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Brasil do boi e do couro PDF

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COLEÇÃO Homens e JOSÉ ALÍPIO GOULART L0000062852 j r 7 f 0 Conselho de Estado B R A S I L DO BOI E DO COURO de João Camillo de O iiveira T orres Não nos surpreendeu o êxito que corôou o primeiro volume dêste excelente estudo de José Alipio Goulart, versando sôbre o boi; e “Fazia falta, em nossa Bibliografia não nos surpreenderá, por certo, que o mesmo ocorra com este, dedicado ao couro, em decor­ de História Política, uma monografia rência não só da perfeita homogeneidade da obra, como pelas revelações que nela se encon­ dedicada ao Conselho de Estado que tram. â Arthur Cezar Ferreira Reis, histo­ tivemos no Império, no consenso geral riador do mais alto quilate quem, sôbre o volume anterior do presente trabalho, expressa- um dos pontos mais altos de nossa se por telegrama, ao autor, dizendo: “Exce­ lente, admirável contribuição conhecimento organização monárquica. Depois do pas: ' do ciclo económico, você está desvendando fundamentado elogio que lhe fêz Joa­ mar. magnífica.” quim Nabuco, tornava-se necessária il do Boi e do Couro, pelo que apre- sent . autenticidade como resultado de pro­ uma exposição suscinta sôbre suas ori­ fundas q demoradas pesquisas e, ainda, pela rica e apropriada documentação que baseia e gens e funções, de 1823 a 1889. assedimenta a exposição, é ensaio de leitura Foi o que fêz o mais autorizado de Indispensável a um mais concreto e amplo conhecimento de dois fatores de indiscutível nossos historiadores de doutrina polí­ importância na vida económica e social do Brasil: o Boi e o Couro. Por isso, já disse tica, o autor de A Democracia Coroa­ Valdemar Cavalcanti que: “Numa boa bra­ da, Professor João Camillo de Oliveira siliana, livro que não pode faltar, de modo nenhum, sob pena de isso constituir desfalque Torres. Seu ensaio sôbre O Conselho sensível, é o “Brasil do Boi e do Couro” de de Estado inscreve-se entre os melho­ José Alipio Goulart.” Já se havia dito. antes e repete-se agora, res serviços que vem documentada- até com maior ênfase, que a obra de José mente prestando ao esclarecimento de Alipio Goulart, pelo seu valôr no campo da brasiliana, é hoje um fatôr de enriqueci­ nossas instituições políticas. Além do mento da cultura nacional, máxime pelo ine- ' ditismo dos temas que o autor recolhe nos pleno domínio de seu conteúdo histó­ recônditos da história pátria para trazer à rico, não lhe faltam espírito crítico e tona. objetivo, de observador que, conhece­ Pelo que já foi dito a respeito do pri­ meiro volume deste precioso ensaio, Edições dor do passado, não perde ocasião GRD sente-se até mesmo orgulhosa em contar com José Alipio Goulart entre seus editados. para aprsentar os seus exemplos como Em carta ao autor, assim manifestou-se eventuais corretivos aos muitos erros o acadêmico Peregrino Júnior: “Li imediata­ mente, com proveito e gosto, o seu interes­ do oresente. santíssimo Brasil do Boi e do Couro. Leitura O Conselho de Estado constitui, fácil e sedutora, conduz o espírito do leitor por caminhos inesperados e instrutivos. Você assim, mais um valioso elo dessa fez um livro original e utilíssimo.” obra ciclópica que dedicadamente vem Nestor de Holand^f escreveu: “Livro dos mais importantes, entre os recentes lançamen­ erguendo o Professor João Camillo de tos editoriais, é, sem favor, Brasil do Boi e Oliveira Torres, em tômo da História do Couro; mais um primoroso estudo socio­ lógico de José Alipio Goulart.” das Idéias Políticas no Brasil." Antônio Olinto disse: “Com seu velho •• ■; f. conhecimento de pesquisador que não se detém nos assuntos — mas esgota-se para passar a Hélio Viana outra fase do terreno — Alipio Goulart esmiu­ ça o boi no Brasil.” (...) “Não conheço outro escritor que torne tão diréto e correntio um tema que levou trabalho muito e muito tempo para ser deslindado.” Êsse o diapasão das manifestações de UMA EDIÇÃO [ pessoas autorizadas sôbre o primeiro volume desta obra e seu autor. EDITOR. • • • ( £ C • « ” u- «■ *'-V-t. **- -V: LI mmmmàm JOSÉ ALIPIO GOULART OBRAS DE JOSÉ ALÍPIO GOULART Já publicadas: PESQUISAS DE PADRAO DE VIDA NO BRASIL — edição do Serviço de Informação Agrícola, do Ministério da Agricultura. FAVELAS DO DISTRITO FEDERAL — edição do Serviço de Informação Agrícola, do Ministério da Agricultura. B R A S I L MEIOS E INSTRUMENTOS DE TRANSPORTE NO INTERIOR DO BRASIL — edição do Serviço de Documentação do Mi­ nistério da Educação e Cultura. DO BO I E TRANSPORTES NOS ENGENHOS DE AÇOGAR — edição do Instituto do Açúcar e do Álcool. TROPAS E TROPEIROS NA FORMAÇÃO DO BRASIL — edição DO COURO da Editora Conquista. 0 CAVALO NA FORMAÇÃO DO BRASIL — edição da Editora Letras e Artes. BRASIL DO BOI E DO COURO (I) — edições GRD. ☆ No prelo: A ÉPOCA DO COURO — Subsídios para o 29 volume do presente 2.° Volume trabalho — Brasil do Boi e do Couro — edição do Serviço de Informação Agrícola, do Ministério da Agricultura. 0 COURO Em preparo: MASCATE, REGATÃO E COMETA, Três Tipos Humanos na For­ mação do Brasil. Desenho de capa: Percy Lau (extraído de publicação do IBGE) Edições G R D RIO DE JANEIRO — GB 1966 COLEÇÃO ENSAIOS BRASILEIROS — HOMENS E FATOS — O couro foi uma das primeiras matérias primas de que se valeu a criatura humana para cobrir sua nudez, agasalhan­ do-se; para telhar sua moradia, protegendo-se; para trans­ portar alimentos', prevenindo-se. VOLUMES PUBLICADOS O Autor I FEIJó, Um paulista velho — cle^Novelli Júnior II O CONSELHO DE ESTADO — João Camillo de Oliveira Torres III BRASIL DO BOI E DO COURO (I) — de José Alípio Goulart Ofertando: BRASIL DO BOI E DO COURO (II) — de José Alípio Goulart A meu neto Carlos Eduardo. IV MARINHA E SERTÃO — de Heitor Marçal A, PRÓXIMO VOLUME * 5/ V Homenagem: g i c r o ADVOGADO RUI BARBOSA — de Rubem Nogueira A mestre Capistrano de Abreu, verda­ deiro inspirador dêste livro. : íA/ ij6 <§■ A Glynne Rocha Júlio Maurício Ma nezes Elson Bahia de Almeida Nilo Lima Pedro Lima Eli Bahia de Almeida Humberto Brasileiro Bahia Ordener Cerqueira Edmar Pereira velhos companheiros dos meus verdes anos nas praias e quintais, ruas e praças, colégios e bordéis de Maceió. Reservados os direitos de tradução, reprodução e adaptação. Copyright by José Alípio Goulart. Direitos de publicação do presente volume para o Brasil, Portugal e Colónias, reservados por A.G.R. DóREA, rua Alcindo Guanabara, 25, conj. 404 __ Rio de Janeiro, GB. APRESENTAÇÃO Caro leitor. A intenção inicial era dizer tudo num volume só. Mas a coisa foi esticando... esticando... e teve que ser seccionada para que nenhuma das partes fôsse sacrifi­ cada, melhor diria, mais sacrificada. Êsse segundo volume, dedicado exclusivamente ao assunto couro, não passa de simples provocação; isso por que nada mais contém do que um apanhado de singelos informes, relacionados com aquela matéria prima, Sobra muita coisa a ser dita, que ficou sem registro nas pági­ nas que se seguem, umas por ignorância do autor, outras para não alongar em demasia o presente trabalho. Como a bibliografia nacional sôbre o couro, nos seus aspectos económicos e sociais, é paupérrima, não há de faltar quem se anime a dar continuidade à exploração de tão rico veio, ora iniciada, por certo com maiores raciona­ lidade, profundidade analítica e riqueza de detalhes. Não sei se estou sendo de certo modo leviano ao dizer que ignoro qualquer outro ensaio, a respeito do couro, com as feições do presente. Mas o fato é que ao longo da pesquisa, que por sinal foi trabalhosa e demo­ rada, deparei-me apenas com sugestões, páginas esparsas e de sabor literário, uma ou outra referência mais con­ creta em tôrno da importância económica e social do couro. Mas tudo muito difuso. Daí a idéia de elaborar o presente ensaio, numa tentativa de aglutinação da matéria, posto reconhecendo, antes que outro o faça, representar o mesmo uma selva de lacunas e imperfeições. Mas, de qualquer sorte, é um livro versando o couro, de cuja leitura os menos informados na matéria, que creio não serem poucos, poderão auferir alguns conhecimentos. E como é sempre 10 JOSÉ ALÍPIO GOULART aos desinformados que dirijo os meus escritos, porque aos outros nada tenho que dizer, então convenço-me de que não esbanjei essa coisa tão preciosa na vida humct- na: tempo. Brasil do Boi e do Couro, considerada a importância ESCORÇO HISTÓRICO DO COURO do tema, foi uma aventura, mais que isso, uma audácia, tendo presente as limitações, visíveis e conhecidas, de quem o elaborou. Mas, — por que não dizer — o que já foi dito acêrca do primeiro volume, não só confortou A utilização do couro e da pele de animais na moradia, na indumentária, nos transportes e, ainda, num variegado como tranquilizou o autor. mundo de serventias outras, é prática adotada pela criatura Como não sei que diabo de inibição é essa que me humana desde épocas remotíssimas e que vem resistindo, ao assalta, quando tenho de oferecer explicações sôbre um longo do tempo, até os dias atuais. Daí se infere a impor­ livro que escrevi, nada mais resta do que desculpar-me tância daquelas matérias primas, em especial no que se rela­ ciona, latu sensu, com aspectos de conforto e bem-estar do perante o amigo que corre os olhos por estas mal traça­ Homem; pois não obstante o surgimento de tôda uma gama das linhas. de sucedâneos, lançados no mercado de consumo pelo verti­ E fico por aqui. ginoso progresso dos sucessos tecnológicos, couro e pele são cada vez mais requisitados. m O aperfeiçoamento das técnicas industriais de beneficia- menta, de comum com os resultados das pesquisas no campo das -exigências sociais, acabaram por transmitir ao couro e às peles foros de materiais nobres, transformando-os não só em artigos de utilidade como de futilidade, ora no atendi­ mento de reais necessidades ora no complemento de meras atitudes ditadas pela vaidade. E isso não é de hoje: é mi­ lenar. Não nos ocorreu, em absoluto, fazer maiores indagações relacionadas com a história da utilização do couro; apenas deixamos cair da pena ligeiros respingos sôbre o seu uso, desde priscas eras, informações que saltitavam na mente, deixadas por leituras informais, sem a preocupação da pes­ quisa histórico-científica. São dados. Apenas dados que, não obstante, espelham a antes assinalada vetusta utilização do material de que nos ocupamos. Domesticado o boi, em época muito recuada da era cristã, partiu o ser humano para a conquista de outros membros da família zoológica. Os habitantes dos altiplanos do Tibét submetem o yak, metem-lhe carga ao lombo, escancham-se no seu dorso, comem-lhe a carne sangrenta e fresca e ser­ vem-se, a valer, do seu precioso couro. Revelam documentos coevos, retirados das entranhas da terra e trazidos à luz por incansáveis, persistentes e cora­ josos arqueólogos, que há dois mil anos antes de Cristo, no velho e misterioso Oriente, em tôda a vasta área do “Fértil Crescente”, banhada pelas águas do Nilo, do Tibre e do Eu- frates, tinha o couro múltipla utilização. 12 JOSÉ ALÍPIO GOULART BRASIL DO BOI E DO COURO 13 A produção de tal matéria prima e a sua introdução no > A tenaz procura de restos das civilizações há muito desa­ mercado de trocas, são fatos que datam de centenares e parecidas, vem revelando ao mundo hodierno não só o instru­ centenares de anos. Haja visto que cinco séculos antes de mental como os ingredientes e as técnicas de que se valiam Abraão, no comércio de importação e exportação que florescia os curtidores, há milénios, para trabalhar os couros e as nas costas de Canaã, a terra do Nilo já permutava ouro e peles. Munidos de peças talhadas em granito, raspavam a especiarias da Núbia, cobre e turquesas das minas do Sinai, matéria prima, tornando-a flexível; e com azeite e graxas linho e marfim por prata de Tauro, artefatos de couro de conseguiam fazê-la resistente à umidade e à ação do tempo. Biblos e vasos vidrados de Creta. Depois que os gregos Aristófanes não regateia críticas ao guerreiro e demagogo dominaram os fenícios no comércio externo, as fábricas de Cleon, morto na batalha de Anfilópolis no ano 422 a.C. e que, couro de Atenas destinavam seus produtos à exportação. na vida civil, era um simples curtidor de peles. O imortal Tão logo Ptolomeu Epifânio começou a defender o papiros Homero, no poema Odisséia, elogia Tchynos como o mais surgem do couro, em Pérgamo — como ensina Plínio, o hábil curtidor de Nistichos. E é o mesmo poeta quem, na Antigo — as primeiras folhas de pergaminho, nas quais Ilíada, canta: lançam os hebreus seus preciosos conhecimentos do Comércio e suas extraordinárias conquistas nas Ciências e nas Artes. “Tal como quando um Senhor aos seus homens ordena que Imensurável riqueza cultural do que, em parte, beneficiou-se [espicham] a posteridade. Peles de cabra, de jumento, de bode, de Um belo couro de boi, onde muita gordura preserva. bezerro, de antílope, serviam para o preparo do pergaminho Graças ao esforço de tantos, que a pele bem tensa cujo aperfeiçoamento do processo de fabricação deu-se no Alfim chegou... “(C.XVIII, v. 389 e seg.) segundo século depois de Cristo, na própria Pérgamo de onde recolheu o nome. (1) Desde a mais remota antiguidade, o couro é material muito usado não só na estrutura das moradias como na fatura Um mergulho perquiridor na escuridão da pré-história, de móveis e utensílios domésticos. Quando Moisés, ilumi­ talvez informasse, com maior precisão, desde quando o homem nado de fé e bemaventurança, desceu as encostas do Sinai, passou a utilizar o couro como indumentária; pode-se afirmar, anunciando a crença em um só Deus e, com isso, fundando contudo, ter sido uma das primeiras matérias-primas de que o monoteísmo, os primeiros a ouvir a nova mensagem foram se valeu a criatura humana para abrigar o próprio corpo. “nómades que levantavam suas tendas de pele de cabra na Com peças de couro cobria sua nudez o caçador neolítico. estepe.” (2) Os índios Sioux, da Norte América, foram en­ Decorre mais de um milénio desde quando os Sidonianos, contrar no couro do bisonte a matéria ideal para a construção sob Neuramus, transformavam em vestes os couros dos ani­ de suas moradias. Aqui em nossa casa e quase diríamos em mais que abatiam para matar a fome. Os quirquizes do nossos dias, Manoel Gomes Barbosa, ao chegar à Colónia do Turquestão protegiam-se, no inverno, com um gorro de pele, Sacramento, em 1716, na qualidade de governador da mesma, calças de couro e compridas botas do mesmo material. Ainda comprou duas barracas de couro de boi, alojando-se em uma hoje, os siberianos e esquimós metem-se em roupas com­ e depositando na outra a bagagem que trazia. É um exemplo, pletas de couro, no verão e de peles, no inverno. apenas. No Alto Nilo, em épocas perdidas na lonjura dos tempos, Em adornos vistosos, nos templos monumentais e em as vaidosas mulheres shiluk traziam, como indumentária palácios suntuários, desde os faraós egípicios às deificadas única, pequeno e oscilante avental de couro prêso aos quadris. dinastias europeias, o couro foi material de muito sucesso, E os guerreiros africanos matebeles exibiam, em volta dos a ponto de transferir à respectiva indústria extraordinário rins, um cinto de onde pendiam vistosas peles de animais. incremento, indústria que, sem nenhum favor, é a mais antiga de tôdas. É o pacífico e tranquilo pastor herero quem sacode sôbre o corpo o karof, manto de pele que o defende das bruscas Nos meios e instrumentos de transporte, a presença do variações de temperatura comuns em seu habitat. E o tarqui couro vem de muitas centúrias. Em 1890, o inglês Percy (Tuareg), cavaleiro velado do deserto, assim como protege Newberry descobriu, pintadas nas paredes de um velho tem­ o rosto e os olhos da fina poeira que flutua no ar, usando plo de alguns milénios anteriores a Cristo, figuras de semitas o litham, defende o corpo das mutações climáticas com a que transportavam suas rações de água em recipientes de sua clâmide aveludada feita de pele de carneiro. A mastruca peles de animais artisticamente costuradas. Cogita-se fôssem sarda, o capuz, o albornoz. De couro de camelo, fino como filhos da tribo de Davi. Antes dêsses, aquêles nómades que tecido, era que as tribos nómades dos desertos arábicos fabri­ eram conhecidos no Egito como os “habitantes da areia”, cavam suas fartas indumentárias. “vagabundos da areia” ou, ainda, “atravessadores do deserto”, 14 JOSÉ ALIPIO GOULART BRASIL DO BOI E DO COURO 15 transportavam os líquidos em recipientes de peles. Era a sobretudo, fazia dêle uso abundante, tanto para as armas "água de reserva”. Os recipientes vieram a ser chamados defensivas — casacos, escudos e couraças — como para a no Ocidente, de borracha, sóbre o quê falar-se-á oportuna­ vestimenta dos Soldados.” (5) mente. Antiga é, igualmente, a fiscalização exercida sôbre a indústria do couro. Em 805, Felipe I expede o mais velho “Em navios de pele de carneiro atravessei o Eufrates regimento conhecido, daquela indústria; tal regimento vem a em sua enchente...”, lê-se em inscrições cuneiformes atri­ ser revisado em 1085. Felipe VI de Valois, em 1345, torna-o buídas ao rei assírio Salmanasar III; e seus sapadores, no mais rigoroso. E nos reinados de Henrique IV e dos Luizes ano 835 a.C., construíram pontes de peles de animais infladas XIII, XIV, XV e XVI, foram baixados vários éditos, todos de ar. O estanho que os bretões traziam da Cornualha objetivando o controle do fabrico de couros, evidente prova britânica e depositavam na lha de Ictis (atual St. Michaeli), da importância do produto. era depois transportado para o continente em barcos reves­ É de Viardot o informe de que foram árabes-mouros os tidos de couro. Com tais barcos impressionar-se-ia César tres transportadores, para a Península Ibérica, das indústrias do séculos depois. (3) papel e do couro, sendo que a êste coloriam e curtiam artís­ O couro tinha, ainda, uma infinidade de serventias, algu­ tica e magistralmente. Muito conhecido é o couro cordovão mas até curiosas, como por exemplo a sua utilização como originário de Cordova, pelica tinta de preto que se espalhou esquife desde priscas eras; pois é da época que medeou entre pela Europa na feitura de sapatos. 1971 a 1928 a.C., o documento em que o faraó Sisóstris I Registraram cronistas chineses que, por volta de 1770 a C pede a Sinube que regresse à sua terra natal, para não acon­ Tichin Fung, o fundador da dinastia Chang, descobriu o tecer “que morras em terras estrangeiras e sejas sepultado método de tanagem das peles, o que representou enorme pelos asiáticos envolto numa pele de carneiro.” (4) No avanço no então incipiente processo de curtimento. Mas Brasil, — ver-se-á mais tarde — também se fêz do couro foram curtidores egípcios, juntamente com babilónios os pri­ semelhante uso. mei ros_ a recorrer ao alúmen e aos taninos vegetais para obtenção de um_ couro durável e resistente à putrefação. Se o couro já era, desde perdidos tempos, material de Apesar de tão importantes descobertas, via-se a indústria suma importância para as necessidades e também para as do couro a_ braços com a lentidão do processo de curtimento vaidades humanas, mais cresceu de valôr quando, atirando-se duraçao, até fins do século XIX, consumia mêses. Em aos azares das aventuras aquáticas, ao sabor dos ventos e 1730, mediante o emprêgo de soluções de extratos tânicos à mercê das procelas, hostes guerreiras e grupos de merca­ avançou-se regularmente na técnica de preparação dos couros dores, de variadas nacionalidades, lançaram mão daquêle ma­ muito embora, até 1870, o fabrico de tais drogas não tivesse terial içando-o aos mastros de suas embarcações: era o couro ainda caráter industrial. Em meio a décima nôna centúria enfunado ao impulso dos ventos, transformado em velas, persistiam em experiências vários sistemas objetivando ace­ ajudando o esforço dos infelizes remeiros escravos das antigas lerar o processo de tratamento dos couros, posto sem maiores náus e galeras de comércio e de guerra. resultados. Em terra firme, do mesmo passo, conferiram especial Quando maior era o empenho para a solução de tais pro­ relêvo à utilização do couro e das peles as tremendas razzias blemas, aconteceu aos irmãos Durio descobrirem o método das tribos bárbaras, os terríveis entrechoques de legiões de pelo qual as operações de curtimento, propriamente ditas guerreiros, nas arremetidas invasoras e nas memoráveis bata- foram reduzidas para um ou dois dias. Apesar do assombro lhas de conquista, de cujos relatos acham-se pejadas as pá­ causado pelo novo processo e seus positivos efeitos, os eternos ginas da História Universal. Foi quando o guerreiro, aquatico conservadores, descrentes do progresso, ainda exigiram longo ou terrestre, descobriu a sua importância nas exigências tempo para se convencerem da eficácia da descoberta. A bélicas que o couro, há tanto tempo usado, conseguiu impôr-se partir de então, a indústria do couro abandonou as pequenas fábricas para instalar-se em grande empresa. como artigo de grande valia. O banho de sangue humano celebrizou-o. E tem sido sempre assim, desgraçadamente Passada a fase dos processos empíricos, sobreveio a das investigações científicas, persistentes e sistemáticas, com a assim, entre os homens... elaboração de novas teorias e o aprimoramento de métodos A Guerra Mundial de 1914-1918, não só consagrou-o como proporcionando, com isso, excelência ao produto. Muito con­ artigo militar como emprestou inusitado desenvolvimento a correram para essa nova fase os progressos da Química Orgâ­ sua indústria de transformação. Foi Pio XII quem disse, nica que, no campo específico do tratamento dos couros, se dirigindo-se aos participantes do V Congresso Internacional traduziram nos profundos estudos do inglês Procter. Grupos dos Químicos do Couro, em setembro de 1957, na Cidade de investigadores posteriormente surgidos, com seus labora­ Eterna e entre os pacíficos muros do Vaticano: O Exercito, tórios especializados, deram continuidade à magnífica obra. 16 JOSÉ ALIPIO GOULART Pobre de informes é a história do couro, porque o ater-se com o seu preparo era trabalho considerado vil, tarefa de humildes escravos, profissão miserável. Como tal, nunca mereceu maiores registros nos arquivos dos fatos da Antigui­ dade. Essa a razão pela qual Plínio e outros foram tão mes­ < quinhos de dados e de informes sôbre as atividades dos antigos TALVEZ UMA GEOGRAFIA DO COURO curtidores. Graças, porém, aos raros testemunhos literários, já agora complementados pelas descobertas e reconstituições arqueológicas, vão sendo desvendados, esclarecidos e explica­ dos os vários usos que se faziam dos couros e das peles, bem Foi Roberto Simonsen quem assinalou que na era colonial, assim os processos de tratamento que lhes dispensavam. “em que o animal era o principal veículo de transporte, em Longe não está, portanto, o dia em que alguém dispor-se-á que a vida urbana era diminuta, fazia a população rural a reunir material suficiente para escrever a história da ser­ grande consumo do artigo, em múltiplas utilidades/ Não se ventia do couro. E que se apressem, pois o tema seduz. conheciam então tecidos impermeáveis, papelões e outros pro­ dutos que eram supridos pelo couro.” (1) Partindo da informação do saudoso economista ter-se-ía NOTAS E BIBLIOGRAFIA que admitir, como dedução natural, que uma geografia do couro no Brasil abrangeria tôda a área rural do território brasileiro ao tempo da colonia. (1) Ivan Lissner, Assim Viviam Nossos Antepassados, I, pg. 145, Belo Horizonte, 1961. Mas o que nos leva a classificar como áreas integrantes (2) Werner Keller, E a Bíblia tinha razão..., 7*, pg. 124, de uma geografia do couro, em nosso país, são aquelas em ^ p .# que o referido material revestiu-se de importância capital São Paulo, 1962. para as populações nelas habitadas, quer no campo económico (3) Ernst Samhaber, História das Viagens de Descobertas. quer no âmbito social; e como tal, é de convir que a seleção pg. 29, São Paulo, 1965. recairá em apenas duas, que são: o sertão nordestino e o 0 (4) Werner Keller, op. cit., pg. 69. extremo-sul gadeiro, quando em ambas as áreas a exploração (5) Revista Cortume, ano II, n9 15, Rio de Janeiro, 1958. económica repousava unicamente no criatório, e era do gado que provinham as ofertas máximas para o atendimento das exigências decorrentes da vivência humana. Ao estudar-se o couro nas regiões acima selecionadas, por serem as que apresentam maiores índices de utilização daquela matéria prima, necessária se torna a assinalação, desde logo, das seguintes particularidades definidoras de cada uma delas: no sertão nordestino a importância do couro se fez presente, com maior ênfase, na sua utilização social; enquanto que no extremo-sul o seu valôr económico foi o que praveleceu, posto se o empregasse e com fartura, em finalidades sociais. Até agora, na verdade, o emprêgo do couro na satisfação de exigências de caráter social é o que tem prendido a atenção daquêles que se detiveram no seu estudo; pois é em sociólogos, folcloristas e até em ficcionistas que se vai colher informes mais substanciais relacionados com a matéria. A sua expressão económica tem sido relegada a plano secun­ dário, isso porque, a rigôr, o couro nunca foi artigo que pesasse no balanço comercial do Brasil colonia, época em que o interêsse da metrópole convergiu para o açúcar, o ouro e os diamantes, os demais produtos apenas subsidiários. E o couro, na região em que sua expressão económica foi mais intensa, constituiu-se por longo tempo em artigo de comércio ilícito, de contrabando, furtando-se-o, dessarte, ao cômputo 2 18 JOSÉ ALÍPIO GOULART BRASIL DO BOI E DO COURO 19 oficial nas estatísticas de exportação, o que prejudicou análise em que pese a veracidade dos informes de Costa Pereira e mais aprofundada da sua importância em termos económicos. de Wilson Lins é indubitável que, mesmo no sertão nordes­ Mesmo assim, ao tratar-se especialmente do contrabando do tino, a importância do emprêgo social do couro, como se o couro no extremo-sul, como se faz adiante, ver-se-á que apesar compreende aqui, tem definhado a olhos vistos, sufocado pela de tal marginalidade comercial o seu valôr económico, naquela presença do caminhão e até mesmo do avião no mister. de região, foi notável. transportar substitutivos para aquela matéria prima. . Não será demais repetir-se aqui, para ficar bem claro, Veja-se que a sugestão de mestre Capistrano de Abreu — que no nordeste também se verificou relativo comércio do que parece ter influenciado os criadores da “Civilização do couro; e que a utilização social daquêle artigo, no extremo-sul, Couro” — foi vasada nos seguintes termos: “Pode-se apanhar não ficou muito aquém da que se fazia naquela região. Por­ muitos fatos da vida daqueles sertanejos dizendo que atraves­ tanto, os dois aspectos verificaram-se em ambas as regiões, saram a época do Couro.” Note-se o verbo “atravessar” no sendò que em cada uma delas um foi mais intenso e mais passado, coisa que existiu, que já passou ou que está prestes notado que o outro. Também é de registrar-se que o recurso a desaparecer, daí ter êle usado o termo época, no sentido ao couro verificou-se em outras regiões, como na do centro- de limitado posto de intensa duração. Wilson Lins evita o oeste e em certa área do extremo-norte, posto sem apresen­ vocábulo “Civilização”, preferindo dizer “idade”. tarem aquele poder de expressão económica ou social que É de não esquecer salientar-se, nesse passo, que aquela levasse a incluí-las em uma limitação da geografia do couro tão decantada “época do couro” não se restringiu apenas à em nosso país. zona pastoril nordestina, pois vai-se encontrá-la, quase com as De tanto se falar no emprego da matéria prima em tela mesmas características, no extremo-sul. Já Luís Carlos de pelo sertanejo nordestino, houve quem suscitasse a existência Moraes, em artigo sob o título “O Uso do Couro no Passado de uma Civilização do Couro no Brasil. E não estamos só ao Sul-riograndense”, assinalava que: “Capistrano de Abreu, no assim asseverar, pois C.J. da Costa Pereira, em monografia prefácio da “Nova Colónia”, intercala uma idade do couro no intitulada Artesanato e Arte Popular-Bahia, datada de 1957, evoluir do nosso povo.” E aduz Moraes: “Com efeito, espe­ inseriu o seguinte trecho: “... por influência de fatores eco­ cialmente em relação ao Rio Grande, êsse acerto é de todo lógicos, tem início determinado ciclo com base pastoril, a que verdadeiro. Nenhum material foi tão fartamente empregado, já classificaram de Civilização do Couro, por haver sido essa nos primórdios da nossa existência como o couro, para a matéria prima a responsável pela origem e existência de um satisfação das necessidades dos primitivos habitantes. Trata-se dos mais singulares e predominantes aspectos da cultura ma­ naturalmente de couro crú.” terial sertaneja que ainda hoje se verifica na integridade de Madaline Wallis Nichols, no seu magnífico ensaio sôbre suas características.” o gaúcho, fazendo um apanhado geral, posto suscinto, do Está claro, no trecho de Costa Pereira, ter a propalada emprêgo dó couro na extrema sulina, assevera que: “Cavalos Civilização do Couro sua base física no sertão boiadeiro do e vacas forneciam alimento, vestuário e abrigo. Até móveis Nordeste que, diz êle, “ainda hoje se verifica na integridade que os primitivos povoadores possuíam, também provinham de suas características.” E Wilson Lins, em recente e muito de uns ou de outros, isto é, dos cavalos e das vacas. Os boa explanação sôbre o panorama económico-social das popu­ utensílios com que o nosso colono trabalhava eram de couro — lações do Médio S. Francisco, arquiva o seguinte: o os selins e cabeçadas, as rédeas, tirantes e laços eram correias médio São Francisco vive ainda a idade do couro, com um trançadas. As bolas, a arma mais formidável, eram pedras atrazo de vários séculos em relação ao progresso universal cobertas de couro e ligadas entre si por correias de couro. dos povos. Quando tôda a humanidade já completou o seu Cordas e cabos eram de correias de couro; os alforges em ciclo evolutivo, passando a viver uma etapa de progresso que que os utensílios e as mercadorias eram transportados ou pode se classificar de “idade da onda” ou “éra atómica”, o conservados, eram de couro, e eram costurados com tiras j» vale do S. Francisco, uma das mais ricas e importantes zonas estreitas de couro, os cereais eram guardados em sacos de do continente, continua estacionada na idade do couro, ou couro pendentes de estacas e cobertos por um couro à guisa seja na mais recuada etapa de uma civilização pastoril.” (2) de abrigo. Botes ou balsas, eram feitos de couro. Os currais Convém esclarecer, porém, que o que se observou no eram comumente feitos de estacas limitadas com tran­ Brasil não foi, a rigôr, uma Civilização do Couro como querem ças...” (3) alguns; isso porque as “civilizações” propriamente ditas, para Depoimento valioso para o que se vem aqui expondo, é serem assim caracterizadas, não só demandam milénios para e do Mestre de Campo André Ribeiro Coutinho, na “Memória” o assedimento de seus padrões como firmam-se, ao longo do que elaborou, em 1740, sôbre os serviços por êle prestados tempo, pelo império da tradição, aspectos que sem dúvida quando governador do Rio Grande de São Pedro. Dizia êle: escapam àquilo que, em nosso país, talvez se possa classificar “Recolhi do campo 14151 vacas por várias ocasiões e preços com mais propriedade de ciclo ou de época do couro. Pois de 450 réis até 1200 por cabeça e importou a sua despêsa,

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