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Cocanha: A história de um país imaginário PDF

321 Pages·1998·9.551 MB·Portuguese
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"( hilário franco júnior C AN HA fO ) RIA DE UM PAÍS IMAGINÁRIO Mito, utopia, ideologia, sonho que alimenta o imaginário de vários povos, sob as formas mais diver­ sas. A maravilhosa Cocanha é isto: terra de abundân­ cia, liberdade, ócio, prazeres absolutos, eterna juven­ tude... Trazida ao tempo e ao espaço por um poeta anônimo francês de meados do século XIII, essa velha tradição oral foi cantada em verso e prosa durante séculos, em todos os cantos do mundo. Neste cuidadoso ensaio, a Cocanha é abordada a partir das condições sociais, políticas e religiosas que propiciaram o aparecimento de suas primeiras versões escritas, no Norte da França e na Inglaterra. Recor­ rendo a fontes dos séculos XIII ao XX. Hilário Franco Júnior não somente mostra a imensa riqueza cultural da Cocanha como percorre os caminhos dessa terra desejada por muitos e desfrutada por quase ninguém. ISBN 85-7164-812-3 8857 TOÒfH1 Copyright © 1998 by Hilário Franco Júnior Capa: Ettore Bottini sobre O país da Cocanha, tela de Bruegel (1567), Pinacoteca de Munique Preparação: Cristina Penz índice remissivo: Maria Cláudia Carvalho Mattos Revisão: Carmen S. da Costa Ana Maria Alvares Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Franco Júnior, Hilário. 1948- Cocanha: a história de um país imaginário / HilárioFranco Júnior. — São Paulo: Companhia das Letras. 1998. Bibliografia isbn 85-7164-812-3 1. Civilização medieval 2. Cocanha 3. Lugares ima­ ginários 4. Mitos geográficos 5. Sociedades imaginárias 6. Utopias t. Título. 98-3749 cdd-398.2340902 índice para catálogo sistemático: 1. Cocanha . País lendário: Literatura folclórica medieval 398.2340902 1998 Todos os direitos desta edição reservados à EDITORA SCHWARCZ LTDA. Rua Bandeira Paulista, 702, cj. 72 04532-002 — São Paulo — sp Telefone: (011) 866-0801 Fax:(011)866-0814 e-mail: [email protected] ÍNDICE Prefácio de Jacques Le Goff................................................. 7 Introdução.............................................................................. 15 1 O Fabliau de Cocagne, mosaico textual............................... 25 2. A terra da abundância............................................................ 56 3. A terra da ociosidade............................................................. 82 4. A terra da juventude............................................................... 110 5. A terra da liberdade................................................................ 137 6. A Cocanha na versão medieval inglesa................................. 165 7. A Cocanha nas versões tardias.............................................. 196 Conclusão.............................................,................................ 227 Notas...................................................................................... 235 Fontes e bibliografia.............................................................. 297 Crédito das ilustrações........................................................... 305 índice remissivo..................................................................... 307 PREFACIO O país da Cocanha é bem conhecido na Europa ocidental e na América. É um dos mais atraentes e sedutores países lendários que enriquecem a cultura popular e folclórica destes dois universos fre­ quentemente aparentados, ligados por temas comuns no decurso de transferências e trocas ou de evoluções paralelas. As descrições do país da Cocanha formam na Europa um corpus cujos elementos foram objeto de numerosos estudos, mas que nunca foi tratado na totalidade de suas versões e de seus problemas. Esta é uma primeira razão para louvar o professor Hilário Franco Júnior: ter pela primeira vez estudado o conjunto desse corpus. Nossa gratidão por ele deve ser ainda maior por ter colocado seu estudo sob a luz de um problema fundamental da história cultural: que relações existem entre os países imaginários saídos da imaginação de contistas e de escritores e as sociedades reais que se pode chamar de históricas? Método inovador e fecundo, o único a poder explicar o nas­ cimento, a natureza e a história das versões orais, escritas e artísticas daquelas lendas. De fato, até aqui tratou-se separadamente esses dois objetos his­ tóricos. Mutila-se e empobrece-se o conhecimento das sociedades “reais” amputando-as do imaginário, que não é um simples reflexo deformado destas sociedades, mas algo que mantém com elas relações interativas, como Hilário Franco Júnior bem mostrou. De uns trinta anos para cá; a história do imaginário ganha com razão um lugar cada vez maior no domínio do saber histórico. E um crescente número de historiadores reconhece que as imagens, as repre­ sentações, as sociedades imaginárias são tão reais quanto as outras, ain- 7 da que de maneira diferente, segundo uma outra lógica, uma outra con­ sistência, uma outra evolução. O imaginário social tem portanto uma história que faz parte da história global das sociedades, mas com sua originalidade e sua especificidade. De um lado, os textos que descrevem as sociedades imaginárias ligam-se em geral ao imaginário literário e alimentam o diálogo fecun­ do que há algumas décadas ocupa os historiadores da Idade Média e os historiadores da literatura medieval. I lilário Franco Júnior é um daque­ les, e já deste ponto de vista metodológico fundamental seu livro é exemplar De outro lado, os historiadores da literatura, do imaginário e, de maneira mais geral, das representações, tenderam com freqüência a tratar esses textos, imagens e idéias independentemente da história das sociedades reais, deixando-os ou planar no ar dos fantasmas intempo- rais ou fechados numa atmosfera irreal, enquanto, na verdade, eles vivem no coração e no espírito dos mesmos homens e mulheres que constituem as sociedades reais. Na base e no centro de seu estudo. Hilário Franco Júnior colocou com razão a mais antiga versão conhecida do país da Cocanha, o fabliau de Cocagne francês datado de meados do século Xlll. A partir deste, ele fornece uma aproximação cronológica da época de aparição do tema da Cocanha. Este nasceu no período dc grande desenvolvimento da sociedade medieval, de meados do século xn a meados do xm, quando os suces­ sos materiais, sociais, políticos e culturais aguçaram os apetites e fize­ ram lamentar que a sociedade cristã não tenha podido superar os limi­ tes, as impotências, as repressões que ainda a constrangiam. O século xm foi um tempo de regulamentação, de ordenação, em nome de um ideal que os príncipes dedicados a construir um modelo de Estado moderno e as Ordens Mendicantes— encabeçadas por Domini- canose Franciscanos, apóstolos doaggiornamento dos princípiose das práticas religiosas destinadas a enquadrar a nova sociedade, encoraja­ da ao trabalho, tentada pelo dinheiro que circula cada vez mais — esforçam-se por instaurar através do direito, da administração, doensi- no, da pregação. O país da Cocanha é um sonho de protesto contra esses limites e essa domesticação das pulsões individuais e coletivas, que vão da con­ fissão e da penitência à Inquisição, das leis e dos tribunais à prisão e ao 8 I patíbulo. Ele se situa no interior do florescimento de uma geografia imaginária, de viagens ao desconhecido e ao Além. de visões fantásti­ cas ou escatológicas. Hilário Franco Júnior analisa quatro temas principais desse país sem lei, limite ou repressão: a abundância, a ociosidade, a juventude e a liberdade. A abundância responde à vontade de se opor à realidade vividae sofrida por dupla insatisfação alimentar, de um lado decorrên­ cia de uma produção ainda limitada pela natureza e por um progresso econômico que não eliminara inteiramente a carência e mesmo a fome. e de outro lado decorrência da abstinência e dos jejuns impostos pela Igreja. A Cocanha é o ideal anticristão da “comilança”. O filme de Mar­ co Ferreri que tem esse nome (1973). cuja significaçãoé contudo muito diferente por se tratar de uma sátira a nossa sociedade de consumo, sus­ citou ainda nos nossos dias vivos protestos de certos meios católicos. Assim, Hilário Franco Júnior compreendeu muito bem que o elogio da abundância é um desafio à Igreja, que estigmatiza a gula (a paixão de comer) como um dos pecados capitais mais detestáveis, o que lançou o Combate de Carnaval e Quaresma, tema que vai atravessar o fim da Idade Média e o Renascimento para chegar, assim como o País da Cocanha, até Bruegel. Sobre a ausência do pão, das especiarias, dos legumes, das frutas, da sopa e da água. enquanto abundam o peixe, a carne, o vinho, os doces. Hilário Franco Júnior formula interessantes sugestões fundadas na pertinente hipótese de uma crítica à Igreja. Sua reflexão enriquece o assunto, que no entanto parece-me continuar em aberto. Dc qualquer forma, seu método de procurar um fundamento ideológico e histórico para a paisagem alimentar é justo e fecundo. Paisagem alimentar que tem na Cocanha a ausência de um traço essencial, a oposição lévi-straussiana do cru e do cozido, presente na literatura cortesã, particularmente em Chrétien de Troyes. Não se cozi­ nha no país da Cocanha. pois isso é trabalho, e Hilário Franco Júnior bem percebeu que o trabalho é o grande banido daquele mundo. A Cocanha é um mundo sem instrumentos, sem utensílios, sem máquinas. O pão está ausente dali talvez porque o trabalho de moagem não existe. O vinho está presente porque não é produto do lagar, corre em estado natural no riacho. Os alimentos, já cozidos, caem na bocados 9 - homens e das mulheres, assim como as aves. que nesse mundo ao inver­ so não sobem, descem. Esta exaltação do far mente é datada. O século xm é o período de culminância da promoção do trabalho que a Alta Idade Média e seus monges haviam lentamente reabilitado, passando-o da maldição do Gênese para a valorização ligada ao novo desenvolvimento rural e urbano. Marta é revalorizada diante de Maria. O pensamento monásti­ co é reflexivo. O pensamento e o ensino das escolas urbanas e das uni­ versidades são trabalho. Difunde-se um novo provérbio: “trabalho supera proeza". A Cocanha é a negação desse ideal ergométrico e laborioso. A Cocanha é contemporânea ao surgimento de termos vernáculos e neo- latinos que, recusando labor ou opusy sào criados a partir de um instru­ mento dc tortura, o tripalium, como Hilário Franco Júnior diagnosticou com perspicácia: travail, travaglio. Nesse mundo do não-trabalho é a ociosidade que vence: "lá, quem mais dorme, mais ganha'’. Não há aqui outra pista a explorar? Ao lado do trabalho, o século xm vê a promoção do dinheiro com seus novos problemas: a luta de certos meios religiosos contra o empréstimo a juros, condenado como usura. O maior argumento da Igreja para essa condenação é que o emprestador não enriquece trabalhando, mas dor­ mindo, pois enquanto ele dorme é seu dinheiro que “trabalha". Não se deve lembrar dc Francisco de Assis, que pedia a seus irmãos para não considerar as moedas melhores que pedras, que sei­ xos? Na Cocanha, notou Hilário Franco Júnior, as moedas, produtos industriais, culturais, não naturais, estão jogadas pelo chão. Mas o autor vai mais longe, e com razão. Por detrás do elogio da ociosidade, há uma contestação do tempo, do tempo medido, do calen­ dário. Todos os dias sem trabalho são ali multiplicados: cada ano tem quatro Páscoas, quatro São João, quatro Todos os Santos, quatro Natais, quatro Candelárias, e na verdade "todos os dias são domingose feriados”. No século xm, como já foi mostrado para o mundo das corpora­ ções de construção, o sistema de festas é um sistema de dias de descan­ so, de folgas não remuneradas criadas para contentar o empresário, que economiza salários, e o assalariado, que repousa ou dedica-se a ocupa­ ções não consideradas trabalho. Com muita perspicácia. Hilário Fran­ co Júnior nota que na Cocanha não há festas. A Cocanha é uma festa. O 10 tempo, isento de atividades, é imóvel: ali é sempre “como se fosse maio”. Daí a conclusão do historiador: “lá o tempo está abolido”. Creio estarmos aqui no centro daquilo que chamo utopia da Cocanha, preferindo esse termo ao de mito. Mito procura uma explica­ ção pré-histórica da realidade. Utopia quer construir um contramodelo dessa realidade. E como não há estruturas espaciais que não sejam tam­ bém temporais, a Cocanha é um país fora do espaço (o caminho para lá está perdido) e fora do tempo. Mas ao contrário do mito ant igo da Idade de Ouro, renascido no século xm, a Cocanha não é uma utopia voltada para o passado, é uma utopia que se livrou dessa prisão das sociedades e dos indivíduos que é o tempo sob forma de calendário. A Cocanha é uma utopia medieval, pois não é nem a nostálgica Idade de Ouro da Antiguidade, nem uma sociedade futurista como a dos socialismos utópicos da época moderna. A Cocanha não está nem no passado nem no futuro. A Cocanha é a festa de um presente eterno. Na presença criativa e fruitiva da natureza. Hilário Franco Júnior vê traços panteístas e formula a hipótese de uma influência das idéias de Amaury de Bène condenadas pela Universidade de Paris no início do século xm. Mas não acredito na presença de idéias de um grupo inte­ lectualizado numfabliau % que se, é verdade, combina elementos da cul­ tura popular e da cultura erudita, parece-me pouco permeável a teorias filosóficas e teológicas de alta intelectualidade. Prefiro ver aí o naturalismo da segunda parte AoRoman de Ia Rase de Jean de Meung. onde a Natureza inesgotavelmente fecunda cria uma Idade de Ouro eterna que não é nem retomo ao passado nem antecipa­ ção do futuro, e sim um sonho para o presente. É admissível que sc trate, como parece pensar Hilário Franco Júnior com F. Tristan, de um sonho uterino que exprime o “trauma do nascimento" definido por Otto Rank, contudo essa interpretação psicanalítica situa-se fora do campo de tra­ balho do historiador. A terceira constatação é a reivindicação que o fabliau de Cocagne faz de juventude, ou melhor, de imortalidade. Da mesma forma que o tempo cósmico, o tempo fisiológico também foi ali interrompido. Naquele eterno maio, tem-se eternamente trinta anos. a idade simbóli­ ca de Adão quando de sua criação e de Jesus no início de seu ministé­ rio, como bem viu Hilário Franco Júnior. Idade também, mais prosai­ camente, em que o homem e a mulher gozam dc uma maturidade ainda II

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