de seu país. No entanto, vale lembrar que essas pessoas estavam sob a influência do elemento colonizador e, por isso, procuravam dar uma versão, a mais “civilizada” possível, da história de seu país, no intuito de agradar ou responder às solicitações e aos julgamentos do dominador. Este, por sua vez, deu aos africanos da região uma versão amplamente marcada por teses racistas, opondo uma etnia a outra, reforçada pelos missionários religiosos, que ligavam as populações da região a linhagens que fantasiosamente remontavam às histórias bíblicas. O final do século XIX marca a afirmação de incipientes estudos sociológicos que se amparam no chamado “darwinismo social”, uma transposição superficial de alguns pressupostos retirados da teoria do biólogo Charles Darwin sobre a origem das espécies. Em determinado momento de suas fundamentações teóricas, Darwin discorre que, na natureza, as espécies caminham de um estado primitivo para outro mais evoluído, sobrevivendo somente as mais fortes e capazes de se adaptar ao meio. O darwinismo 14 No início do período colonial, a estratificação social de Ruanda foi amplamente divulgada da seguinte forma: “(...) o peso demográfico dos Hutus (85% ou 90%), dos Tutsis (9% ou 14%) e dos Twas (1%) é um elemento particular de referência. De fato, esse percentual não chega a ser um problema propriamente dito, mesmo porque não foram coletados tendo por base métodos adequados. Esses dados são antes uma repetição da representação do ponto de vista da sociedade colonial belga” (Anastase Shyaka, The Origin of Rwandan Conflict, 2005). 15 O personagem que intitulamos ‘rei’ na nossa língua europeia é denominado, em Ruanda, de mwami, que sugere, segundo a etimologia, a fecundidade e a frutificação. O corpo do rei está impregnado de uma tripla vocação de força natural, de capacidade cultural e de poder (Chrétien, 2001, p. 111). 5 social parte dessa premissa para explicar a presença europeia na África: seriam os europeus os elementos capazes de fazer com que as culturas “primitivas” encontradas por eles nesse continente pudessem atingir um estado “evoluído” e “civilizado”. A tese de que o grupo Tutsi seria descendente de povos “mais evoluídos”, serviu, na época, aos propósitos dos dominadores. Ao elegerem uma etnia “superior”, esta os apoiaria em seu projeto colonialista e legitimaria sua presença na região. O isolamento dos Banyaruandas manteve-se até a segunda metade do século XIX, quando são registradas as primeiras presenças de europeus em solo ruandês, inicialmente através da pessoa do conde alemão Gustav Adolf Von Götzen, em 1894, que entrou em Ruanda pelas cachoeiras do rio Rusumo, a sudeste, e cruzou o país até alcançar o lago Kivu, passando no caminho por Nyanza, a cidade real, onde encontrou o mwami Rwabugiri. Nessa época, a África já vinha sendo oficialmente fatiada entre as potências europeias e à Alemanha coube a parte ruandesa, sem que seu povo suspeitasse da partilha. A divisão havia ocorrido durante a Conferência de Berlim, em 1885. Após o fim da Primeira Guerra Mundial, os alemães perdem o direito à colônia para os belgas, que têm então interesse em tomar posse de sua fatia, quando o povo de Ruanda toma ciência de que seu território pertencia à Bélgica. Assim como o vizinho Burundi, considerado como país irmão, Ruanda não teve seu território demarcado artificialmente pelos colonizadores, como outros países africanos, podendo seu povo manter sua língua e o país seus contornos territoriais como na época dos antigos mwami. O fato de estar situada distante da costa, de o acesso ao território ser difícil e não haver aparentemente nenhuma riqueza que fizesse brilhar os olhos do colonizador, como minérios e pedras preciosas, fez com que os belgas também demorassem algum tempo para se interessar pelo pequeno reino. Cultivadores e pastores Nessa região da África, um traço decisivo deve ser observado com relação à dependência de um grupo em relação a outro: a posse de grandes rebanhos bovinos. À parte das funções materiais (leite, carne, pele, defumados etc.), o gado tem um lugar eminente no imaginário social e na simbologia das relações humanas (o dote, o presente de reconciliação, a ligação de dependência ou de uma multa). Assim, o grupo criador e 6 detentor de rebanho, como os Tutsis, historicamente, sempre teve um lugar de destaque em detrimento ao outro grupo, os agricultores Hutus. O historiador Edward Steinhart, que trabalhou sobre os Nkore, citado pelo pesquisador francês Chrétien, sugere ver nas ‘crises ecológicas’ do século XVIII o momento decisivo de estabelecer uma relação de dependência dos agricultores com referência aos grandes criadores de gado. Em caso de seca e de fome, as tropas podem sair em busca de pasto e comida, enquanto que os campos não se deslocam: os cultivadores, em troca de víveres e de proteção, se encontravam em posição frágil propícia à negociação de relações sociais favoráveis aos detentores dessa riqueza móvel que era o gado.16 Durante muito tempo, perdurou a tese defendida por muitos autores de que a sociedade do reino de Ruanda era conformada de modo semelhante ao feudalismo europeu. O território pertencia ao rei e próximo a ele estava uma camada da população formada pelos Tutsis, os aristocratas, em menor número, que eram os donos do gado e para eles trabalhavam os Hutus, despojados de qualquer bem. Essa configuração foi amplamente divulgada nos estudos sobre Ruanda desde seus tempos mais remotos. Embora a sociedade estivesse dividida entre criadores de gado e cultivadores de terra, há autores que discordam dessa transposição de um “feudalismo” para os campos ruandeses.17 A tese, muito discutida, de um “feudalismo africano” é aberta em 1967 pelo sociólogo Frances Georges Balandier, do Centro de Estudos Africanos da École des 16 Steinhart, E., in: Crummey, D. et Stewart, C., 1981, p. 115-155. ‘Food production in pre-colonial Ankole’, contribution au Congrès international d’anthropologie d’Amesterdam, 1981, apud Chrétien, 2001, p. 123. 17 Não é verdadeiro que todos os Tutsis pertencessem à nobreza em muitas regiões; famílias Hutus aristocráticas foram colocadas no poder pela hereditariedade. Por essas razões, as categorias Tutsi, Hutu, e Twa não eram classes sociais no sentido europeu do termo. Os próprios Tutsis viveram em diferentes condições sociais. Economicamente, politicamente e até socialmente eles estavam organizados em hierarquias em comparação uns com os outros e a mesma situação estendia-se com relação aos Hutus (J. Semujanga, op. cit., p. 88, apud Shyaka, 2005). Além disso, "Tutsiness" and "Hutuness" não significam uma espécie de pertencimento que era invariavelmente imutável. Os mecanismos de promoção social para "Tutsificação" para os Hutus e também para os Twas eram caracterizados pelo ganho de um importante rebanho de gado, que poderia ser resultado de três atos fundamentais: por uma decisão do rei; pelo casamento com um (a) Tutsi importante; ou pela adoção de um (a) Tutsi. O fenômeno reverso, a "Hutuficação", uma espécie de rebaixamento social, era também possível para os Tutsis que se encontrassem privados de seus rebanhos. Estes fatos mostram claramente que, naquele período, "Tutsiness" e "Hutuness" não estava concebida na mente das pessoas (Shyaka, 2005, p. 13). 7 Hautes Études em Paris e permanece até hoje não só por estudiosos como pelo senso comum. De acordo com Chrétien,18 é somente a partir das décadas de 1970 e 1980 que se forma uma primeira geração de antropólogos determinados a emancipar a historiografia do peso do senso comum, dos compiladores coloniais, dos missionários e notáveis letrados interessados em reafirmar as teses racistas que opunham “senhores” Tutsis aos “servos” Hutus. Essas pesquisas deram frutos em forma de inúmeras obras, tendo uma implicação positiva na coleta paralela de tradições orais e estudos linguísticos. As relações entre Tutsis e Hutus foram definidas pelo colonizador belga em termos de dominação e submissão, opondo os Hutus, submissos e destituídos da posse do gado, aos Tutsis, proprietários de rebanhos e opressores.19 Essa concepção foi adotada pelos europeus,20 transpondo uma situação do velho continente para explicar uma situação encontrada na África.21 Junto com os colonizadores surgem as teorias para explicar a presenças de três fenótipos distintos: Tutsis, Hutus e Twas passam, assim, a ser identificados como descendentes de distintos povos, de acordo com o que foi teorizado na época. Segundo a teoria Hamita, a organização política, social e econômica de Ruanda foi concebida (construída) pela invasão Tutsi, cujos distantes ancestrais teriam sido de origem eurasiana.22 O país da eterna primavera Ruanda, um pequeno país de apenas 26.338 km,23 é visualizado às vezes como um ponto na imensa vastidão do mapa africano. Politicamente, encontra-se dividido em onze 18 2001, p. 15-16. 19 F. Rutembesa, in Cahier du CCM nº 5, Ruptures socioculturelles, ed. de I'UNR, 2001. 20 F. Rutembesa, in Rwanda. Identité et citoyenneté, Butare, Ed. de l'UNR, 2003. 21 Shyaka, 2005, p. 14. 22 A questão da concorrência da criação de gado é sem dúvida um dos elementos das crises sociais contemporâneas, no contexto de transição demográfica e do forte crescimento da população rural. Mas essa história social de longa duração foi ocultada por um discurso racial” (Chrétien, 2001, p. 55). 23 Ruanda está situada na região da África Central, a aproximadamente 100 quilômetros ao sul do Equador e não tem acesso ao mar, cujo porto mais próximo é o de Dar-es-Salan, na Tanzânia, distante cerca de 1550 quilômetros. Faz divisa com Uganda ao norte, Tanzânia ao leste, República Democrática do Congo a oeste e Burundi ao sul. Seu território minúsculo faz com que tenha a maior densidade demográfica da África (340 hab./km²) e a terceira do mundo, com uma concentração de nove milhões de habitantes. Uma de suas principais características é a altitude – mais de 1000 metros – e as colinas que cobrem praticamente todo o 8 prefeituras: Kigalingali, Gitarama, Butare, Gikongoro, Cyangugu, Kibuye, Gisenyi, Ruhengeri, Byumba, Kibungo e Umutara. Com uma população estimada em 12.337.138 habitantes (2014)24, é designado como “o país das mil colinas”, pois, viajar através de seu território, é ondular-se em montanhas sem fim, algumas alcançando até três mil metros de altitude. Por essa característica, foi também chamado de Tibete Africano e, por seu clima ameno e temperado, de Suíça Africana ou o “país da eterna primavera”. O país está coberto por algumas áreas que hoje são de preservação natural, como a floresta de Nyungwe (com uma importante população de chimpanzés), transformada em reserva florestal; o Parque Nacional Virunga ou Parque dos Vulcões, onde se encontra a famosa Montanha dos Gorilas. Na fronteira com a Tanzânia está o Parque de Akagera, também transformado em uma reserva natural onde ainda podem ser encontrados antílopes, zebras, girafas, búfalo, hipopótamo, leão, leopardo e hiena, com uma vegetação que caracteriza uma espécie de savana. Cada uma dessas áreas representa um tipo especial de ecossistema. Ruanda é um país cuja economia sempre esteve alicerçada na agricultura e seu território, dividido entre pastagens e cultivos, apesar do relevo irregular, é utilizado em todas as suas possibilidades. A configuração geográfica montanhosa forçou seus habitantes a desenvolver um tipo de plantação chamado de escadarias, aproveitando o máximo possível as encostas das colinas. Nas escadarias são produzidas até hoje principalmente banana e mandioca. Com os belgas, no início do século XX, chegam também os missionários religiosos, na sua maioria católicos, seguidos pelos protestantes, estabelecendo escolas, seu território. A montanha mais alta é a Kalisimbi, com 4507 m. Mais de 50% de seu território é composto por terras cultivadas, normalmente nas encostas das montanhas em forma de terraços. Os recursos naturais são escassos, a não ser gás natural, principalmente no lago Kivu. As maiores exportações estão entre café e chá (Briggs, 2001). A capital da república, Kigali, é o centro administrativo e econômico do país, governado atualmente pelo regime presidencial, cujo primeiro presidente eleito após o genocídio ocorreu nas eleições presidenciais em junho de 2003. Paul Kagame venceu as eleições com larga maioria dos votos. A expectativa de vida é 50,1 anos para mulheres e 48,1 anos para os homens. A maioria da população é católica (90%), convivendo com luteranos, com um crescente número de muçulmanos. A língua é kinyarwanda, sendo a segunda língua o francês. Menos de 50% da população é analfabeta (Briggs and Booth, 2001). 24 http://www.indexmundi.com/pt/ruanda/populacao_perfil.html. Acesso em 06/06/2016. 9 centros médicos e catequizando os Banyaruandas, numa tentativa de livrá-los do seu paganismo. Os missionários católicos representam uma parte importante na história da dominação franco-belga da África central. Foram fundamentais para apaziguar as populações com relação ao elemento estranho que ali estava para subjugar, manipular, orientar os rumos da população local. Também foram os responsáveis por apoiar as teorias racistas, em voga na época, bem como aplicar o sistema educacional que tinha como base o ensino religioso, a serviço da metrópole. Desde a época em que chegaram os europeus e forçaram a adesão dos locais ao catolicismo,25 a religião tem um espaço importante na vida das pessoas26. Assim como o Estado, a Igreja apoiava a preferência étnica pela educação. No início da colonização, os beneficiários da educação eram majoritariamente os Tutsis, únicos autorizados ao acesso à educação formal; aos Hutus era permitido fazer somente os estudos primários. Logo, foram os Tutsis os escolhidos para ocuparem os principais cargos administrativos do país e as tarefas mais nobres, relegando os Hutus a cidadãos de segunda categoria. A Escola para os Filhos dos Chefes, criada em Nyanza, a cidade real, em 1907, aceitava somente Tutsis. Em 1955, havia cerca de 2 400 escolas de vários tipos e níveis em Ruanda, a maioria de estudos primários, com um total de 215 mil alunos. Percebendo a estrutura social existente em Ruanda, os belgas reforçaram as diferenças, então de forma artificial, jogando uns contra os outros, no intuito claro de tirarem proveito dessa situação. A posição confortável para os Tutsis fez com que aceitassem de bom grado a escolha belga. Para a outra etnia, no entanto, as divergências só fizeram fomentar o ódio e a consciência de inferioridade diante da outra etnia. Esse jogo, levado a cabo pelos europeus, lhes serviu de instrumento facilitador para governar o país, e foi útil até que os Tutsis, mais poderosos e instruídos que os Hutus, quisessem, eles próprios, a independência de Ruanda. E diante dessa situação, Bruxelas, percebendo que deveria mudar a tática de seu jogo, passa a apoiar a etnia de maior número, os Hutus, 25 Desde 1870, missionários da Church Missionary Society ou católicos das Missões da África (os chamados péres blancs, os padres brancos) se instalaram na região (Chrétien, 2001, p. 21). 26 A religião católica é hoje a mais extensa, compreendendo cerca de 65%, seguida por 9% de protestantes. Seitas evangélicas têm ganhado terreno, e 1% da população é muçulmana, deixando para 25% da população crenças tradicionais. 10

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Esse foi um dos geradores dos violentos conflitos que Ruanda iria Palavras-chave: História da África; África dos Grandes Lagos; Ruanda;
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