CAPiTULO XXVI Agora, lugar para outro GI-ande. É 13ocage. Ao entraI' um Poeta nestas páginas caóticas de velharias escuras, raiou uma luz. A poesia é um clarao da alma; :l esse clarão estudemos o Poeta . • SlIbindo a travessa das Merces, topamos na esquina oriental da rua dus Caelallos um ediCicio, que chega ate à rua do Carvalllo {hoje de Lll{ Soriallo), e cujo aspecto eclesiãstico ainda ha cinco anos nos denunciava claramente a sua antiga destinaçào: foi o cemitério das Mercês. A ca pela paroquial era acanhada; cemitérios ao ar livre, largos e desafrontados, como agora, não os havia: serviam pois estes recintos apropriados, com o seu consagrado chão, à sombra da ideia religiosa. I"rolll8.la do ."t1S" Cemli~.io da frell". ..b d~, Muc':-s II. ru~ d~ Ca~la"o~ lISI30A ANTIGA 2H.l Quem ali passava hã poucos anos, ainda por 1897, julgava estar vendo uma igreja vasta mas pobre; a frontaria para a rua dos Caetanos, pesada e acachapada, sobrepujou·a até l834 o símbolo cl-is tão. Ao topo, na parede sobre a rua do Cm"valho, levantava-se um massiço de alvenaria, onde, entre duas janelas, se erguia o altar para os sufrãgios piedosos_ À banda do Norte ficava a sacristia, e um pátio inteI"lor que ainda lã está. À parte do Sul, sobre a travessa, corria uma parede nua, apenas rasgada lá no alto por cinco frestas. O ar desam· parado e lristonho do casarão causava melancolia; e, contudo, poucos saberiam já ser ali um cemitério, que se alugava a uma rábrica de carruagens I Ao som do martelo e da lima, c/IIrc a orquestra da scrra c do !/Ia/11o 05 mortos continuavam a dormir. Vendido o profanado edificio pela Fazenda nacional, comprou·o o sr. Alberto Neves para a sua fábrica de carruagens; mas não arrematou só paredes; incluiram-se na aquisição os ossos nume· rosíssimos ali acumulados desde longo tempo, e sepultados em noventa covas, que tapisavam o longo pavimento, a seis de largo sobre quinze. Sim, vendeu·se o coval, venderam·se os ossos, venderam se as memórias íntimas que ali se tinham encerrado, vendeu-se tudo, porque os Governos deste regime só tratam de demolir e fazer dinheiro. Assim, ao menos, hão-de ficar lembrando no futuro. 220 LISBOA ANTIGA Muita gente notâvel se encontraria entre as noventa covas, certamente; de duas sei cu, de que ninguém fez caso, e que deviam ter merecido menos desprezo da parte de quem ordenou a venda pública; refiro· me a Tolentino, e a Bocage. Da sepultura do primeiro nada sei; do segundo direi alguma coisa; mas vamos por partes. " Na travessa de And,-é Valente faleceu o incompa~ rável Manuel Maria Barbosa do Bocage; confesso que não conheço muito ao certo a casa. Tenho ouvido duvidar da indicada pelo sr . .JOSé Feliciano de Castilho Ban'eto de Noronha na sua Vida do poeta; é ponto que ainda, me parece, está para averiguar('). <I) N60 ha\1ia rllzi10 pll!"1I duoidllr dll indicação de José Feliclnno dc ellsUlho. 1\ caSft ondc tlllccCll o Poeta cm 1805. era ti que nesse ano tinha o número 11 e mais lorde o n.-25. O folheto (sejlllrata do Boletim da f\ssociaç1io dos l\rqueó~ logos Portllgueses) PUbllCII(Io, como comemorllçtiQ cente~ ni:1ria, cm 1905, pelo meu saudoso amigo 1\nLónlo CéslIr de Gouueill Leite ftlrlnhtl C' I'1cntl, com podre de Mestre Jdllo de ClIsttlho, pro\lll~O exuberllntemenlc .• 1\ casa onde tllleceu &clIge-_ tal é o seu títalo - com pendia todos os Inlormes ess('nclni~ ti demonstração da \l('rdllde. Bocagc morreu no terceiro andar dessa modestn resl(fênCill, e SUtl irmã, D Maria Frllncisca, ('ompanheira dos seus últimos inslantes, (lU continuou D tlluer, até 1809 pelo menos. (Nota de M. S.). LISBOA ANTIGA 221 Seja como fõr, foi ali que o pintor Henrique José da Silva (I-Jenrillll), irmão do célebre calígrafo Joaquim José Ventura da Silva, mais conhecido pelo Jlenlul'o, pintou do natural o fiel retrato do seu inreliz amigo, quando este,já nas últimas do aneu· risma que o levou, ensaiava os seus derradeiros carme~, tão sentidos sempre, tao vigorosos aincla, o :.: ..o ~ .~ < U O a < ::::o '" @sse retrato, gravado pelo eminente Rartololzi, é reproduzido aqui, I-Ienrino partiu para o Brasil, onde se fixou e faleceu, mas em 1812 ainda cá estava, e anunciava, na Go;eta n,O 5õ de Março, ter conclui do o desenho do rell'ato de l3eresford, gravura do mesmo Bartolozzi. • Um filho dele teve no Rio de .Janeiro o emprego de Porteiro da Academia de Belas Artes, e deixou duas filhas, que certamente são defuotasa esta hora, 222 LISBOA ANTIGA Ora o retrato original de Bocage, pintado do natural pelo avÓ dessas senhoras, existia cm poder delas, no Rio de Janeiro; e tendo tido não sei que demanda, entregue aos cuidados de um juris consulto afamado no 81"asil, viram-se em graves dificuldades quando foi necessário satisfazel-ao seu defensoras honorários profissionais. Como este era apreciador de Belas-Artes, pediram-lhe que entre os vários quadros e esboços, que ainda possuíam do pincel paterno, escolhesse os que pudessem agradar-lhe. O advogado apenas se contentou com a pequenina tela bocagiana. Este quadro foi por ele emprestado a meu lia o sr. JOSé Feliciano de Castilho, que o mandou n:produzir a ôleo, ampliado a dimenSóes naturais. por um bom pintor frances do Rio, Moreau, se nflo me falha a memória), e fez presente dessa nohre recordação, devidamente emoldurada, à Câmara Municipal de Setllbal. E basta, que, de assunto em assunto, percor remos todo o orbe terráqueo . • o sr. Neves, proprietário do terreno e das paredes do antigo cemitério das Merces, projectou várias obras para melhorar a instalação da sua fâbrica de carruagens; encarregou delas em Abril de 1897 o habil mestre de obras o sr. Oliveira da Silva. Ora este tem amor às tradições respei. tâveis, e interessa-se pelos trabalhos de que se encarrega j aconteceu prestar ouvidos ao que lhe ,\ \111 I "" I" I r ',./ ~.1. '" /1/ ';'·'1 ,. FnMKISCUS BAltTol.QZ7.1 223 tTSBOA Ah'TlGA disseram em conversação várias pessoas antigas da paróquia, que lhe falaram de Bocage, sepultado naquele mesmo cemitério. Vê·se que a lembrança do grande Poeta ainda tinha calor; ainda por ali se falava dele. Anescentavam essas pessoas que Bocage, falecido em 21 de Dezembro de 1805, ali perto, na travessa de A"d"é Valente, fOra enterrado na cova n. n 36. Para um espírito afectuoso e atento, essa revelação foi um raio de luz; o sr. Oliveira contou, começando de baixo, à mão direita, e achou, até certo ponto, autenticado o aparecimento dos restos mortais de Elmano I Por si me.smo pouco podia; mas dirigiu se a uma pessoa influente, hoje falecida, cuja posição especial lhe aconselhava não descurar matéria de tamanha importftncia; comunicou·lhe o achado, e supli cou·lhe promovesse a remoção oficial dos despojo~ do poeta para sitio apropriado e condigno de UlI nome. Nisto, começava-se, por ordem da autoridade, a brutal transferencia, sem mais cerimónias, sem mais exame, sem mais reclamação, de todas as sessenta e nove ossadas para as valas do Alto de S. Im'l.O e dos Prazeres; o sr. Oliveira o mais que pôde foi ir sustando esse trahalho, e adiando a saida dos ossos da cova 36. Tinha passado um mês, sem que pessoa alguma lhe dissesse o destino daqueles ossos, quando ele de novo procurou o funcionário a quem primeiro se dirigira. Novos elogios ao zelo do oficioso procurador, lástimas de não ter podido ainda tratar do pedido, e protestos de ir em breve proceder
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