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Capítulo A contribuição do pensamento antigo e medieval para o desenvolvimento da ciência ... PDF

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Capítulo 1 A contribuição do pensamento antigo e medieval para o desenvolvimento da ciência política Marcelo da Costa Maciel*1 1.1. Introdução: A importância perene da filosofia política A atividade teórica é muito mais uma forma de poíesis (criação) do que de mímesis (imitação) da assim chamada realidade. Trata-se da elaboração mental da realidade pela qual esta se apresenta como algo dotado de sentido para o homem. No trabalho teórico o discurso racional é a ferramenta indispensável, pois é por meio dele que se pretende codifi car e transmitir os resultados de uma infi ndável investigação dos fenômenos. Partindo de tais premissas, podemos entender a história do pensamento político como algo mais do que uma sucessão de modos de compreensão do * Doutor em Ciência Política e Mestre em Sociologia pelo IUPERJ. É professor do curso de Di- reito da UCAM e dos cursos de Relações Internacionais do IBMEC. Contato: marcelocmaciel@ bol.com.br 2 Curso de Ciência Política ELSEVIER mundo político. Cada teoria política, ao elaborar uma imagem acerca do que é ou deveria ser o mundo, realiza, de fato, uma construção intelectual da realida- de. Contudo, as fabulações da teoria política são, geralmente, assumidas como descrições e avaliações de contextos reais. Com isso, ressalta-se o seu caráter mimético e corre-se o risco de perder de vista o seu caráter poiético, ou seja, a sua dimensão criativa e propositiva. Podemos considerar a produção teórica no campo da política como a fa- bricação, sempre em contexto polêmico, de discursos argumentativos que pre- tendem evidenciar as condições reais da natureza humana e da vida em socieda- de para, com base nelas, prescrever modos de organização e exercício do poder político. Porém, não podemos esquecer que tais discursos necessariamente par- tem de pressupostos. Estes atuam como princípios para a construção e verifi - cação dos discursos, não sendo, eles próprios, verifi cáveis, posto que não são diretamente inferidos da experiência, mas fundamentados pela argumentação fi losófi ca. Isso faz de toda teoria política uma espécie de fi cção, não no sentido de fantasia ou devaneio, mas de construção de mundos possíveis pelo pensa- mento e pelo discurso. A imensa diversidade de paradigmas na história do pensamento políti- co é uma evidência de que os mesmos são obras de verdadeiros “inventores” de mundos sociais possíveis, e não o resultado de uma imediata e inequívoca observação do mundo. Cada paradigma é um modelo para a formulação de teo- rias, as quais, como dissemos, não se referem simplesmente àquilo que aparece, mas contêm proposições sobre o que deveria existir. Assim, a refl exão política, ao pretender descrever/reproduzir/imitar a realidade empírica, fertiliza a nos- sa percepção dessa realidade com proposições ou antecipações que, uma vez incorporadas à vida social, passam a constituir a própria realidade. Ao longo do tempo, a refl exão política tem sido produtora de formas de comportamento e organização políticas, uma vez que muitos de seus pressupostos e conceitos têm sido incorporados ao mundo das instituições, moldando nossa representação comum e ordinária do mundo. O desenvolvimento da ciência política como uma ciência empírica jamais pôde dispensar a atividade de refl exão teórica porque muitos dos objetos que a ciência tem investigado constituem, de fato, o resultado de um processo de sedimentação daquilo que a teoria, enquanto poíesis, contribuiu para criar. Por conseguinte, podemos afi rmar que uma ciência política emancipada da fi losofi a política é, a rigor, impossível, já que a fi losofi a consiste numa espécie de fonte da qual emanam as dimensões da realidade consideradas relevantes, isto é, aquelas que importam à análise científi ca. Não é por outra razão que continuamos lidan- Capítulo 1 — A contribuição do pensamento antigo e medieval... 3 Marcelo da Costa Maciel do com os chamados “clássicos” do pensamento político, aqueles fabuladores que nos ensinaram a fazer determinadas perguntas sobre o mundo político. Fo- ram eles os criadores de uma tradição que não é inerte e que não nos interessa, hoje, apenas como objeto de uma história das idéias políticas, mas como campo dinâmico e polêmico de formulação e compreensão da realidade. Em um livro que pretende discutir os fundamentos da teoria política, parece-nos bastante razoável que o primeiro capítulo se dedique à gênese do pensamento político na Grécia antiga. A tradição geralmente localiza o nasci- mento da disciplina na época clássica, sendo Platão e Aristóteles aqueles que estabeleceram seus primeiros alicerces. Não há dúvidas quanto a isso. Porém, consideramos relevante sublinhar o impacto que, por um lado, a atividade fi lo- sófi ca de Sócrates e, por outro, o desafi o da Sofística tiveram sobre aqueles que pretenderam fazer da política uma ciência. Além disso, vale a pena destacar, já no contexto do helenismo, uma importante contribuição para a consolidação da política como campo de refl exão. Trata-se do pensamento de Políbio (séc. II a.C.), com sua teoria cíclica das formas de governo e sua defesa do governo misto. Este capítulo pretende também contribuir para o preenchimento de uma injustifi cável lacuna na história do pensamento político, qual seja, a refl exão so- bre a importância da fi losofi a medieval para a formação do pensamento político moderno. O reconhecimento do caráter eminentemente cristão da fi losofi a me- dieval não deve levar a corroborar uma imagem distorcida e, hoje, já felizmente desacreditada de que a Idade Média tenha sido, do ponto de vista intelectual, uma era de trevas. Pelo contrário, o incontornável diálogo entre fi losofi a e teo- logia promovido pelo pensamento medieval produziu imensa variedade de teo rias sobre rigorosamente todos os campos da realidade, dentre eles a políti- ca. Não se pode interpretar o período medieval como uma espécie de intervalo que interrompe a tradição iniciada na Antigüidade pagã, sendo esta retomada apenas a partir de Maquiavel no contexto do Renascimento. Mostraremos o lu- gar de destaque que as questões relativas à política ocuparam nas refl exões de fi lósofos medievais: primeiro, aqueles que se tornaram, cada qual em seu tempo, os porta-vozes ofi ciais do pensamento cristão (Santo Agostinho e São Tomás de Aquino); em segundo lugar, um pensador cristão considerado heterodoxo (Guilherme de Ockham); e, fi nalmente, um autor que refutou abertamente a in- terferência da Igreja sobre o poder secular, realizando, ainda no século XIV, a defesa de um Estado laico e de um conceito essencialmente político de soberania (Marsílio de Pádua). De todos os pensadores que serão comentados neste capítulo inicial, pre- tende-se destacar suas mais relevantes contribuições para uma refl exão sobre a 4 Curso de Ciência Política ELSEVIER política. É claro que não estaremos tratando exclusivamente de teorias políticas, pelo menos no sentido moderno do termo, mas de debates fi losófi cos em que se colocaram temas e problemas que acompanham a história do pensamento político na modernidade, tais como a natureza da política, a conceituação do po- der político, as modalidades de organização e exercício desse poder, as relações entre o poder e a sociedade, entre o Estado e o indivíduo e entre a lei natural e a liberdade humana. Temos a certeza de que a apresentação do pensamento político sob uma perspectiva histórica que remonta às suas origens antigas e me- dievais colaborará para uma compreensão mais rica da nossa disciplina, pois foi através do diálogo com este lastro fi losófi co que ela se constituiu e consolidou como tradição intelectual. 1.2. A política no pensamento antigo 1.2.1. Sócrates e os sofistas Vários elementos de originalidade presentes no pensamento de Sócrates justifi cam o papel de divisor de águas que ele ocupa na história da fi losofi a anti- ga. Não é necessário aqui sublinhar a novidade do seu método de fi losofar, por ele concebido como uma busca obstinada e rigorosa pelo conceito, nem tampou- co a sua concepção da fi losofi a como um modo de vida, posição com a qual se manteve o tempo todo comprometido e que, ao fi nal, lhe custou a própria vida. O que mais nos interessa, no contexto de uma avaliação do legado do pensamen- to antigo para a constituição da Ciência Política, é a radical mudança que Sócra- tes imprime na direção da pesquisa fi losófi ca ao fazer do mundo humanamente construído (o mundo do ethos) objeto de uma discussão racional. Sem dúvida, a atividade fi losófi ca de Sócrates, dedicada à incessante in- vestigação racional dos fundamentos do agir humano (sobretudo do agir na ci- dade), abriu o caminho para o nascimento não só da Ética como da Filosofi a Política, pois a sua ciência, tal como ele próprio a defi niu diante de seus acusa- dores, consistia na ciência do homem. Sua preocupação nunca fora perscrutar os mistérios que residiam sob a terra e nos céus, mas levar o homem ao conheci- mento de si mesmo. Nesse sentido, Sócrates é precursor de Aristóteles, pois an- tes de este último estabelecer a Ética como a ciência da práxis humana, Sócrates formula uma concepção da alma (psiquê) como a sede da consciência moral de cada indivíduo e um conceito de virtude (aretê) como o resultado do autoconhe- cimento, donde resulta que o homem bom é aquele que mantém desperta sua autoconsciência e age de acordo com suas exigências. Porém, esse apelo socrático à autoconsciência trouxe o perigo da intro- dução da dúvida acerca dos fundamentos morais, legais e religiosos que orien- Capítulo 1 — A contribuição do pensamento antigo e medieval... 5 Marcelo da Costa Maciel tavam a conduta humana e sustentavam as instituições da cidade. Com Sócra- tes, nasce o projeto de uma ciência dos valores humanos na qual o sentido dos costumes e das leis era algo a ser examinado com os rigores da razão. Talvez a fi losofi a política de Platão tenha sido a primeira tentativa de execução de tal projeto, mas é Sócrates o iniciador do trabalho de escrutínio fi losófi co no campo moral e político. Tal procedimento, realizado com incomparável ironia e domínio da pala- vra, certamente abalou os preconceitos sociais da democracia ateniense, tendo sido considerado uma ameaça devido à infl uência que poderia exercer princi- palmente sobre os jovens. Por isso, Sócrates é acusado de corromper a juventude ateniense, bem como de descrer das divindades e de ensinar aquilo que não sa- bia. Das três acusações, talvez encontremos alguma pertinência na terceira, mas apenas no sentido de que, realmente, ele não possuía um conjunto de verdades a serem transmitidas, mas ensinava o exercício da dúvida como o único princípio para a obtenção da certeza. De fato, a contribuição de Sócrates para a formação do pensamento político não consiste em nenhuma doutrina ou mesmo esboço de doutrina sobre a pólis, mas na introdução de uma postura investigadora e eminentemente crítica acerca das instituições sociais. É imperioso salientar que, em Atenas do século V a.C., o plano dos valores morais e políticos não despertou o interesse apenas de Sócrates, mas também dos sábios nas artes da retórica e da oratória, os sofi stas. Não é difícil entender por que aqueles que dominavam o uso da palavra tenham dirigido a sua aten- ção para o mundo das convenções humanas. Na democracia ateniense, o poder político, absolutamente secularizado, era exercido através de um processo de discussão entre os cidadãos no qual a argumentação racional era critério funda- mental para a apresentação e avaliação das propostas relativas ao bem da cida- de. O discurso argumentativo tornou-se, então, instrumento efi caz no processo decisório e os que podiam pagar pelas valiosas lições dos mestres da eloqüência, tornando-se exímios oradores, viam bastante ampliadas as suas possibilidades de persuadir a assembléia (ecclesia), infl uenciando sua decisão. Foi grande a importância do movimento sofístico para o estabelecimento do mundo político como objeto de refl exão metódica. Desvinculando o domínio do ethos do domínio da physis, os sofi stas puderam fundamentar o conhecimento das coisas humanas na linguagem. Esta, porém, é, de certa forma, dessacraliza- da, posto que as palavras não são mais vistas como a expressão das coisas em si mesmas, mas como nada mais que convenções humanas. Assim, surge um duplo humanismo: o homem (e o mundo por ele criado) torna-se o centro das 6 Curso de Ciência Política ELSEVIER preocupações dos sábios e o ponto de vista humano, o fundamento para a elabo- ração de um discurso racional sobre esse universo. O humanismo ontológico e epistemológico dos sofi stas foi responsável por uma concepção extremamente relativista dos valores éticos, políticos e re- ligiosos, que perdem o caráter absoluto e universal à medida que se acentua o seu caráter convencional e circunstancial. Tal relativismo, expresso de modo eloqüente no famoso fragmento de Protágoras de Abdera (O homem é a medida de todas as coisas), tem raízes no próprio contexto político da Atenas democrática do século V a.C., no qual a medida humana, de fato, havia adquirido singular importância, uma vez que os cidadãos faziam e alteravam as leis por meio de discussões públicas que confrontavam diferentes interesses e pontos de vista. Em resumo, podemos afi rmar que, assim como o pensamento socráti- co, a corrente sofística representou verdadeira revolução cultural, orientando os caminhos da refl exão fi losófi ca posterior. O interesse pelo homem em lugar da physis universal (invertendo a ordem de preocupações da geração fi losófi ca anterior), o questionamento radical e demolidor de preconceitos tradicionais e o hábil domínio do discurso argumentativo são, certamente, traços que aproxi- mam Sócrates e os sofi stas e que revelam por que o contexto intelectual e político de Atenas no século V a.C. foi responsável pela gênese do pensamento político ocidental. Não queremos com isso, todavia, sugerir uma total identifi cação entre o humanismo socrático e o sofístico, já que a pretensão de atingir a verdade e o compromisso de obediência aos deuses declarados pelo primeiro se afastam bastante da tendência ao ceticismo epistemológico e da indiferença religiosa presentes no segundo. 1.2.2. Platão O interesse de Platão pelos assuntos políticos está enraizado na sua pró- pria experiência de vida, particularmente na sua relação com Sócrates. Ter pre- senciado o processo de julgamento e condenação do mestre foi, com certeza, um fato que deixou repercussões profundas sobre seu projeto fi losófi co. Uma das mais importantes dessas repercussões é a centralidade assumida pela dimensão política em seu pensamento. Isto porque a condenação de Sócrates, aos olhos de Platão, revelava até que ponto podem chegar os males conseqüentes de uma ina- dequada organização do poder político; manifestava quão injusta pode ser uma cidade quando suas instituições jurídico-políticas estão apartadas do verdadeiro conhecimento; enfi m, era uma evidência concreta da necessidade urgente de se estabelecer uma relação entre fi losofi a e política por meio da qual o poder pu- desse ser visto como uma espécie de corolário do saber. Capítulo 1 — A contribuição do pensamento antigo e medieval... 7 Marcelo da Costa Maciel Por tudo isso, podemos dizer que é a partir de Platão que o mundo da pólis é assumido, defi nitivamente, como parte integrante da agenda fi losófi ca. Com relação a Platão, podemos ir mais longe, afi rmando ser a política o ponto culmi- nante e a síntese de todos os seus esforços fi losófi cos. Se, como vimos na seção anterior, Sócrates e os sofi stas foram responsáveis pela eleição do plano das con- venções humanas como campo de refl exão, é Platão o primeiro grande fi lósofo a elaborar, de modo sistemático, uma fi losofi a política. Nela, Platão não apenas descreve e avalia os modos de organização política então existentes, mas, acima de tudo, constrói, à luz da razão, um projeto político. Tal projeto, contudo, não é (nem jamais poderia ser) exclusivamente político, mas sim político-pedagógico, já que depende de um adequado aprendizado e visa, em última instância, a con- dução dos homens à Verdade e ao Bem. A refl exão política de Platão (como, de resto, todo o seu sistema fi losófi co) tem como base a sua teoria do conhecimento, exposta de modo alegórico no famoso mito da caverna. É desnecessário reproduzirmos aqui o relato em que Platão descreve a busca do homem pela Verdade, a qual culmina com a aquisi- ção da Idéia do Bem. É preciso apenas ressaltar que o conhecimento verdadeiro (episteme) só é atingido mediante esforço e deliberada atitude de estranhamento com relação a tudo o que se assenta na opinião comum (doxa). Trata-se, de fato, de um processo de conversão do olhar para o mundo, que passa a ser encara- do como um universo de aparências encobrindo a verdadeira realidade, que se situa no plano inteligível. O mais importante para o nosso propósito, que é demonstrar a contribuição de Platão para a história do pensamento político, é sublinhar que, para ele, a Idéia do Bem (simbolizada na alegoria pela fi gura do sol) consiste no ápice do conhecimento e aquele que, ao fi nal de um longo e árduo processo de ascensão ao mundo real, consegue contemplá-la está apto a conduzir os outros homens no caminho da Verdade e a organizar a cidade segundo leis e instituições essencialmente boas e justas. Assim, a política passa a ser vista, ela própria, como um conhecimento inserido em um plano maior que exige a contemplação da verdadeira essência do Bem, devendo o poder ser exercido como missão decorrente da aquisição da sabedoria e não por ambição ou desejo do poder pelo próprio poder. Com base nesse ideal, Platão realiza a crítica de diversos sistemas políti- cos historicamente existentes, inserindo-os em uma visão cíclica marcada por uma inexorável tendência à corrupção. Essa tendência à corrupção manifesta-se inevitavelmente porque, aos olhos de Platão, todos os modos de exercício do poder, se desvencilhados do conhecimento que conduz ao Bem, são imperfeitos e fadados a degenerar. Além do saber, não há outro fundamento para o poder 8 Curso de Ciência Política ELSEVIER político capaz de fazê-lo escapar ao processo de geração e morte que caracteriza tudo o que é humano. Isto porque, para Platão, os governos refl etem as carac- terísticas dos homens que os conduzem e somente a contemplação do mundo inteligível permite ao homem transcender o domínio do perecível e elevar-se, pelo pensamento, ao domínio da verdadeira realidade, que é eterna e perfeita. Donde se conclui que apenas uma aristocracia intelectual, feita de homens que se tornaram perfeitos à medida que se tornaram sábios, pode assegurar um go- verno estável e essencialmente justo, já que a justiça é uma virtude e, como tal, conseqüência do Bem, que nada mais é que a outra face da Verdade. A teoria cíclica das formas de governo, exposta por Platão no livro VIII do diálogo A República, é uma das primeiras tentativas de análise sistemática dos modos de organização e exercício do poder político na história do pensamento ocidental. Platão começa defi nindo a timocracia (ou timarquia) como o governo caracterizado pela ambição de glórias e honras militares. A cidade de Esparta, na qual o poder estava nas mãos de uma aristocracia guerreira, é um exemplo empírico dessa forma de governo. Nela acentua-se o caráter militar do Estado e ignora-se a necessidade de que ele tenha um fundamento fi losófi co. A tendência à corrupção é inevitável, porque a glória militar é alcançada por meio de vitórias e conquistas e estas propiciam a acumulação de riquezas. A elite no governo torna-se também uma classe endinheirada, que faz uso do poder para aumentar sua riqueza. Assim, é de esperar uma alteração no caráter original da timocracia e sua transição para a forma de governo conhecida como oligarquia. Na oligarquia o poder é exercido pelos ricos e para os ricos. Esse governo funda-se na desigualdade econômica e acirra tal desigualdade uma vez que as leis visam, em última instância, atender aos interesses da minoria rica. A massa dos pobres, impossibilitada de interferir sobre o governo, é explorada dentro da legalidade instituída pelos detentores do poder. Trata-se também de uma forma imperfeita ou corrompida de governo, pois, segundo Platão, à medida que a riqueza se concentra, decresce a virtude. A camada governante, interessa- da apenas em preservar seus privilégios econômicos, negligencia o saber, único fundamento seguro para o exercício do poder político. A oligarquia está fadada à decadência porque engendra as condições para uma rebelião dos pobres explorados contra os ricos no poder. Os primeiros to- mam consciência de que são maioria e que podem derrubar a minoria que os oprime. Esta conturbação social faz cair a oligarquia e propicia o surgimento de outro regime, qual seja, a democracia. De acordo com Platão, a origem mais remo- ta da democracia seria a revolta contra o governo oligárquico, a qual conduziria à tomada do poder das mãos de uma minoria e sua transferência para um grande Capítulo 1 — A contribuição do pensamento antigo e medieval... 9 Marcelo da Costa Maciel número de indivíduos até então excluídos dele. Uma vez derrubada a oligarquia, instaura-se um sistema no qual a maioria dos homens tem o direito de partici- par das tomadas de decisão. Convertem-se eles de meros governados, a quem cabe simplesmente obedecer, à condição de cidadãos, isto é, partícipes da arena política. O governo democrático, do qual a pólis ateniense fornece o melhor exem- plo, também recebeu a crítica de Platão, que o insere no ciclo de corrupção que abarca todos os governos não fundados sobre o conhecimento da Verdade. A democracia orienta-se pela vontade da maioria dos cidadãos, a qual não necessa- riamente será a mais justa e adequada. A participação de muitos na elaboração das leis não é garantia de sua perfeição, já que o pré-requisito para tanto seria a contemplação da Idéia do Bem, o que exige longo processo de busca e aprendi- zado. A democracia institucionaliza e legitima o erro coletivo, uma vez que uma multidão ignara tem o poder de decidir. Para Platão, o resultado do processo legal encaminhado contra Sócrates tornara patente o caráter imperfeito da de- mocracia. Além disso, Platão traz à tona certas distorções a que a forma democráti- ca de governo está sujeita. A igualdade dos cidadãos na arena política é mera- mente formal se, entre eles, as desigualdades econômicas propiciam um acesso diferenciado à educação, sobretudo no que tange ao conhecimento das técnicas do discurso. Platão tem em mira o privilégio desfrutado pelos indivíduos de classes abastadas, que podem pagar caro pelas aulas de retórica e oratória mi- nistradas pelos sofi stas (não por outra razão considerados por ele “mercadores do saber”), tendo, assim, maiores oportunidades de, nos debates realizados nas assembléias, fazer seus interesses particulares parecerem interesses gerais. Não haveria, portanto, garantia de que as decisões tomadas pelo processo democrá- tico seriam, de fato, as melhores para a cidade, e não apenas para aqueles que sabiam manipular a assembléia por meio de um discurso persuasivo, porém não comprometido com a Verdade. Platão ressalta ainda os efeitos perniciosos da liberdade instaurada e fo- mentada pela democracia. O gosto pela liberdade, se não acompanhado do senso de moderação que só a sabedoria pode proporcionar, tende a se tornar radical e a pôr em xeque toda e qualquer relação de obediência, como a do fi lho para com o pai, a do jovem para com o mais velho e a do aluno para com o mestre. A própria obediência à lei passa a ser vista como uma restrição à liberdade, havendo, por isso, o risco de desordem social. Platão, no livro VIII de A Repú- blica, referindo-se ao governo democrático, alerta para o fato de que da maior liberdade é que surge a maior servidão. Também na democracia, o poder político, 10 Curso de Ciência Política ELSEVIER por não estar baseado no fundamento correto, está destinado a corromper-se e a engendrar uma outra forma imperfeita de governo, sendo esta a pior de todas, qual seja, a tirania. Segundo Platão, a origem da tirania é a desordem resultante do regime democrático. A aversão a toda forma de obediência e hierarquia levaria ao des- prezo pela lei e ao enfraquecimento do governo. Tal situação tenderia a se agra- var, dando lugar a uma completa desordem social ou anarquia. Nesse contexto, a tomada do poder por uma minoria fortemente interessada nele para a defesa de seus interesses é uma possibilidade sempre presente. Por isso, é natural que surja a fi gura do demagogo, aquele que pretende restabelecer a ordem, apresen- tando-se como protetor do povo contra a ameaça de instauração de uma oligar- quia. Ele recebe a adesão da massa e a conduz, porque é visto por ela como o seu defensor. Assim, os indivíduos atendem às suas exigências de recolher impostos e formar exércitos. Com isso, esse líder se fortalece cada vez mais, passando a explorar economicamente o povo e a eliminar aqueles que poderiam oferecer- lhe resistência. Quando o povo percebe o tipo de domínio ao qual se encontra submetido e se rebela, conhece a verdadeira face do demagogo, que é a de um tirano. Este oprime abertamente o povo, fazendo de todos escravos. Com a descrição da origem e da natureza da tirania, Platão conclui a sua exposição sobre as formas de governo, que aparecem dispostas em uma suces- são marcada pela inevitável tendência à corrupção. É importante salientar que os governos degeneram porque são imperfeitos desde o seu fundamento. Só o governo perfeito não estaria sujeito à corrupção, pois seu alicerce é seguro. Tal alicerce é o saber. Porém, não a ilusão de saber fornecida pela opinião vulgar, sempre limitada às aparências e distante das essências. O poder político cumpre a tarefa que lhe compete, que é gerar o bem da cidade, quando exercido por aqueles que conhecem a natureza mesma do bem, pois só assim tal poder não se perverteria em mero instrumento de opressão ou de conquista de glória e riqueza. 1.2.3. Aristóteles É com Aristóteles que o empreendimento fi losófi co assume o caráter de um projeto de sistematização de todos os campos do saber. Por isso, quase todas as disciplinas científi cas modernas consideram-no o seu precursor. Sem dúvida, ele também exerce esse papel com relação à Ciência Política. Apesar do pionei- rismo de Sócrates e dos sofi stas, ao introduzirem as questões éticas e políticas no debate fi losófi co, e da importância de Platão, ao mostrar que o saber deve conduzir o poder e que a perfeita organização da cidade é uma conseqüência

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