UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ UNIVERSIDADE DO ESTADO DO AMAZONAS REDE AMAZÔNICA DE EDUCAÇÃO EM CIÊNCIAS E MATEMÁTICA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO EM CIÊNCIAS E MATEMÁTICA DOUTORADO EM EDUCAÇÃO EM CIÊNCIAS E MATEMÁTICA KÉCIO GONÇALVES LEITE NÓS MESMOS E OS OUTROS: ETNOMATEMÁTICA E INTERCULTURALIDADE NA ESCOLA INDÍGENA PAITER CUIABÁ 2014 2 KÉCIO GONÇALVES LEITE NÓS MESMOS E OS OUTROS: ETNOMATEMÁTICA E INTERCULTURALIDADE NA ESCOLA INDÍGENA PAITER Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação em Ciências e Matemática, da Rede Amazônica de Educação em Ciências e Matemática, sob orientação do Prof. Dr. Erasmo Borges de Souza Filho, na linha de pesquisa Fundamentos e Metodologias para a Educação em Ciências e Matemática, como requisito para a obtenção do título de Doutor em Educação em Ciências e Matemática. CUIABÁ 2014 3 4 5 Ao povo Paiter, que exemplarmente resiste, insiste e sobrevive política, social e culturalmente, travando batalhas cotidianas durante quatro décadas de contato. 6 AGRADECIMENTOS Ao Povo Paiter, em especial aos professores paiter das comunidades Gapgir, Lobó, Lapetanha, Joaquim, Amaral e Paiter, pela hospitalidade, pelas lições de vida e pelo compartilhamento de saberes e fazeres imemoriais que passarão a compor minhas representações de mundo e a refletirem em minha caminhada acadêmica, em minha vida pessoal e em minha atuação profissional. Ao Professor Dr. Erasmo Borges de Souza Filho, pelas sábias lições acadêmicas e de vida, pelo compartilhamento de seus saberes sobre os mundos material e espiritual, pela paciência e pela amizade ao me orientar. Ao Professor Dr. Rogério Ferreira e às Professoras Dra. Aparecida Augusta da Silva, Dra. Isabel Cristina Rodrigues de Lucena, Dra. Gladys Denise Wielewsky e Dra. Elizabeth Antônia Leonel de Moraes Martines, que gentilmente aceitaram participar da Banca Examinadora e muito contribuíram com sugestões e apontamentos feitos desde a qualificação. À Professora Dra. Marta Maria Pontin Darsie, por espalhar e compartilhar conosco o sonho de uma educação transformadora na Amazônia, encorajando-nos a trilhar novos caminhos e a vencer grandes desafios. Ao Professor Dr. Michael Otte, pelas valiosas lições de Filosofia e História da Matemática que sempre farão parte de minhas reflexões como signos e referências. Aos professores indígenas de Rondônia e Noroeste de Mato Grosso, pela oportunidade de construir novas representações sobre o mundo e sobre as relações entre povos e culturas. Ao Uraan, pela amizade, pela acolhida em sua casa e em sua comunidade, pelo companheirismo, pela troca de ideias, e por me conduzir de forma especial na introdução à cultura, à língua e ao mundo dos Paiter. À Betty Mindlin, pelo exemplo de humanidade, pela inspiração que suas pesquisas com os Paiter me proporcionaram e por compartilhar gentilmente seus valiosos relatórios de campo da época do Polonoroeste em Rondônia com todos do Departamento de Educação Intercultural da UNIR. Aos colegas de doutorado, os reamecianos, Emerson, Marlos, Liliane, Márcia, Nério, Vinícius, Gecilane, Mariuce, Leila, Cristiane, Eduardo, Edilberto, Guacira, Ivo, Jéferson, Rafael, pela convivência, pela amizade, pelos estudos compartilhados e pela ajuda nos momentos difíceis desta empreitada. 7 Ao Professor Dr. Rômulo Campos Lins e ao Programa de Pós-Graduação em Educação Matemática da Unesp – Rio Claro, por terem me aceitado como aluno especial nos estudos de Filosofia da Educação Matemática. À Jacqueline, pela amizade, pela alegria contagiante e por emprestar gentilmente seu apartamento em Cuiabá ao reamecianos de Rondônia. À Livínia, pela amizade, pela hospitalidade, pelos bolos, doces, almoços e jantas que tornaram mais agradáveis os dias de estudos em Belém. Aos Professores e Professoras do Programa de Pós-Graduação em Educação em Ciências e Matemática da Rede Amazônica de Educação em Ciências e Matemática – REAMEC-UFMT-UFPA-UEA, pelas aulas, sugestões e valiosos ensinamentos. Aos companheiros de trabalho do Departamento de Educação Intercultural da UNIR, Genivaldo, Edineia, Luciana, Maria Lúcia, Reginaldo, João, Cristóvão, Joaci, Carma, Vanúbia e Gicele, pela amizade, pelo apoio, pela troca de ideias, pelas sugestões de leituras e pelo companheirismo na formação intercultural de professores indígenas em Rondônia e Noroeste de Mato Grosso. Às professoras Josélia, Lediane e Jânia, por compartilharem comigo, nos últimos anos, cada uma a seu modo, interessantes ideias e perspectivas a respeito da educação escolar indígena, que resultaram em importantes contribuições para a construção desta tese. Ao meu irmão, Jáison, pela amizade, apoio e incentivo. Aos meus pais, Dirce e Genésio, pela forma como me introduziram no mundo e pela educação que me deram, permitindo-me chegar até aqui. A minha esposa, Eliana, pelo amor, pelo carinho, pelo incentivo, pelo companheirismo, pela amizade e pelas contribuições e leitura cuidadosa da versão preliminar da tese. A Deus, pela força, saúde e disposição em continuar a caminhada. 8 RESUMO A presente tese de doutorado busca refletir a educação matemática no campo da interculturalidade, considerando como espaço empírico a escola indígena paiter. Ideias e pressupostos enunciados em práticas discursivas de professores indígenas na projeção do ensino de saberes e fazeres matemáticos paiter e suas interseções com a cultura do povo Paiter, em escolas da Terra Indígena Sete de Setembro, em Rondônia, foram observados, analisados e interpretados no espaço da interculturalidade. Isso demandou investigar como a projeção de uma educação escolar diferenciada nas aldeias desse povo pode ressignificar práticas educativas tradicionais e promover uma revitalização de saberes e fazeres da tradição, em detrimento de um processo de mudanças pós-contato. Para tanto, propôs-se observar, ouvir e acompanhar professores paiter em suas práticas e afazeres contextualizados no cotidiano das escolas, das aldeias e da universidade. Teoricamente, a pesquisa baseou-se na perspectiva da Etnomatemática (D’AMBROSIO, DOMITE, GERDES, VERGANI), segundo a qual, ao longo da história da humanidade, cada povo ou grupamento humano desenvolveu saberes e fazeres matemáticos próprios. Também se orientou pelos conceitos de interculturalidade e hibridismo cultural (BHABHA, CANCLINI, HALL) abordados pelos Estudos Culturais. Metodologicamente, a pesquisa caracterizou-se como sendo do tipo qualitativo de abordagem interpretativa. O estudo de caso foi adotado como método para a identificação e registro de discursos, práticas e ideias elaboradas por professores indígenas, bem como para a compreensão das relações destas ideias com a visão de mundo, a organização social e a etnicidade do povo Paiter. Verificou-se que a representação discursiva de professores paiter na projeção da introdução dos saberes matemáticos do povo na escola, além de visar a diversidade cultural para a qual contribuiriam particularmente os saberes matemáticos do povo, busca marcar posição (oposição/diferenciação) em relação a uma matemática do currículo presente na escola inserida na aldeia. Essa abordagem origina inevitavelmente tensões, relacionadas a questões de identidade cultural, descentramento cultural e hibridismo cultural, porque, ao mesmo tempo em que o processo enunciativo pressupõe a existência de uma tradição, ele introduz uma quebra no presente performativo da identificação cultural ao eleger novos significados e saberes como necessidades do presente político enquanto prática de resistência. Assim, no caso empírico dos Paiter, observa-se no espaço enunciativo representado pelo discurso dos professores, simultaneamente e de forma tensionada, um apelo às memórias de um saber matemático experienciado ou vivido “pelos mais velhos”, e o reconhecimento da necessidade do domínio da matemática escolar como estratégia de empoderamento nas relações de poder assimétricas com a sociedade envolvente. Manter uma identidade cultural paiter dentro desse processo de hibridação cultural torna-se uma preocupação política dos professores indígenas, que apontam a introdução dos saberes e fazeres matemáticos do povo na educação escolar como uma estratégia de fortalecimento identitário. Teoricamente, esse fato indica uma possível vinculação entre etnomatemática e etnicidade, ao se conceber etnomatemática não como constructo atribuído, mas como constructo reivindicado. Palavras-chave: Etnomatemática. Educação Escolar Indígena. Interculturalidade. Paiter. 9 ABSTRACT This doctorate thesis seeks to reflect mathematics education in the field of interculturality considering how empirical space the paiter indigenous schools. Ideas and assumptions set out in the discursive practices of indigenous teachers in the projection of teaching paiter mathematical knowledge and their intersections with the culture of Paiter people in schools of Terra Indígena Sete de Setembro, Rondônia, were observed, analyzed and interpreted in the field of interculturality. It demanded to investigate how the projection of a differentiated education in the villages that people can reframe traditional educational practices and promote revitalization of knowledge and practices of tradition, rather than a process of post-contact changes. For both, it was proposed to observe, listen and follow paiter teachers in their practices contextualized in daily of the schools, the villages and the university. Theoretically, the research was based on the perspective of ethnomathematics (D’AMBROSIO, DOMITE, GERDES, VERGANI), according to which, throughout the history of humanity, each people or human groups developed their own mathematical knowledge. Also guided by the concepts of interculturality and cultural hybridity (BHABHA, CANCLINI, HALL) addressed by Cultural Studies. Methodologically, the research is characterized as the qualitative interpretative approach. The case study was adopted as a method for the identification and registration of discourses, practices and ideas developed by indigenous teachers as well as for understanding the relationship of these ideas with the worldview, social organization and ethnicity of Paiter people. It was found that the discursive representation of paiter teachers in projecting the introduction of the mathematical knowledge of the people at school, besides seeking cultural diversity to which especially contribute the mathematical knowledge of the people, search dial position (opposition/differentiation) in relation to a mathematical curriculum of this school included in the village. This approach inevitably creates tensions related to issues of cultural identity, cultural decentralization and cultural hybridity because, while the enunciative process presupposes the existence of a tradition, it introduces a break in the performative present of cultural identification to elect new meanings and knowledge as needs of political present while practice of resistance. Thus, the empirical case of Paiter, is observed in the enunciative space represented by the discourse of teachers, simultaneously and of tensioned form, an appeal to the memories of a mathematical knowledge experienced or lived “by the elders”, and the recognition of the need for domain school mathematics as empowerment strategy in asymmetrical power relations with the surrounding society. Ensure a paiter cultural identity within that cultural hybridization process becomes a political concern of indigenous teachers, pointing to the introduction of mathematical knowledge of the people in school education as a strategy for strengthening identity. Theoretically, this fact indicates a possible link between ethnomathematics and ethnicity, to conceive etnomathematics not as assigned construct, but as claimed construct. Keywords: Ethnomatematics. Indigenous School Education. Interculturality. Paiter. 10 EEWE TÃYÃH1 Ãh g̃obahbe tĩg sadana matemática tĩhge same mĩ nane mãtẽenãh iwekahr ana aje weitxa yele same tohta, kana iwe same mẽhnãh Paiter kabih aje mĩ, sodĩg̃ah tik mi iwe sabatiga awe kabi e. Mereitxa yele ewe tete enãpoh sodig̃ey xade sogamame same mãh akoe mĩ apugey emakobah aje tare we koy Paiter emasoe itxa yele ikinatẽh sodig̃ah mĩ, kah mawe tere same mag̃a weitxa yele nãh, sodig̃ah ey xade Paiterey karah ka Terra Indígena Sete de Setembro wa Rondônia ka ekoy ana e, kana yag̃a enãh kana tamag̃a iwe makih, ana tasaana ih alade iwe kahr weitxa yele same tohta we same tik mi ena e. Kana mawe tere nã tehr tasade g̃obahbe same itxa ewe mag̃a anĩh aite tere mi tapere de akobah ewe mag̃a ena ãh karba mĩh, ayap e mĩ amasoe tere ka akobah, matehr soe perede ewe ikin omner mae wepi awemakobah anĩh ee aje aite iwahr matemática nã yara wẽtihge tik mi aora ena e. Ayap e nã ojena kana iwe mag̃a enãh, takoe pih, kana tamag̃a enãh taitxa tamasodig̃ah ka takarah koy ayap mi universidade ka taitxa ena e. Iwe alabikãrh ag̃a ojena nem esame mĩ ena e Etnomatemática (D’AMBROSIO, DOMITE, GERDES, VERGANI), eenã te baga ter paiter deor asot aut mit’i aite same itxa sogamame nã poh, soeitxa yele nã ena ama matemática nã yã we tĩg mĩ e. Ayap mi eena de eewe tãyãh intercultural mĩ itxa mũypoy soe sade awemag̃a awepitxakõy txeh ani ewe same na ani e mĩ (BHABHA, CANCLINI, HALL) weitxa yele nã we tĩhg̃e. Ete ãh sodĩhg̃e dena nane mãteenãh alade we mi ena iwe kahr ena e. Ãh senãih, xiwewame maãh, iwe mag̃a tasade we maãh ewe tayãh sodig̃ey xadewe kana pãhg̃a ãwe tar matiga paweitxa mũye telemĩ teh g̃arba same ikin paje wemĩ pawe kabi ayeh yele mĩ alade Paiter alahde masoe same ikin ewe mĩ, soeitxa g̃arba ka Paiter a aje aweikay ewe mĩh. Ete sodig̃ey jena iwe same ikin aje we mĩ ena ee ama matemática mãh ena toyaba toykoe mĩ toyasoeitxa yele mãh sodig̃ah mi ̃tara ena toyag̃a toite matxẽh mawe tar areh ena oite ãh dana e eite ãh dana e ena awe makobah ena tare (xamatage/mawetere) ee matemática sade ama sodig̃ah ka eka iwe same itxa awekabi ena e. Ayap sadena one iwe sameom neh ena takabi e, ee alade paite itxa paliyã etiga teh tasadena ee maite ka ena akobah og̃a maite ka yabekar areh mũy ite torera ladeka bo oite sa aye aweõ ani poh alade we same nã tasadena e. Ewe nekoy tasadena one g̃uya ter ena ateter iwe itxa awekabi mae eeter tasadena iwe xagut aãh ena e. Iwe same sadena aite mag̃a anate lana poreh maite matxẽ waba owepih alade we nã ena e. Ete paiter asoeitxa yele kare same dena sodig̃ey asoe mame pi ena awe kabi iwe same nã e, txuhla iwe sore iwe kane omneh “ikãyey” sade tiga teh ena merekahr takay e kana meyag̃a sogamame itxa matehr tara yara om niga we itxah takay, ayap mi yara ite maãh waba xiperemĩh xiite itxah ateneh alade iwe itxa bokirih omneh etiga. Aite itxa alade amasoeitxa yele nã ewe matxẽ toyxani ih ee xameomi matehr ite amitohr sadetiga ani ih sodig̃ey xadena ewe itxa anepamibe nã ena ani e. Ayap e nekoy toyasoeitxa yele toite nã we mag̃a toje toykobahbe nã sodig̃ah mĩ iwe mag̃a etehra yena ter toyag̃a toya paitere maõ reh toyekay a ena e yena bo soe sa ani ih soe ikin omner aje mae we pi amuk de akobah iwe mag̃a ãh tik mi maetera. Ete sodĩhg̃e same mĩ iwe same sadena ana ena e, Etnomatemática mĩ tasadena ama paitere satbimayã toyabah yele nã mag̃a, one eeter alade alaĩh iweka ewe nã same omne maãh aje we same nã, marbom eete oyana paiter ena aitere itxa ter poh yele same nã ena ama soe same ka ena awemakobah ena e. G̃oe-abikãhr: Etnomatemática. Lat emakobahwe same. Weitxa aoare same. Paiter. 1 Resumo da tese em Tupi Mondé em versão traduzida por Uraan Anderson Suruí.
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