Chave Espiritual da Astrologia Muçulmana segundo Mohyiddîn ibn Arabi Titus Burckhardt Tradução: Pedro Sette Câmara Imagens: Eric Parrot www.astrologiatradicional.com 2 I A obra escrita do “maior mestre” (ash-shaikh al-akbar) Sufi, Mohyiddîn ibn Arabi, contém certas considerações sobre a astrologia que permitem vislumbrar como esta ciência, que só chegou ao Ocidente moderno de forma fragmentária e reduzida a algumas de suas aplicações mais contingentes, pode ser relacionada a princípios metafísicos, por isto mesmo ligados a um conhecimento que se basta a si mesmo. A astrologia, tal como foi difundida na Idade Média nas civilizações cristã e islâmica e como subsiste ainda hoje em certos países árabes, deve sua forma ao hermetismo alexandrino; ela não é, portanto, nem islâmica nem cristã na sua essência, e não poderia, ademais, encontrar um espaço na perspectiva religiosa das tradições monoteístas, uma vez que esta perspectiva insiste na responsabilidade do indivíduo perante seu Criador, evitando portanto tudo que possa velar esta relação pela consideração de causas intermediárias. Se a astrologia, não obstante isto, pôde ser integrada nos esoterismos cristão e muçulmano, foi porque ela perpetuava, transmitida pelo hermetismo, certos aspectos de um simbolismo muito primordial: a penetração contemplativa da ambiência cósmica, e a identificação espontânea das aparências – constantes e rítimicas – do mundo sensível com seus protótipos eternos, em correspondência com uma mentalidade ainda primitiva, no sentido próprio e positivo deste termo. Esta primordialidade implícita do simbolismo astrológico se ilumina no contato com a espiritualidade direta e universal de um esoterismo vivo, assim como o brilho de uma pedra preciosa se acende quando esta é exposta aos raios da luz. Mohyiddîn ibn Arabi encaixa os dados da astrologia hermética no edifício de sua cosmologia, a qual resume através de um esquema de esferas concêntricas, tomando como ponto de partida e como termo de comparação o sistema geocêntrico do mundo planetário como concebido pela astrologia medieval. A polarização “subjetiva” deste sistema – referimo-nos ao fato de que a posição terrestre do ser humano serve de ponto fixo ao qual serão relacionados todos os movimentos dos astros – simboliza o papel central do homem no conjunto cósmico, que nele tem como que seu ápice e centro de gravidade. Esta perspectiva simbólica não depende naturalmente da realidade puramente física ou espacial do mundo dos astros, a única que a astronomia moderna considera; o sistema geocêntrico, sendo conforme à realidade tal como se apresenta imediatamente aos olhos humanos, possui em si mesmo toda a coerência lógica que um conjunto de conhecimentos precisa ter para constituir uma ciência exata. A descoberta do sistema heliocêntrico, que corresponde a um desenvolvimento possível e homogêneo mas muito particular do conhecimento empírico, evidentemente nunca poderia provar nada contra a posição central do ser humano no cosmos; contudo, a possibilidade de conceber o mundo planetário como se o observássemos desde uma posição não-humana, e mesmo como se pudéssemos abstrair a existência do ser humano – cuja consciência continua ainda assim sendo o “continente” de todas estas percepções – produziu um desequilíbrio intelectual que mostra como uma extensão “artificial” do conhecimento empírico tem qualquer coisa de anormal, e que intelectualmente ela não é apenas indiferente, mas até 3 prejudicial1. A descoberta do heliocentrismo teve efeitos semelhantes aos de certas vulgarizações do esoterismo: pensamos sobretudo naquelas inversões de ponto-de-vista que são próprias da especulação esotérica2; a confrontação dos simbolismos dos sistemas geocêntrico e heliocêntrico mostra muito claramente o que é uma inversão destas: o fato de que o sol, fonte da luz dos planetas, seja igualmente o pólo que rege seus movimentos, comporta, como toda coisa existente, um simbolismo evidente; e representa, na verdade, sempre desde o ponto de vista simbólico e espiritual, um ponto de vista complementar ao da astronomia geocêntrica3. 1 “... Os ‘erros científicos’ devidos a uma subjetividade coletiva – o gênero humano e os seres terrestres em geral verem o sol girar em torno da terra, por exemplo – traduzem um simbolismo verdadeiro, e por conseqüência ‘verdades’ que são evidentemente independentes dos simples fatos que as veiculam de maneira inteiramente provisória; a experiência subjetiva, tal como aquela que mencionamos a título de exemplo, não tem nada de fortuito. É ‘legítimo’ para o homem admitir que a terra é chata, uma vez que ela o é empiricamente; por sua vez, é inteiramente inútil saber que ela é redonda, pois este saber não acrescenta nada ao simbolismo das aparências, mas o destrói inutilmente e o substitui por outro que não seria capaz de exprimir as mesmas verdades, e ainda apresenta o inconveniente de ser contrário à experiência humana imediata e geral. O conhecimento dos fatos por si mesmos não tem, fora das aplicações científicas relacionadas, nenhum valor; dito de outro modo, ou nos colocamos na verdade absoluta, e aí os fatos não são mais nada, ou nos colocamos no plano dos fatos, e aí estamos de qualquer jeito na ignorância. Fora isto, é preciso dizer ainda que a destruição do simbolismo natural e imediato dos fatos – tal como a forma plana da terra ou o movimento circular do sol – acarreta graves inconvenientes para a civilização onde isto acontece, como não cessa de mostrar o exemplo da civilização ocidental.” (Frithjof Schuon: “Fatalité et progrés”, em Études traditionelles) 2 Há indícios que permitem supor que os pitagóricos já conhecessem o sistema heliocêntrico. Não se exclui a hipótese de que este conhecimento tenha sempre se mantido, e que a decoberta de Copérnico não tenha sido na verdade mais que uma simples vulgarização, como muitas outras “descobertas” do Renascimento. Copérnico mesmo se refere, no prefácio – endereçado ao Papa Paulo III – de seu livro fundamental, Sobre as órbitas dos corpos celestes, a Hicetas de Siracusa e a certas citações de Plutarco. Hicetas era um pitagórico; Aristóteles, em seu livro Do céu, diz que “os filósofos itálicos, que chamamos pitagóricos, têm opinião contrária àquela da maioria dos físicos, afirmando que o centro do mundo é ocupado pelo fogo, enquanto que a terra, que é uma das estrelas, revolve em torno deste centro, causando assum o dia e a noite.” Aristarco de Samos, astrônomo de Alexandria que viveu em torno de 250 a.C., ensina igualmente o sistema heliocêntrico; também Al-Biruni, o célebre compilador muçulmano das tradições hindus, conta que alguns sábios da Índia diziam que a terra girava em torno do sol. 3 O que torna os dois sistemas inconciliáveis não é evidentemente sua perspectiva “visual”, mas a teoria de gravitação ligada ao sistema heliocêntrico. 4 E E s f s e f r e C C a C r C éC a é d C ué C é ué dou éu ud é o ud T PÁ u ed Éd d eeT Aee dgetM ed dr eSaru rJ roVoer MaaeúaL sntrSpêtuucaoaoniaúrrlt luntd erdeisorioviviinnoo Mohyiddîn ibn Arabi de certa maneira engloba a verdade essencial do heliocentrismo em seu edifício cosmológico: como Ptolomeu e como toda a Idade Média, ele confere ao sol, que compara ao “pólo” (qutb) e ao “coração do mundo” (qalb al-âlam), uma posição central na hierarquia das esferas celestes, contando um número igual de céus superiores e inferiores ao céu do sol; ele ainda amplia o sistema de Ptolomeu, também assinalando a simetria das esferas em relação à esfera do sol: segundo seu sistema cosmológico, provavelmente tomado do Sufi andaluz Ibn Massarrah, não apenas o sol se encontra no centro dos seis planetas conhecidos – Marte (al-Mirikh), Júpiter (al-Mushtarî) e Saturno (Zuhul), mais distantes da terra (al-Ardh) que o sol (ash-Shams); e Vênus (az-Zuhrah), Mercúrio (al-Utarid) e a Lua (al-Qamar), mais próximos dela – mas além do céu de Saturno se situam ainda as abóbadas do céu das estrelas fixas (falak al-kawâkib), do céu sem estrelas (al-falak al-atlas), e as duas esferas supremas do “Pedestal” divino (al-Kursî) e do “Trono” divino (al-’Arsh), esferas concêntricas às quais correspondem 5 simetricamente as quatro esferas sublunares do éter (al-âthir), do ar (al-hawâ), da água (al-mâ) e da terra (al-ardh). Assim ficam sete esferas para cada lado do sol, com o “Trono” divino simbolizando a síntese de todo o cosmos, e o centro da terra o resultado inferior e o centro de fixação. Não é preciso dizer que entre todas as esferas desta hierarquia somente as esferas planetárias e a das estrelas fixas correspondem à experiência sensível, ainda que elas não devam ser enxergadas somente sob este aspecto; quanto às esferas sublunares do éter – que não significa aqui a quinta-essência, mas o ambiente cósmico no qual o fogo é reabsorvido – , do ar e da água, é preciso vê-las segundo uma hierarquia teórica dos graus de densidade, e não como esferas espaciais. No que diz respeito às esferas supremas do “Pedestal” e do “Trono” divinos – a primeira contendo os céus e a terra e a segunda englobando todas as coisas4 – , sua forma de esferas é puramente simbólica, e elas marcam a passagem da astronomia à cosmologia integral e metafísica5: o Céu sem estrelas (al-falak al-atlas), que é um “vazio” e que por isso mesmo não é espacial, marcando antes o “fim” do espaço, marca também a descontinuidade entre o formal e o informal; isto parece, de fato, um “nada” do ponto de vista do formal, do mesmo modo que o principial parece um “nada” do ponto de vista do manifestado. Compreende-se que esta passagem do ponto de vista astronômico ao ponto de vista cosmológico ou metafísico nada tem de arbitrária: a distinção entre um céu visível e um céu que escapa à nossa visão é real, ainda que sua aplicação seja apenas simbólica; o invisível torna-se espontaneamente o “transcendente”, conforme o simbolismo oriental; as esferas da manifestação aformal – o “Trono” e o “Pedestal” – são expressamente chamadas “o mundo invisível” (’âlam al-ghaïh), sendo que a palavra ghaïh significa tudo que está fora do alcance da nossa visão, o que mostra bem a correspondência simbólica entre o “invisível” e o “transcendente”. O “Pedestal” sobre o qual repousam os “Pés” d’Aquele que está sentado sobre o “Trono” representa a primeira “polarização” ou determinação distintiva no que diz respeito à manifestação formal, determinação que comporta uma “afirmação” e uma “negação” às quais correspondem, no Livro revelado, o mandamento (al-amr) e a proibição (an-hahî). 4 É o que ensina o Corão. Segundo uma expressão do Profeta, o mundo está contido no “Pedestal” divino e este no “Trono” como um anel num molde de terra. 5 Em certos esquemas simbólicos do Sheikh al-akbar, encontramos outras esferas mais vastas que a do “Trono”, sendo este simbolismo naturalmente suscetível a uma extensão maior ou menor; contudo, a hierarquia que acabamos de apresentar representa em si mesma um conjunto completo, uma vez que o “Trono” engloba toda a manifestação. É o que ensina Mohyiddîn ibn Arabi, em conformidade com o Corão, nas “Revelações de Meca” (Al-Futûhât al-makkiyah); em outros escritos, ele fala de uma hierarquia de diferentes “Tronos” que constituem graus principais da existência aformal. 6 O céu sem estrelas (al-falak al-atlas) é também o céu das doze “torres” (burûj) ou “signos” do zodíaco; estas não são idênticas às doze constelações zodiacais contidas no céu das estrelas fixas (falak al-kawâkih ou falak al-manâzil), antes representando as “determinações virtuais” (maqâdir) do espaço celeste, não se diferenciando senão por sua relação com as “estações” ou “mansões” (manâzil) planetárias projetadas no céu das estrelas fixas. Aqui há um ponto muito importante para a compreensão da astrologia árabe e ocidental; voltaremos a ele mais adiante. A cosmologia tradicional não estabelece uma diferença explícita entre os céus planetários em sua realidade corpórea e visível e aquilo que lhes corresponde na ordem sutil, porque o símbolo se identifica essencialmente com a coisa simbolizada; ademais, não há razão para fazer distinção entre um e outro exceto onde esta distinção possa de fato ser feita e, conseqüentemente, o aspecto derivado possa ser tomado separadamente pelo todo, assim como a forma corporal de um ser vivente pode ser tomada pelo ser inteiro; já no caso dos ritmos planetários – pois são estes que constituem os diferentes “céus” – esta distinção só pode ser feita pela aplicação teórica de concepções mecânicas estranhas à mentalidade contemplativa das civilizações tradicionais6. As esferas planetárias são portanto simultaneamente partes do mundo corporal e graus do mundo sutil; o Céu sem estrelas, que é o limite extremo do mundo sensível, envolve simbolicamente todo o estado humano e compreende todos os “prolongamentos” superiores deste estado; o Sheikh al-akbar situa os estados paradisíacos entre o céu das estrelas fixas e o céu sem estrelas – ou céu das “Torres” zodiacais; os paraísos superiores tocam, por assim dizer, a existência aformal, ainda que permaneçam circunscritos pela forma sutil do ser humano7. Logo, em relação ao estado humano integral, o céu das “Torres” zodiacais é o “lugar” dos arquétipos. Aquilo que se situa além do céu das estrelas fixas, entre este e o céu sem estrelas, mantém-se na duração pura, enquanto que tudo que está abaixo do céu das estrelas fixas está submetido à geração e à corrupção. Pode parecer estranho que a esfera do céu supremo, que é o primum mobile, seja identificada com o mundo incorruptível, uma vez que o movimento acontece necessariamente no tempo. Mas o que é preciso ter em conta aqui é que a revolução do céu mais elevado, sendo ela mesma a medida fundamental do tempo, segundo a qual todos os demais movimentos são medidos, não pode ser ela mesma passível de medida temporal, correspondendo à indiferenciação da duração pura. Assim como os movimentos concêntricos dos astros se diferenciam na ordem de sua 6 Assim, os índios da América do Norte, que não têm teorias sobre a eletricidade, podem ver no relâmpago o poder mesmo do “Pássaro do Trovão”, que é o Espírito divino na manifestação macrocósmica; há inclusive casos em que a percussão do relâmpago confere poderes espirituais, o que não seria possível aos europeus, acostumados que estão a separar mentalmente as formas sensíveis de seus arquétipos “sobrenaturais”. 7 Trata-se da definição cosmológica dos estados paradisíacos, e não de seu simbolismo implícito, que faz com que suas descrições possam ser transpostas aos graus mais elevados da existência e mesmo ao Ser puro, já que, em linguagem Sufi, fala-se num “paraíso da Essência” (djannat adh-dhât). 7 dependência sucessiva, do mesmo modo a condição temporal se torna precisa e se contrai, de certo modo, na medida em que interfere na condição espacial; e, por analogia, as diferentes esferas do mundo planetário – ou mais exatamente os ritmos de suas revoluções –, que se escalonam a partir dos limites indefiníveis do espaço até o meio terrestre, podem ser consideradas outros tantos graus sucessivos da “contração” temporal8. 8 Por esta razão, a hierarquia astrológica dos céus planetários situa Mercúrio entre Vênus e a Terra, pois Mercúrio se move mais rapidamente que Vênus, e isto apesar de Vênus estar mais perto da Terra e Mercúrio mais perto do Sol. 8 II O simbolismo astrológico reside nos “pontos de junção” das condições fundamentais do mundo sensível, e especialmente nas junções do tempo, do espaço e do número. Sabemos que a definição das regiões ou partes da grande esfera do céu sem estrelas por meio dos pontos de referência dados pelas estrelas fixas coincide, em astronomia, com a definição das divisões do tempo. Por sua vez, a esfera-limite do céu só é mensurável pelas direções do espaço; quando falamos das partes do céu, nada fazemos além de definir as direções; por outro lado, elas são as expressões da natureza qualitativa do espaço, de modo que os limites do indefinido espacial se reintegram, de certa maneira, no aspecto qualitativo em questão; o conjunto das direções que partem de um centro contém virtualmente todas as determinações espaciais possíveis9. A expansão extrema e indefinida destas direções é a abóbada do céu sem estrelas, e seu centro é cada ser vivente que se encontra sobre a terra, sem que a “perspectiva” das direções seja diferente de um indivíduo a outro, uma vez que nossos eixos visuais coincidem sem se confundir quando fixamos a visão num mesmo ponto da abóbada celeste – no que se exprime evidentemente uma coincidência de ponto de vista microcósmico com o “ponto de vista macrocósmico”10. É preciso distinguir estas distinções “objetivas”, isto é, iguais para todos os seres terrestres que olhem para o céu no mesmo instante intemporal, e as direções que podemos chamar “subjetivas”, porque são determinadas pelo zênite e pelo nadir individuais; observemos de passagem que a base do horóscopo é precisamente a comparação entre estas duas ordens de direções do espaço celeste. A indefinitude das direções do espaço é em si mesma indiferenciada, ou seja, ela contém virtualmente todas as relações espaciais possíveis sem que a possamos definir. Mas as qualidades destas direções do espaço celeste são interdependentes; quer dizer, uma vez que uma direção do espaço celeste – ou o ponto da esfera-limite que lhe corresponde – é definido, todo o conjunto das outras direções se diferencia e se polariza em relação a ela. É neste sentido que o Mestre diz que as divisões do céu sem estrelas ou céu das “torres” zodiacais são 9 Ver o capítulo a respeito do espaço qualificado em O Reino da Quantidade e os Sinais dos Tempos, de René Guénon. 10 Esta coincidência de perspectivas não acontece somente quando fixamos a visão num ponto do céu- limite, mas até quando a fixamos num planeta. Ela se exprime na experiência comum em que cada pessoa que vê o sol nascer ou se pôr na outra ponta de uma superfície de água vê o “caminho” dos raios refletidos na água vir diretamente na sua direção; quando o espectador se move, o caminho luminoso o segue. – Assinalemos de passagem que os índios da América do Norte consideram este caminho luminoso projetado pelos raios do sol poente o caminho das almas para o mundo dos ancestrais; de fato, podemos ver aí uma projeção “horizontal” do “raio solar”, que segundo o simbolismo hindu representa o elo pelo qual cada ser particular está diretamente ligado a seu princípio. Sabemos que os textos sacros do hinduísmo descrevem este raio como se fosse da “coroa” da cabeça até o sol. O mesmo simbolismo – implicando por sua vez a idéia de um elo direto e a da “Via Divina” – se encontra naquela passagem da Sura Hûd: “Não existe criatura que Ele (Allah) não possa agarrar pelo topete. Meu Senhor está na senda reta.” (11.56) – Como a “Via Divina”, a direção que vai de um ser terrestre qualquer a um ponto determinado da abóbada celeste é simultaneamente única para cada um e uma para todos. 9 “determinações virtuais” que só se diferenciam pela relação com o céu das “estações” dos astros. Ora, os pontos fixos do céu das estações são antes de tudo os pólos respectivos da revolução diurna do céu (ou da terra) e do ciclo anual do sol, e por conseqüência os pontos que a divergência destes pólos determina sobre a eclíptica, isto é, de um lado os dois equinócios, pontos de interseção da órbita solar com o equador; e de outro e os dois solstícios, pontos extremos das duas fases, ascendente e descendente, do ciclo solar. Uma vez que estes quatro pontos da eclíptica sejam determinados, as oito demais divisões zodiacais se seguem em função das partições ternárias e senárias naturalmente inerentes ao círculo, tal como exprime a relação entre o raio e as proporções do hexágono inscrito nele. Então como que se produz uma cristalização espontânea das relações espaciais, com cada um dos pontos do quaternário evocando dois outros pontos de um triângulo, que por sua vez repetem a relação em “quadrado”, de modo que a divisão do círculo por quatro seja integrada e compensada por uma síntese “congênita” à natureza “universal” do ciclo, segundo a fórmula 3x4=4x3=12. Geração do duodenário zodiacal pelo quadrado e pelo triângulo Se os dois grandes círculos, o do equador celeste e o do ciclo solar, coincidissem, as estações não se manifestariam. A divergência entre os dois grandes círculos celestes exprime portanto de maneira evidente a ruptura de um equilíbrio que engendra uma certa ordem da manifestação, isto é, a de contrastes e complementaridades, e os quatro pontos cardeais, determinados por esta divergência, são as marcas destes contrastes. Ibn Arabî identifica o quaternário zodiacal com o das qualidades ou tendências fundamentais da Natureza total ou universal (at-tabï ‘ah) que é a raiz de todas as diferenciações. Acrescentemos, a fim de impedir qualquer mal-entendido, que a Natureza total, segundo a visão do Mestre, não é a Substância universal como tal, o primeiro princípio passivo que a doutrina hindu chama Prakriti e que Mohyiddîn ibn Arabî designa ora pelo termo al-habâ (“Substância”), ora por al-’unçur al-a‘zam (“Elemento supremo”), mas uma determinação direta desta, enxergada mais particularmente em seu aspecto de “maternidade” em relação às criaturas. A Natureza universal, não manifestada em si mesma, se manifesta através de quatro qualidades ou tendências fundamentais que aparecem na ordem sensível como calor e frio, secura e umidade. O calor e o frio são qualidades ativas, opostas uma à outra; elas se manifestam também como força de 10 expansão e força de contração; elas determinam o par de qualidades passivas, a secura e a umidade11. Relacionadas aos quatro pontos cardeais do zodíaco, o frio corresponde aos dois solstícios, os quais refletem de algum modo a contração polar, enquanto que o calor corresponde aos dois equinócios, que se situam sob o equador, diapasão da expansão dos movimentos celestes. Por causa disto, os signos cardinais se seguem por contrastes; mas as qualidades passivas de secura e umidade dividem-nos em dois pares. As quatro tendências ou qualidades da Natureza se reúnem duas a duas na natureza dos quatro elementos ou fundamentos do mundo sensível, produzidos a partir da substância terrestre: a terra é fria e seca, a água é fria e úmida, o ar é úmido e quente, o fogo é quente e seco. Se atribuirmos estas qualidades elementares aos signos do zodíaco, dizendo que Áries é de natureza ígnea, Câncer aquosa, Libra aérea, e Capricórnio terrestre, é preciso levar em conta o fato de que o zodíaco só comporta modelos celestes dos quatro elementos e que estes modelos são compostos de quatro tendências da natureza total, como ressalta Mohyiddîn ibn Arabî. O quaternário de tendências fundamentais da natureza total deve ser multiplicado, segundo Mohyiddîn ibn Arabî, pelo ternário cujos congêneres cósmicos são os três movimentos ou orientações principiais do Intelecto primeiro ou Espírito universal (al-‘Aql), ou ainda, segundo outro ponto de vista, os três mundos, isto é, o mundo presente, o mundo futuro e o estado intermediário de barzakh12. Os três movimentos ou orientações do Espírito são: o movimento descendente, que se distancia aparentemente do Princípio e que dá a medida da profundidade (al-‘umq) do possível; o movimento expansivo, que dá a medida de sua amplitude ou vastidão (al-‘urd); o movimento de retorno à origem, que se dirige no sentido de exaltação ou de altura (at-tûl). Este ternário do Espírito é superior ao quaternário da Natureza; se aqui ele aparece em segundo lugar, é porque a diferenciação do céu dos arquétipos zodiacais procede dos contrastes manifestados para concluir na sua reintegração na síntese perfeita. Como conseqüência desta reintegração ou multiplicação, todos os pontos do zodíaco que se encontram em relação de trígono têm a mesma natureza elementar mas se distinguem pelas qualidades referentes ao ternário do Espírito; e todos os pontos que se encontram em quadrado têm a mesma qualidade espiritual mas se distinguem pelos contrastes elementares. Disto já podemos deduzir as diferentes características dos “aspectos” ou posições recíprocas dos planetas na eclíptica; a relação em ângulo reto significa um contraste, assim como a oposição significa uma oposição; o trígono é a expressão da síntese perfeita, e o sextil, quer dizer, o posicionamento em ângulo de 60 graus, exprime uma afinidade. Aplicados à natureza do ciclo, os três movimentos principiais do Espírito não podem mais ser comparados às três dimensões de profundidade, amplitude e altura, mas aparecem segundo um reflexo conforme a esta natureza: a única tendência que se manifesta diretamente na ordem cíclica é a de expansão na amplitude, porque o ciclo é antes de tudo a imagem do desenvolvimento de todas as possibilidades implicadas na amplitude 11 A medicina tradicional do mundo muçulmano reduz todas as doenças a manifestações de desequilíbrio destas quatro tendências. 12 Sobre os diferentes significados deste termo, ver nosso artigo “Du Barzakh”, em Études traditionelles, dezembro de 1937.