UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE SOCIOLOGIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA Ciência, Técnica e Reencantamento do Mundo Alan Delazeri Mocellim [email protected] São Paulo 2014 UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE SOCIOLOGIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA Ciência, Técnica e Reencantamento do Mundo Alan Delazeri Mocellim Tese apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Sociologia do Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, para a obtenção do título de Doutor em Sociologia. Orientador: Prof. Dr. José Carlos Bruni São Paulo 2014 Agradecimentos Gostaria de começar agradecendo a meus dois mestres que me orientaram durante o doutorado: Antônio Flávio de Oliveira Pierucci e José Carlos Bruni. O primeiro, Pierucci, partiu cedo, nos abandonou enquanto essa tese ainda estava começando a ser escrita. Ele foi um dos que mais me apoiou no complicado início do curso de doutorado, foi quem me estimulou a confiar no meu potencial e ir sempre mais além, para além das dificuldades. Pierucci também era rigoroso, preciso, e de mim cobrava essa precisão; por vezes me irritei, mas entendi a necessidade daquelas cobranças. Ele também era divertido, um piadista, um amigo sempre disposto e presente, um “orientador coruja” que cuidava de seus orientandos como se fossem filhos. De certa forma esse meu projeto pode ser entendido como um projeto pierucciano, ele parte de uma consideração que também foi a dele; em verdade, me aproximei de Pierucci com essa ideia na cabeça, ciente de que ele seria um dos poucos que compreenderia de imediato o que eu planejava estudar e aonde queria chegar. Ele não só compreendeu como me orientou de modo preciso. Segui em frente após sua morte pensando em fazer meu melhor. Hoje devo agradecer, por sua orientação e, sobretudo, pela curta e valiosa companhia e amizade. O segundo, Bruni, foi uma grande surpresa. Minha aproximação de Bruni se seguiu ao falecimento de Pierucci. Eu estava sem saber o que esperar e ainda um tanto desesperado com os rumos que tomariam meu trabalho. Bruni me deu grande apoio, me “adotou” quando eu passava por momentos difíceis e me deu o impulso necessário para que eu retomasse o trabalho. Bruni não só me orientou para que eu seguisse com meu trabalho, mas contribuiu para a ampliação do horizonte criativo do mesmo. Posso dizer que minha convivência com Bruni teve esse aspecto como marcante e definitivo: foi um estímulo à criatividade, um estímulo para que não ficasse excessivamente preso a uma abordagem teórica restrita, foi quem valorizou meu lado filosófico e quem potenciou aspectos de minha reflexão que eu considerava problemáticos. Bruni foi também um amigo, com quem compartilhei bons momentos e também insatisfações. Devo um grande obrigado a esse pensador que abraçou meu projeto como se fosse dele. Quero agradecer ao amigo Massimo Bonato, que foi um grande companheiro durante o doutorado, sempre presente mesmo que distante. Torço muito por seu sucesso e espero que possamos manter as trocas intelectuais nos anos que se seguirão. Agradeço também a Lilian Sendretti, a quem sempre apoiei e a qual sempre me apoiou nas maiores dificuldades. Aprendemos muito juntos e espero que possamos continuar aprendendo. Sobretudo, agradeço a meus pais e familiares que me apoiaram mesmo achando que eu já deveria estar trabalhando, mesmo sem compreender porque eu estudava tanto, mas sem questionar meus objetivos e sempre se esforçando ao máximo para que eu continuasse meus estudos. Por fim, agradeço à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), cujo apoio foi fundamental para o desenvolvimento de minha pesquisa. - Meu amor, o mundo é monótono até demais. Não há nada, nem telepatia, nem fantasmas, nem discos voadores... nada disso existe. O mundo é regido pelas leis do ferro-fundido. É triste. Infelizmente, estas leis são invioláveis. Elas não sabem violar a si próprias. Não conte com discos voadores, seria muito empolgante. - E o Triângulo das Bermudas? Não quer me dizer que... - Quero. Não existe nenhum Triângulo das Bermudas. Existe apenas o triângulo ABC semelhante ao triângulo A' B' C'. Não sente a tristeza fatal dessa afirmação? Por exemplo, interessante foi viver na Idade Média. Cada casa tinha um duende, cada igreja, Deus. A humanidade era jovem! Agora, um em cada quatro é um velho. Enfadonho demais, meu anjo! Diálogo do filme Stalker (1979), de Andrei Tarkovski Resumo A ciência teve um papel central naquilo que Max Weber chamou de desencantamento do mundo. O mundo da ciência é um mecanismo causal, um mundo de causas e efeitos inteligíveis, que funciona conforme leis racionais. Este é um mundo onde magia e religiões são banidas para o horizonte do irracional, e onde apenas o que é calculável e aplicável é racional. Ciência e técnica não podem conferir sentido a um mundo concebido dessa forma. No entanto, nos dias de hoje, nos deparamos com discursos que afirmam justamente o contrário, e o mais instigante neles é o fato de compreenderem a ciência e a tecnologia como os elementos principais que possibilitam um reencantamento do mundo. Visamos com este projeto apresentar uma sistematização das teorizações cujo foco é o reencantamento do mundo pela via científica e tecnológica mas não nos limitaremos a tal apresentação sistemática. Temos como objetivo mais amplo e central uma análise crítica de tais teorizações, que evidencie não apenas seus temas, enfoques e argumentos, mas também suas deficiências e impasses no que se refere ao diagnóstico que fazem do papel da ciência e da tecnologia no mundo contemporâneo. Palavras-Chave: desencantamento do mundo, reencantamento do mundo, ciência, tecnologia, Max Weber. Abstract Science has played a central role in what Max Weber called the disenchantment of the world. The world of science is a causal mechanism, a world of intelligible causes and effects which works according to rational laws. This is a world where magic and religions are banished to the horizon of the irrational, and where only what is calculable and usefull is rational. Science and technology cannot give meaning to a world conceived that way. However, nowdays, we face discourses that claim precisely the opposite, and the most exciting is the fact that they claim the science and technology as the key elements that enable to re-enchantment of the world. We aim with this project present a systematization of theories whose focus is the re-enchantment of the world through scientific and technological means but we will not limit ourselves to a systematic presentation. We have as a broader and central objective a critical analysis of such theories, evidencing not only their themes, approaches and arguments, but also its shortcomings and dilemmas regarding the diagnosis of the role of science and technology in the contemporary world. Key Words: disenchantment of the world, re-enchantment of the world, science, technology, Max Weber. SUMÁRIO INTRODUÇÃO .......................................................................................................................... 1 I - CIÊNCIA, TÉCNICA E DESENCANTAMENTO DO MUNDO ........................................ 6 1.1 - Técnica e ação racional ...................................................................................................... 7 1.2 - Ciência e objetividade ...................................................................................................... 13 1.3 - Ciência, técnica e progresso ............................................................................................. 16 1.4 - Ciência, racionalização e intelectualização ...................................................................... 21 1.5 - Desencantamento do mundo ............................................................................................ 26 1.6 - Encantamento, desencantamento e reencantamento ........................................................ 32 1.7 - Para além de Max Weber ................................................................................................. 35 II - EPISTEMOLOGIA E REENCANTAMENTO DA CIÊNCIA ......................................... 39 2.1 - Ciência e consciência ....................................................................................................... 40 2.2 - Ciência e incerteza ........................................................................................................... 62 2.3 - Ciência e complexidade ................................................................................................... 68 2.4 - Reencantamento da ciência .............................................................................................. 74 III - HOLISMO, PANTEÍSMO E REDEIFICAÇÃO DO MUNDO ....................................... 77 3.1 - A Terra como organismo vivo ......................................................................................... 78 3.2 - A visão sistêmica da vida ................................................................................................. 86 3.3 - Da ciência reducionista à ciência holística ....................................................................... 93 3.4 - Panteísmo e redeificação do Mundo ................................................................................ 97 IV - AMBIENTALISMO, RELIGIÃO E REENCANTAMENTO DA NATUREZA .......... 104 4.1 - A sacralização da natureza ............................................................................................. 104 4.2 - A cultura do encantamento ............................................................................................. 112 4.3 - Religião e retorno à natureza .......................................................................................... 120 4.4 - Reencantamento como fato e necessidade ..................................................................... 123 V - REMITIFICAÇÃO E SACRALIZAÇÃO DA TECNOLOGIA ...................................... 126 5.1 - A religião da tecnologia ................................................................................................. 127 5.2 - Tecnologia e neo-gnosticismo ........................................................................................ 140 5.3 - Tecnologia e reencantamento como remitificação ......................................................... 154 VI - REENCANTAMENTO DO MUNDO E CRISE PARADIGMÁTICA ......................... 158 6.1 - O conceito de paradigma ................................................................................................ 161 6.2 - O paradigma mecanicista ............................................................................................... 167 6.3 - O paradigma complexo .................................................................................................. 171 6.4 - Reencantamento do mundo e crise da ciência ................................................................ 175 VII - REENCANTAMENTO DO MUNDO E NEO-GNOSTICISMO ................................. 179 7.1 - O conceito de magia ....................................................................................................... 181 7.2 - A remagificação do mundo ............................................................................................ 185 7.3 - A remitificação do mundo .............................................................................................. 191 7.4 - Rumo ao neo-gnosticismo .............................................................................................. 196 VIII - REENCANTAMENTO DO MUNDO E NEO-ROMANTISMO ............................... 203 8.1 - O Romantismo ............................................................................................................... 204 8.2 - Ecologismo e Neo-Romantismo..................................................................................... 211 8.3 - Natureza e sentido .......................................................................................................... 216 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................. 220 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................................... 225 Introdução Os processos modernos de racionalização moderna têm um importante papel na constituição do mundo contemporâneo. Este papel foi posto em destaque, principalmente, por Max Weber. “A indagação acerca do homem especificamente moderno é um aspecto central da teoria weberiana, a qual deve ser entendida, no seu nível mais geral, como uma tentativa de conceituação da especificidade do desenvolvimento ocidental” (SOUZA, 1997, p.112). Para Weber, o homem especificamente moderno é aquele que vive sob a ação direta do racionalismo ocidental, daquele processo gradual de destruição das imagens religiosas do mundo. Este é o processo que, por meio da racionalização da cultura, levou a autonomia da ciência, das artes, da moral e do direito (HABERMAS, 2000, p.3-18). O racionalismo ocidental é também aquele que possibilita a dominação racional, teórica e prática, do chamado mundo natural. O “racionalismo de domínio do mundo” é o modo pelo qual fomos levados a um “desencantamento esclarecido da natureza, com todas as contradições e irracionalidades que esse modo de relação com o mundo implica e acarreta” (PIERUCCI, 2003, p.22-23). Em decorrência disso, o desencantamento do mundo é aquele processo que favoreceu a desmagificação do social. Primeiramente, consistiu na expulsão da magia do interior das grandes religiões, através da eticização da conduta. Posteriormente, consistiu na expulsão da magia de todo âmbito social, e também na consideração de qualquer crença metafísica como irracional, visto que a ciência se impunha – por meio da consideração meramente causal da natureza e do mundo – como o modelo de atitude racional. “Quanto mais o intelectualismo reprime a crença na magia, desencantando assim os fenômenos do mundo, e estes perdem seu sentido mágico, somente são e acontecem, mas nada significam, tanto mais cresce a urgência com que se exige do mundo e da condução de vida, como um todo, que tenha uma significação e estejam ordenados segundo um sentido”. (WEBER, 2000, p.344) É dessa forma que, a partir de Max Weber, compreendemos o desencantamento do mundo como um processo histórico milenar em que, por meio da religião e da ciência, o mundo foi desmagificado. A consideração da magia como 1
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