Revista Brasileira Fase VII Abril-Maio-Junho 2008 Ano XIV No 55 Esta a glória que fica, eleva, honra e consola. Machado de Assis ACADEMIA BRASILEIRA REVISTA BRASILEIRA DE LETRAS 2008 Diretoria Diretor Presidente:Cícero Sandroni João deScantimburgo Secretário-Geral:Ivan Junqueira Primeiro-Secretário:Alberto da Costa e Silva Comissão de Publicações Segundo-Secretário:Nelson Pereira dos Santos Antonio Carlos Secchin Diretor-Tesoureiro:EvanildoCavalcanteBechara José Mindlin José Murilo de Carvalho Membros efetivos Produção editorial AffonsoArinos de Mello Franco, Monique Cordeiro Figueiredo Mendes Alberto da Costa e Silva, Alberto VenancioFilho,Alfredo Bosi, Revisão Ana Maria Machado, Antonio Carlos Luciano Rosa Secchin, AntonioOlinto, Ariano Frederico Gomes Suassuna, ArnaldoNiskier, CandidoMendes de Almeida, Projeto gráfico Carlos HeitorCony, CarlosNejar, VictorBurton Celso Lafer, Cícero Sandroni, Domício Proença Filho, EduardoPortella, Editoração eletrônica EvanildoCavalcanteBechara, Evaristo de EstúdioCastellani Moraes Filho,Pe. Fernando Bastos de Ávila,Helio Jaguaribe, IvanJunqueira, ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS IvoPitanguy, João deScantimburgo, Av. PresidenteWilson, 203 – 4.oandar João Ubaldo Ribeiro, José Murilo de Rio de Janeiro – RJ – CEP20030-021 Carvalho, José Mindlin, JoséSarney, Telefones: Geral: (0xx21) 3974-2500 LêdoIvo,LygiaFagundesTelles, Setor de Publicações: (0xx21) 3974-2525 Marco Maciel, MarcosViniciosVilaça, Fax: (0xx21) 2220-6695 Moacyr Scliar, MuriloMelo Filho, E-mail: [email protected] NélidaPiñon,Nelson Pereira dos Santos, site:http://www.academia.org.br Paulo Coelho, SábatoMagaldi, SergioPauloRouanet, Tarcísio Padilha, As colaborações são solicitadas. ZéliaGattai. Os artigos refletem exclusivamente a opinião dos autores, sendo eles também responsáveis pelas exatidão das citações e referências bibliográficas de seus textos. Sumário EDITORIAL João de Scantimburgo Machado:obruxo. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .5 CULTO DA IMORTALIDADE Rui Barbosa OadeusdaAcademiaaMachadodeAssis . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .7 PROSA Arnaldo Niskier Machadoeaeducação. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .13 Lêdo Ivo Tudosãomistérios . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .19 Murilo Melo Filho Machado:atual,imortaleeterno . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .25 Ivan Junqueira “Unsbraços”:nenhumabraço. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .43 Domício Proença Filho MachadodeAssis:cartasaCarolina. . . . . . . . . . . . . . . . .53 Fábio Lucas AcríticadeMachadodeAssis. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .65 Marta Spagnuolo Aires,autorapócrifodocadernoÚltimo. Tradução:HernánGómez. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .74 Marta Spagnuolo Aires,autorapócrifodelcuadernoÚltimo . . . . . . . . . . . . . . . . .75 Affonso Romano de Sant’Anna EsaúeJacó:estruturaexemplardeMachado. . . .97 C. S. Soares MachadodeAssis,oenxadrista . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .135 João Roberto Faria MachadodeAssiseoteatro. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .153 Flávia Vieira da Silva do Amparo MachadodeAssis:dulcíssimopoeta?. . . . .185 J. Mattoso Câmara Jr. OcoloquialismodeMachadodeAssis . . . . . . . . . . . . . .215 Chika Takeda MachadoeSôseki . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .227 Luciano Rosa Umretalhodeimpalpável . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .235 Cláudio Murilo Leal RecepçãocríticaàpoesiadeMachadodeAssis. . . . . . . .249 Letícia Malard OamormasculinoemAMãoeaLuva . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .261 Benjamin Abdala Junior Debuxos,deMachadoparaGraciliano . . . . . . . . . . . . .273 Jefferson Cano, Sidney Chalhoub, Leonardo Affonso de Miranda Pereira e Ana Flávia Cernic Ramos Narradoresdoocasodamonarquia (MachadodeAssis,cronista) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .289 POESIA Linhares Filho AMachadodeAssis,mortovivo. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .317 Lila Maia PerfilpoéticodeMachadodeAssis. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .321 GUARDADOS DA MEMÓRIA Mário de Alencar MachadodeAssis,páginasdesaudade. . . . . . . . . . . . . . . . . .323 Editorial Machado: o bruxo João de Scantimburgo N ão imaginava Machado de Assis, no fim do século XIX, quealcançariaaglóriahojeindissociáveldesuafigura,fes- tejada com louvores do mundo inteiro. O menino do Morro do LivramentodesceuàsruasdacidadedoRiodeJaneiroparaarreba- tarmilhõesdeleitores–econtinuaaempolgá-los,semprevisãode final.Capitu,parafalardesuapersonagemmaisatraente,continuaa imperar em todos os salões que se crêem sapientes. O fenômeno Machado de Assis – ainda não totalmente desven- dado e a nosso ver indesvendável – situa-se no fato de não ter ele contadocommestrenenhumparaguiá-loatravésdoscaminhosdas letras, veredas que ele muito bem conheceu e sinalizou para um sem-númerodeleitores.Escritorjocosodirãoalguns,muitoapega- doafórmulasdodizerpopular,quesemantevefielàmáximacoma qual fecha a última página de Memórias Póstumas de Brás Cubas: “Não tivefilhos,nãotransmitianenhumacriaturaolegadodanossamisé- ria”. Frase pessimista? Não direi tanto. Otimista? Também não di- ria. Creio ser a sentença de um profundo conhecedor da vida e de 5 João de Scantimburgo seus mistérios, de seus encontros e desencontros, de seus azares e vitórias, de seu esquecimento e sua lembrança. Quemcaminhaaolongodaflorestamachadianadescobrelivroscomrefle- xõesnãoencontradasemoutroautor,como EsaúeJacó,porexemplo,paranão falarmosdosoutrosromancesedosvolumesdecontos,poemasoucrônicas. Machadofoiumvasculhadordealmas.Aindahoje,quandoolemos,verifica- mos que temos muito a aprender com sua verve inigualável. Escrevendo para suaépocaeparaoseupovo,conseguiualcançaraaltitudedepensamentodos grandescriadoresesoubeconjugá-lacomahumildadedosdesservidosdele- tras, que se engrandeciam com o acesso às suas obras. MachadodeAssisfoiumgigantedanossaliteraturaatéhojenãosuperado por nenhum outro escritor brasileiro. Em seu estilo cativante dificilmente se encontra o reparável ou o mal-querer. Homem sóbrio, não há em sua vida qualquerexcesso,nemmesmonosonetoemhomenagemàesposaquerida.Em nenhumadesuaspáginasvemo-nosdiantedofazedordefrasesquepoderiare- duzirsuasexpressõesàmetade.Foiummestrequenosdeixoualiçãodocome- dimento, justo prêmio em tudo o que escrevemos. Esse é o mistério do bruxo Machado de Assis para nós. 6 Culto da Imortalidade O adeus da Academia a Machado de Assis (cid:1) Discurso na câmara ardente do escritor, na sede da Academia Brasileira de Letras, ao partir o enterro, a 30 de setembro de 1908. Rui Barbosa Rui Barbosa (1849-1923). Fundador da D Cadeira 10 da esignou-me a Academia Brasileira de Letras para vir trazer Academia aoamigoquedenósaquisedespede,paralhevirtrazer,nas Brasileira de Letras. suasprópriaspalavras,numgemidodasualira,paralhevirtrazer,o nosso “coração de companheiros”. Eu quase não sei dizer mais, nem sei que mais se possa dizer, quando as mãos que se apertavam no derradeiro encontro se sepa- ram desta para a outra parte da eternidade. Nuncaerguiavozsobreumtúmulo,parecendo-mesemprequeo silêncio era a linguagem de nos entendermos com o mistério dos mortos. Só o irresistível de uma vocação como a dos que me cha- maramparaórgãodessesadeusesmeabririaabocaaopédestejazi- go,emtornodoqual,aomovimentodasemoçõesreprimidas,seso- brepõe o murmúrio do indizível, a sensação de uma existência cuja Rui Barbosa correnteseouvissecairdeumaoutrabacia,noinsondáveldotempo,ondese formam do veio das águas sem manchas as rochas de cristal exploradas pela posteridade. Doqueaelasereservaemsurpresas,emmaravilhasdetransparênciaeso- noridadeebelezanaobradeMachadodeAssisdi-lo-ãooutros,hãodeodizer osseusconfrades,jáoestádizendoaimprensa,edeesperaréqueodiga,dias sem conta, derredor do seu nome, da lápide que vai tombar sobre seu corpo, masabriraportaaoingressodasuaimagemnasagraçãodosincontestados,a admiração,areminiscência,amágoasemcuradosquelhesobrevivem.Eude mim, porém, não quisera falar senão do seu coração e de sua alma. Daqui,desteabismar-sedeilusõeseesperançasquesoçobramaocerrarde cadasepulcro,deixemospassaraglórianasuaresplandecência,nasuafasci- nação,naimpetuosidadedoseuvôo.Muitoressumbrasempredanossade- bilidade, na altivez do seu surto e na confiança das suas asas. As arrancadas maisaltasdogêniomauselibramnoslongesdanossaatmosfera,detodasas partesenvolvidaedistanciadapeloinfinito.Parasenãoperdernoincomen- suráveldeste,paraavizinharaterradofirmamento,paradesassombraraim- penetrabilidadedamorte,nãohánadacomoabondade.Quandoela,como aqui,sedebruça,foradeumacampaaindaaberta,jásenãocuidaquelhees- tejaàbeira,deguarda,omaismalquistodosnomes,nosentimentogrego,e osbraçosdesimesmoselevantam,seestendem,seabrem,paratomarentre si a visão querida, que se aparta. Nãoéoclássicodalíngua;nãoéomestredafrase;nãoéoárbitrodasletras; não é o filósofo do romance; não é o mágico do conto; não é o joalheiro do verso, o exemplar sem rival entre os contemporâneos da elegância e da graça, doaticismoedasingelezanoconceberenodizer;éoquesoubeviverintensa- mentedaarte,semdeixardeserbom.Nascidocomumadessaspredestinações semremédioaosofrimento,aamarguradoseuquinhãonasexpiaçõesdanossa herançaonãomergulhounopessimismodossombrios,dosmordazes,dosin- vejosos,dosrevoltados.Adorlheafloravaligeiramenteaoslábios,lheroçava aodeleveapena,lheressumavasemazedumedasobras,numceticismoentre- 8 O adeus da Academia a Machado de Assis meiodetimidezedesconfiança,deindulgênciaereceio,comosseustoquesde malíciaasorrirem,dequandoemquando,semmaldade,porentreasdúvidase astristezasdoartista.Aironiamesmasedesponta,seembebedesuavidadeno íntimo desse temperamento, cuja compleição, sem desigualdade, sem espi- nhos, sem asperezas, refratária aos antagonismos e aos conflitos, dir-se-ia emersadasmãosdaprópriaHarmonia,talqualessascriaçõesdaHélade,que selavraramparaaimortalidadenummármorecujaslinhasparecemrelevosdo ambiente e projeções do céu no meio do cenário que as circunda. Desteladomoraldasuaentidadequemmederasaberexprimir,nestemo- mento, o que eu desejaria. Das riquezas da sua inspiração na lírica, da sua mestrianoestilo,dasuasagacidadenapsicologia,doseumimonainvenção, dasuabonomianohumorismo,doseunacionalismonaoriginalidade,dasua lhaneza,tatoegostoliteráriodarãotestemunhoperpetuamenteosseusescri- tos,galeriadeobras-primasquenãoatestamenosdanossacultura,dainde- pendência, da vitalidade e das energias civilizadoras da nossa raça do que uma exposição inteira de tesouros do solo e produtos mecânicos do traba- lho.Mas,nestahoradeentradaaoignoto,aestecontatoquasedireto,quase sensívelcomaincógnitadoproblemasupremo,renovadocominterrogações danossaansiedadecadavezqueumdenósdesaparecenatorrentedasgera- ções, não é a ocasião dos cânticos de entusiasmo, dos hinos pela vitória nas porfiasdotalento.Aestenãofaltarãocomemorações,cujocírculosealarga- rácomosanos,àmedidaqueorastrodeluzpenetrar,pelofuturoalém,cada vez mais longe do seu foco. Oqueseapagariatalvez,seonãocolhêssemoslogonamemóriadospresen- tes,dosquelhecultivaramoafeto,dosquelheseguiramosdias,dosquelhe escutaramopeito,dosquelhefecharamosolhos,éosoprodasuavidamoral. Quandoeleselheexaloupelaúltimavez,osamigosquelhoreceberamcomo derradeiroanélitocontraíramaobrigaçãodeoreter,comosereterianamáxi- maintensidadedeaspiraçõesdosnossospulmõesoaromadeumaflorcujaes- pécie se extinguisse, para o dar a sentir aos sobreviventes, e dele impregnar a tradição, que não perece. 9 Rui Barbosa Eunãofuidosqueorespiraramdeperto.Mas,homemdomeutempo,não souestranhoàsinfluênciasdomaledobem,quelheperpassamnoar.Numa épocadelassidãoeviolência,dehostilidadeefraqueza,deagressãoeanarquia nas coisas e nas idéias, a sociedade necessita justamente, por se recobrar, de mansidãoeenergia,deresistênciaeconciliação.Sãoasvirtudesdavontadeeas do coração as que salvam nesses transes. Ora, dessas tendências que atraem paraaestabilidade,apacificaçãoeadisciplina,sobramexemplosnotipodesta vida, mal extinta e ainda quente. Modelo foi de pureza e correção, temperança e doçura: na família, que a unidadeedevoçãodoseuamorconverteramemsantuário;nacarreirapública, ondeseextremoupelafidelidadeepelahonra;nosentimentodalínguapátria, emqueprosavacomoLuísdeSousaecantavacomoLuísdeCamões;nacon- vivênciadosseuscolegas,dosseusamigos,emquenuncadeslizoudamodés- tia,dorecato,datolerância,dagentileza.Erasuaalmaumvasodaamenidadee melancolia.Masamissãodasuaexistência,repartidaentreoidealearotina, nãoselhecumpriusemrudezaesemfel.Contudo,omesmocálicedamorte, carregadodeamargura,lhenãoalterouabranduradatêmperaeaserenidade da atitude. Poderíamosgravar-lheaqui,nalajedasepultura,aquilodeumgrandelivro cristão:“Escreve,lê,canta,suspira,ora,sofreoscontratemposvirilmente”,se eunãotemesseclaudicar,aventurandoqueassuasatribulaçõesconheceramo lenitivo da prece. O instinto, não obstante, no-lo adivinha nas trevas do seu naufrágio, quando, na orfandade do lar despedaçado, cessou de encontrar a providência das suas alegrias e das suas penas, entre as carícias da que tinha sido a meeira da sua lida e do seu pensamento. Mestreecompanheiro,disseeuquenosíamosdespedir.Masdissemal.A mortenãoextingue:transforma;nãoaniquila:renova;nãodivorcia:aproxima. Um dia supuseste “morta e separada” a consorte dos teus sonhos e das tuas agonias, que te soubera “pôr um mundo inteiro no recanto” do teu ninho; e, todavia,nuncaelateestevemaispresente,noíntimodetimesmoenaexpres- são do teu canto, no fundo do teu ser e na face das tuas ações. Esses catorze 10
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