TIMOTHY FERRIS CIÊNCIA E LIBERDADE DEMOCRACIA, RAZÃO E LEIS DA NATUREZA TRADUÇÃO ANA SAMPAIO gradiva Título original The Science of Liberty — Democracy, Reason, and the Laws of Nature © Timothy Ferris, 2010 Edição portuguesa (incluindo tradução) © Gradiva Publicações, S. A., 2013 Todos os direitos reservados Tradução Ana Sampaio Revisão de texto Helena Ramos e Maria de Fátima Carmo Capa Armando Lopes (concepção gráfica)/© Corbis/VMI (imagem) Fotocomposição Gradiva Impressão e acabamento CEM — Artes Gráficas Reservados os direitos para Portugal por Gradiva Publicações, S. A. Rua Almeida e Sousa, 21-r/c esq. — 1399-041 Lisboa Telef. 21 393 37 60 — Fax 21 395 34 71 Dep. comercial Telefs. 21 397 40 67/8 — Fax 21 397 14 11 [email protected]/www.gradiva.pt 1ª edição Maio de 2013 Depósito legal 359 090/2013 ISBN 978-989-616-519-2 gradiva Editor GUILHERME VALENTE Visite-nos na internet www.gradiva.pt In memoriam, H. S. T. Este poeta teve o prenúncio de uma visão e a grande sede que tinha de tal visão atormentava a sua alma. Dela retirava uma grandiloquência de paixão e anseio que erguia os leitores acima da sua obra e de todas as obras e lhes dava asas para voarem... NIETZSCHE Grande dúvida: grande despertar. Pequena dúvida: pequeno despertar. Dúvida nenhuma: despertar nenhum. MÁXIMA ZEN Índice 1. Ciência e liberdade 2. Ciência e liberalismo 3. A ascensão da ciência 4. A ciência do Iluminismo 5. Independência americana 6. O terror 7. Poder 8. Progresso 9. A ciência da riqueza 10. Anticiência totalitária 11. Anticiência acadêmica 12. Um só mundo Agradecimentos Notas Orelha do livro TIMOTHY FERRIS, considerado pelo Washington Post como o melhor divulgador de ciência da sua geração, é autor de Seeing in the Dark e The Mind's Sky (ambos incluídos na lista de melhores livros do ano de The New York Times), e ainda de The Whofe Shebang (incluído pela revista American Scientist na lista dos cem livros mais importantes do século XX). Membro da American Association for the Advancement of Science, Ferris leccionou em quatro universidades. É Professor Emérito na Universidade da Califórnia, em Berkeley, e antigo editor da revista Rolling Stone. Os seus artigos e ensaios foram publicados em The New Yorker, Time, News week, Vanity Fair, National Geographic, Scientific American, The Nation, The New Republic, The New York Review of Books, The New York Times Book Review, entre muitas outras publicações. Colaborador da CNN e da National Public Radio, Ferris produziu três séries de televisão especiais para o canal public norte-americano PBS: The Creation of the Universe, Life beyond Earth e Seeing in the Dark. Contracapa No mais importante livro que publicou até à data, o premiado autor Timothy Ferris defende entusiasticamente que foi a ciência que inspirou a ascensão do liberalismo e da democracia. Ferris a firma que, do mesmo modo que a revolução científica resgatou milhares de milhões de pessoas da pobreza, do medo, da fome e da doença, os valores do Iluminismo que ela inspirou fizeram aumentar extraordinariamente o número daquelas que vivem em sociedades livres e democráticas. Timothy Ferris analisa com argúcia a evolução destas revoluções científicas e políticas, demonstrando que elas estão inextricavelmente relacionadas. Mostra igualmente como a ciência fez parte integrante da Revolução Americana, mas foi mal interpretada na Revolução Francesa; reflete sobre a história do liberalismo, salientando a sua relação muito subestimada mas mutuamente benéfica com a ciência, e estuda as forças que se opuseram à ciência e ao liberalismo — do comunismo e do fascismo ao pós-modernismo e ao fundamentalismo islâmico. Um livro que poderia ter sido encomendado pela Gradiva para comemorar a publicação do número 200 da coleção «Ciência Aberta», pois documenta um dos objetivos que presidiu à criação da coleção. 1. Ciência e Liberdade A liberdade [...] é a grande mãe da ciência e da virtude; e [...] uma nação será grande em ambas, sempre na medida da sua liberdade. THOMAS JEFFERSON A JOSEPH WILLARD, 1789 A ciência enquanto subversão tem uma longa história. FREEMAN DYSON, 1989 Ao longo dos últimos séculos, duas transformações — uma científica, outra democrática — alteraram a maneira de pensar e o bem-estar da espécie humana. A revolução científica está ainda a ganhar velocidade, mas já revelou mais sobre o universo do que tudo aquilo que se tinha aprendido anteriormente ao longo da história, enquanto as aplicações tecnológicas do conhecimento científico salvaram milhões de pessoas da pobreza, da ignorância, do medo e de uma morte prematura. A revolução democrática fez chegar a liberdade e a igualdade de direitos a quase metade dos habitantes do globo, tomando a democracia o sistema preferido dos povos esclarecidos, um pouco por toda a parte. Estas duas transformações estiveram e continuam a estar ligadas: no final do século XX, todas as nações científicas do mundo eram democracias liberais, ou pelo menos parcialmente liberais (o que significa um Estado que garante os direitos humanos aos seus cidadãos, os quais elegem os seus dirigentes). De que forma, porém, estão elas ligadas? O cenário que a maior parte de nós aprendeu na escola apresenta estas transformações em três atos — o Renascimento, a revolução científica e o Iluminismo. Na Renascença (ou Renascimento, entre cerca de 1450 e 1600), os textos clássicos gregos e romanos foram disponibilizados aos europeus através do comércio com o mundo árabe, produzindo uma profusão de arte e pensamento humanísticos, assim como alguns rebentos de ciência — como quando, em 1543, Copérnico demonstrou que os movimentos dos planetas nos céus podiam ser tão facilmente explicados pelo movimento da Terra em volta do Sol como pela velha cosmologia centrada na Terra. A resultante efervescência de pensamento humanístico e científico acabaria por produzir o Iluminismo, que, por sua vez, desencadeou a revolução democrática. Por este motivo, o Iluminismo é frequentemente referido como tendo começado com a revolução inglesa de 1688 e terminado com a Revolução Francesa, de 1789. Entretanto, por alguma razão, deu- -se uma revolução científica e assim surgiu o mundo moderno. O cenário tradicional funciona razoavelmente como âmbito de estudo, mas retrata a ascensão simultânea da ciência e da democracia liberal como pouco mais do que uma série de coincidências. A situação torna-se mais clara se nos interrogarmos sobre o que havia de novo: qual foi o ingrediente inovador — o cristal lançado no líquido supersaturado que o fez solidificar subitamente — sem o qual a revolução democrática não teria ocorrido? Este livro defende que esse novo ingrediente foi a ciência. Afirma que a revolução democrática foi desencadeada — provocada talvez não seja uma palavra demasiado forte — pela revolução científica e que a ciência continua, ainda hoje, a alimentar a liberdade política. Não se trata apenas de a criatividade científica ter produzido melhorias tecnológicas, que, por sua vez, contribuíram para aumentar a prosperidade e a segurança das nações científicas, embora isso seja uma parte da história; trata-se de as liberdades garantidas pelas democracias liberais serem essenciais para facilitar a investigação científica e de a democracia ser ela própria um sistema experimental sem o qual nem ciência nem liberdade podem florescer. A fim de investigar esta afirmação e as suas implicações, este livro propõe-se fazer três coisas. Primeiro, explora a relação histórica entre ciência e liberdade desde o Renascimento até ao final do século analisando a ciência como um XVIII, empreendimento contínuo que requer liberdade de expressão, de circulação e de associação. Defende que o cepticismo científico é corrosivo para o autoritarismo e que a experimentação científica constitui um melhor modelo para a governação do que qualquer dos sistemas que a precederam. Segundo, o livro esboça a evolução das sociedades democráticas e científicas a partir do século XVIII, para tentar perceber de que forma as ideias e as práticas da ciência influenciaram as suas políticas sociais. Até certo ponto, isso equivale a testar o argumento fazendo previsões retroativas sobre o que teria acontecido se a ciência promovesse, efetivamente, a liberdade e a democracia. Reconheço que este procedimento é facilmente susceptível de abuso — qualquer um poderá, hoje em dia, sabendo como as coisas se desenrolaram, peneirar a documentação existente em busca de factos que confirmem a sua argumentação —, mas são essas as contingências da história. Finalmente, o mundo atual é analisado à luz da ciência e da liberdade — tendo em conta as poderosas forças anticientíficas que ensombram os nossos tempos — revelando, surpreendentemente, por entre uma amálgama de problemas, grandes razões de esperança. A palavra «ciência» deriva do termo latino scientia, que significa conhecimento. Nesse sentido mais lato da palavra, Anaximandro de Mileto poderá ser considerado um biólogo por ter proposto, no século vi a. C., que os seres humanos descendiam dos peixes e Aristarco de Samos um astrônomo, uma vez que, no século m a. C., sugeriu que a Terra girava à volta do Sol. O problema com esta abordagem é que ela faz um cientista de qualquer filósofo que possa ter exprimido uma opinião razoavelmente rigorosa sobre um tema que depois disso se tornou efetivamente uma ciência. Especular e ter razão não é o mesmo que fazer ciência. Como observou o filósofo norte-americano Alfred North Whitehead: «Tudo o que é importante já foi dito anteriormente por alguém que não o descobriu.» A essência da ciência é a experimentação e só alguns pensadores antigos realizaram experiências científicas, entre os quais Eratóstenes de Cirene, que fez uma medição geométrica do diâmetro da Terra no século m a. C.; Estratão de Lâmpsaco, que fez experiências com vácuo e ar comprimido, por volta da mesma época, e Galeno, que, um pouco mais tarde, dissecou cadáveres de animais e de seres humanos. Assim, por uma questão de clareza, este livro usará o termo «ciência» para referir aquilo que é frequentemente designado por ciência moderna — ou seja, a investigação que envolve observação e experimentação, conduzida como um empreendimento social contínuo por cientistas profissionais, que trabalham em laboratórios e dão contributos para conferências e revistas da sua especialidade. Liberdade significa respeito pelos direitos humanos e pelas liberdades individuais. Na prática, os governos que conseguiram isso eram quase todos democracias liberais, de modo que a ascensão da liberdade pode ser aproximadamente equiparada à ascensão da democracia liberal. Este processo começou lentamente, mas acelerou muito durante os últimos cem anos. Em 1900 não havia uma única democracia liberal em todo o mundo (uma vez que nenhuma tinha ainda sufrágio universal); em 1950 havia vinte e duas e em 2009, apesar de recentes reveses, havia oitenta e nove democracias, abrangendo 46 por cento da população mundial. A afirmação de que a ciência apenas floresce em ambientes democrático-liberais baseia-se em cinco argumentos. Primeiro, a ciência é inerentemente antiautoritária. Para ser considerada científica, uma hipótese tem de ser susceptível de verificação experimental. Se falhar repetidamente essa verificação acabará por ficar pelo caminho, independentemente de quem a possa ter apoiado ou de até que ponto parecia fazer sentido. O veredicto da experimentação já rejeitou rudemente declarações de grandes pensadores, de Aristóteles (que julgava que homens e mulheres nasciam com um número diferente de dentes) a Einstein (que insistia que a física quântica tinha de ser determinística), e já serviu para deitar por terra reivindicações de alquimistas que procuravam transformar o chumbo em ouro ou a sabedoria popular subjacente a milhares de estereótipos raciais, étnicos e sexuais. O próprio processo de fazer ciência de ponta — realizar descobertas importantes, mais do que meramente aperfeiçoar velhas ideias — depende de concepções pouco familiares e por vezes até impopulares serem livremente promulgadas, discutidas e, em certos casos, aceites. O facto de atualmente, milhões de pessoas estarem abertas a novas ideias e se mostrarem cépticas em relação à autoridade