Roberto Esposito Bios BIOPOLÍTICA E FILOSOFIA . PREFÁCIO DE ALEXANDRE FRANCO DE sÁ BIBLIOTECA DE FILOSOFJA CONTEMPORÂNEA TÍTULO ORlGINAl. Hios. /Jiopolitica efilosofill Roberto Esposito © 2004 Ciulio Einaudi editare s.p.<I., TOlino TRADUÇÃO Bios M. Freitas da Costa DESIGN DE CAPA IHOPOLÍTICA E FILOSOFIA FBA I','c,rácio de Alexandre Franco de Sá DEPÓSITO LEGAL W 311442/10 Biblioteca Nacional de Ponugal-Catalogação na Publicação EsposrTO, RoberLO Bios: biopolítica e filosofia - (Biblioteca de filosofia comtemporânea) 1SBN 978-972-44-1609-0 CDU 321.01 PAGINAÇÃO, IMPRESSÃO E ACABAMENTO PAl'EL\IUNOE pal<l EDiÇÕES 70, LDA. Maio de 2010 Direitos reservados para Portugal por EDIÇÕES 70 EDiÇÕES 70, Lda. Rua Luciano Cordeiro, 123 - 1" Esq" ] 069-1 57 Lisboa / Portugal Tclefs.: 213190240 - Fax: 213190249 (..'-rnail: gCf<[email protected]. ESla obra está pro,cgida pt'la II-i. Não pode sei' reproduzida, no lodo ou em parle, qualqut'1 qut' () modo utilizado. incluindo fOlocópia e xcrocópia. sem autorização <lo E<Iilor. Qualquer transgressão à lei dos Dilciros de Alllor .'II't,í passível de procedimento judicial. PREFÁCIO Quando Michel Foucault fOJ:jou o termo biopolítica, na de'cada de 1970, poder-se-ia dizer que a análise desenvolvida 11,\ sua elaboração, apesar da sua riqueza. deixou insuficien- "'lIlente determinados dois aspectos que estudos posteriores Ilfto poderiam deixar de se esforçar por retomar e esclarecer. , 1 primeiro aspecto a que nos referimos consiste naquilo que , poderia caracterizar como a natureza da passagem entre .. ,o)t('rcício do poder como poder soberano, por um lado, e '1"110 a que Foucault chamara um «biopodcf» ou um «poder III"polftico", por outro. O segundo aspecto reporta-se à ambi- IIld,III" com que este trânsito é avaliado, na medida em que '''"", gência da biopolítica, ao significar a ultrapassagem da .11'111 ia patente por parte da soberania moderna, não pôde I"" tI(' ser analisada por Foucault como a origem de formas I. . ttlilHis, mas também mais poderosas de exercício do po- , III.,IIIC destes problemas, deixados em suspenso por Fou- III I I (',ornados de formas muito diversas por pensadores ""II'I'",,,ncos como Giorgio Agamben ou Antonio Negri, (i<' Roberto Esposito constituem certamente uma _ III.tJo. ( ollsiSlentes elaborações actuais do conceito de bio- ,'',," ,e F lima tal elaboração que encontra em Bios, no livro M'I',I ,IIt' apresenta em tradução portuguesa, um dos mar- ",h ,IH"lfirativos do seu desenvolvimento. 11111,lf'l ,!lIdo o primeiro problema mencionado, o proble- Illtllll"/,1 da passagem entre O poder soberano e o poder VIII B[OS. BIOPOLÍT[CA E FILOSOFIA PREFÁCIO IX biopolítico, dir-se-ia que as análises desenvolvidas por Foucault novo, que não vai apagar o primeiro, mas que vai penetrá-lo, não conseguem deixar de revelar uma hesitação que importa atravessá-lo, modificá-lo, e que vai ser um direito, ou antes um determinar. Por um lado, tendo em conta o que é afirmado poder exactamente inverso: poder de "fazer" viver e de "dei- cm La volonté de o primeiro volume da Histoi1e de la sexu- xar" morrer» (2). ali/é, torna-se claro que Foucault tende a encarar tal passagem Lidas a partir desta hesitação em que Foucault deixara a aná- como uma ruptura. Através dela, um poder que se caracteriza lise da biopolítica no contexto da modernidade, as reflexões de como a possibilidade do exercício de uma violência explícita Roberto Esposito eçam por ser uma das mais consistentes I. sobre a vida que se lhe encontra submetida, ou seja, um poder propostas O seu es arecimento. Tais reflexões partem do r que se manifesta como um poder de matar ou de suspender conceito de (<imunidade) e da sua relação intrínseca - revela- soberanamente a execução, é substituído paulatinamente por da, antes de 's, pela 'mologia - com o conceito de «comu- um poder diferente. Trata-se de um poder que, invertendo O termo atino immunitas consiste numa negação ou esta relação, se constitui quer como um poder de disciplinar, privação do termo munus, o qual pode ser traduzido tanto por de punir, de rentabilizar e de exercitar a vida dos corpos que (cargo» ou como por «dom», ou «dádiva» . As- estão sob a sua alçada, naquilo a que Foucault chamou uma sociando estes significados, Esposito atribui à communilas o sen- «anatomopolítica do corpo», quer como um poder de pronlo- tido de uma associação humana baseada na ideia de uma mútua ver a sallde, a higiene, a longevidade e, neste sentido, a vida pertença, através da partilha, pelos homens que a compõem, J de um agrupamento humano, através daquilo que designou de uma dádiva recíproca a partir da qual se cimentasse a sua como uma "biopolítica da população,,: "Poder-se-ia dizer que concórdia e relação. É como negação ou privação desta relação, ao velho direito de fazer morrer ou de deixar viver se substituiu do cum da communitas, que o conceito de immunitas elnerge. II um poder de fazer viver ou de relançar na morte»(l). Contudo, E a sua emergência marca, segundo Esposito, o próprio desen- se é verdade que observações como esta 110S permitem afirmar volvimento da política moderna. Nela poder-se-á encontrar o que Foucault se inclinava para a afirmação de uma ruptura aparecimento de uma associação humana não comunitátia, cuja na passagem do poder soberano para um poder biopolítico fonte se encontra não na gratuitidade de uma dádiva recíproca, - numa inclinação que é confirmada pelas análises que desen- mas precisamente na impossibilitação de qualquer relação de volve, em Surveiller el punir, em torno da punição ao longo da gratuitidade, isto é, no estabelecimento de uma relação contra- \ I modernidade, em particular em torno da transição da pena tual a partir da qual, não havendo nada cada um enquanto suplício para a pena enquanto disciplina prisional aceita sacrificar a sua liberdade individual originápa em função_ -, é também verdade que, no curso leccionado no College de da segurança ou, o que é o mesmo, a imuniza2"0 da sua pes- France em 1976, no mesmo ano da publicação de La volonlé de soa e:aa S!.la. p@pIfec:lã('!e.- conceito,m.2del1fo de soberania savoir, Foucault modera a tese da ruptura na transição entre constrói-se éntão, segundb, Esposito, a partir daquilo a que ele poder soberano e poder biopolítico, afirmando este não como chama 01p aradigma imunitJrio. Do mesmo modo que o contrato uma substituição do anterior, mas como uma sua completude: social, e!t<juanto contra>'/' consiste na exclusã da gratuitida- «(Creio que,justamente, uma das mais maciças transformações de e da gra(;l;assim--tâÍnbém a sob'érania mode a permite a // do direito político no século XIX consistiu, não digo exacta- emergência de uma sociedade,d 1 diví uos isol dos, assente,ar mente em substituir, mas em completar, esse velho direito de enquanto sociedade, na sua ípI:.oca, isto é, na pró- soberania - fazer morrer ou deixar viver - por um Outro direito pria privação e subtracção do munus cuja partilha sustenta qual- quer relação comunitária. (1) Michel Foucault, Histoire de la sexualité, l, Paris, Gallimard, 1976, p. 181. (2) Id., "Jl faut défendre la société., Paris, Gallimard, 1997, p. 214. x BIOS. BIOPOLíTlCA E FILOSOFIA PREFÁCIO XI A soberania moderna, tal como é apresentada no pensa- ,,,dido por Esposito como um desenvolvimento inevitável do , mento de Thomas Hobbes, não pode deixar de constituir, na I\ I (lprio «paradigma imunitário» que através emerge. /' análise de Esposito, a máxima expressão daquilo a que se po- Na obra de Esposito, o «paradigma imunitárfé» é analisa- deria chamar o paradigma social imunitário. É por isso que o d" na pluralidade das suas desde a saúde à técnica pensamento hobbesiano merece na obra de Esposito um tra- IlIlórmática, desde a socjedade-à-política. Desta pluralidade dá tamento intensivo. Por um lado, o soberano aparece, em Ho- I 111lIa sobretudo o livrf Immunitas) publicado dois anos antes bbes, como aquela figura que não apenas funda o estado civil d,' Bios, o qual explora bs..múltiplos aspectos em que é possível ou a união social da Commonwealtl4 mas que a funda furtando- "\I preender o carácter paradoxal que reside na sedimentação -se a esse mesmo estado civil e permanecendo no estado de I d,\ união de uma «comunidade» precisamente a partir natureza. É neste sentido que ele pode manter a ordem social, IIldade enquanto negação dessa mesma comunidade. Pensan- punindo o não cumprimento do pacto social por todos aqueles do este carácter paradoxal a partir do processo de imuniza- que, através dele, entraram no «estado civi1», ao manter-se ele do corpo biológico, poder-se-ia dizer que aqui se encontra mesmo fora deste mesmo estado, ou seja, do pacto que o funda I"'csente uma:;llaléctica\pela qual 0..,9llpog: e das suas obrigações. Por outro lado, os súbditos desta com- " Ill1une não a partir da_silIlJ'les ausência de. contacto com a in- monwealth baseada no poder soberano não se relacionam in- Iluência exercida por um agente patológico, mas precisamente trinsecamente senão com o próprio soberano, estabelecendo-o II partir dal nclusao no corpo deste mesmo agente enquanto como seu representante e, nesse sentido, incorporando-se a si demento excluíao e figura dialéctica que assim se mesmos no próprio soberano, isto é, assumindo-se a si mesmos delineia é a de uma inClúsa xcludente ou de uma exclusão como autores responsáveis pelas acções do próprio soberano. É Illcdiante inclusão. O veneno é vencido pelo organismo não na medida em que assume as acções do soberano como as suas quando é expulso para o seu exterior, mas quando de algum j próprias acções que um indivíduo entra no estado civil e se tor- IIlodo vem a fazer parte dele. Mais que para uma afirmação, , na sua esfera individual, à intervenção de qualquer .1 lógica imunitária remete não-negação, para a ne- !I E é precisamente_a união deste'--!ndivíduos Ilação de uma negação» .[E a partir desta reflexão sobre o (4) lnunizados. re.!!Didos em torno de um «paradigma imunl.!!l- "paradigma imunitário» pensado a partir da vida, do bios, que io», que--Ésposito pode retra'tar do seguinte modo: (;União, 7' .'il- torna possível abordar um novo marco no seu desenvolvi- errão concórdia, porque é contemporaneamente muito mais IIlcnto. Trata-se da abordagem da sua passagem de paradigma - a incorporação na única pessoa soberana - mas também, e de conservação da vida, tal como se manifesta maximamente por isso, infinitamente menos de uma qualquer 110 pensamento de Thomas Hobbes, para paradigma de po- I forma de relação-3' munitária: unidade sem relação, supres- I('nciação, crescimento e incremento dessa mesma vida. É um são do tum. Esse cor o não é sim lesmente diverso,., ou outro, 1,,1 desenvolvimento que, em Bios, Esposito analisa sobretudo a '.\ern relação à com idade: -as..i o OE.Q:'tO»(3), partir de uma confrontação com a filosofia de Nietzsche. Ivação da vida através da sua imuniza ão constitui então, para Se uma abordagem moderna clássica do «paradigma imuni- Esposito, o sentido biopolíti20 da-e rutura do poder soberano f,lrio» coloca este mesmo paradigma ao serviço da conservação ., modernidade. E, neste medida, aquilo que Foucault tinha da vida, estabelecendo a vida como algo . analisado como uma transformação do poder soberano num precisamente através do processo de im_u2!ização a concep.ç.ão J «DOVO direito» biopolítico não poderá deixar de ser compre- ela viaa como vontade de- po-der-, tal- como Ni-etz_sche. a _dese.n vol- I (3) Roberto Esposito, Communitas: origi'ne e destino deUa comunità, (4) Id., bmnunitas: protezione e negazione delta vila, Turim, Einaudi, Turim, Einaudi, 1998, p. 13. p. 10. E' 1.)11 1 XIII XII BIOS. BIOI'OLiTICA E FILOSOFIA PREFÁCIO ve, aborda a vida como uma imparável vontade dinâmica da sua tio conceito de biopolítica: o aspecto da avaliação do próprio própria afirmação, como o desenvolvimento de uma afirmação I!'nómeno biopolítico. Dir-se-ia qu, ace às crescente cuja paragem, correspondendo ao fim do risco e à (csultantes da possibilidáêled.e 0 « radigma se mera conservação. não poderia deixar de corresponder a um ('oncretizar no corpo social como uma oença aUreFlmune, a declínio. Como se 'lê na conhecida passagem de Assim falava partir da qual é o próprio elemento terapêutico a assumir uma Zaratustra: «Só onde haja vida, há também vontade: mas não condição destrutiva e mortal,are-flexão empreendida em Bios vontade de viver, antes - é o que eu te ensino - vontade de po- culmina na têntatlva de pensar um outro sentido possível-um der! Há muita coisa que o ser vivo considera como mais valiosa sentido não destrutivo - para a biopolítica. O fenómeno do do que a própria vida; mas, nessa mesma avaliação, se exprime Ilazisl}'}é, tal como é analisado por Esposito, aparece COlno o a vontade de poder!,,(5'. A partircta)abordagem nietzschiana da paroxismo do «paradigma imunitário», no momento em que vida como vontade de pod<;r, o destino do a própria biopolítica se converte, em função desse mesmo pa- «paradigma imunitário» qUNurpreendeu na emergência e no radigma, numa tanatopolítica. Por outras palavras: ( desenvolvimento da modernidade. Se uma reflexão profunda aparece aqui como O momento em que um poder biopolíti"co, sobre o pensamento de Hobbes fornece a Esposito a ocasião enquanto poder terapêütico junto de uma população conside- para a abordagem da imunitária da política moder- rada como vida exposta à acção pretensamente imunizante e na, e da modernidade em geral na multiplicidade dos seus fe- protectora do poder, se traduz num poder que despoja a vida nómenos, a abordagem de Nietzsche, e da determinação da de qualquer protecção, num poder que a torna simples vida como vontade de poder, p,ermite-lhe explorar o desenvol- nua", no sentido que lhe deu Giorgio Agamben, e que se assu- , vimento do «paradigma imunitário» ao longo da modernida- me diante dela, nessa medida, como uma pura e simples possi- . de, mostrando como um tal «paradigma imunitário,> não só bilidade de matar. Face a este poder biopolítico sobre a vida, o não se esgota num paradigma de segurança e de conservação pensamento desenvolvido em Bios encerra-se com uma sugesti- da vida, como encerra em si inevitavelmente a possibilidade va tentativa de pensar a possibilidade da biopolítica como uma do seu desenvolvilnento num sentido auto-imunitário que não política da vida: uma biopolítica irreduúvel à política de morte pode deixar de ameaçar e colocar em risco a própria vida. A na um sugestiva análise do nazismo levada a cabo em Bios, na qual se afirma enquanto tal como um poder de dominar, dirigir, a imunização biopolítica se converte numa política de morte manipular e mesmo matar a vida. As reflexões desenvolvidas ou tanatopolítica, fornece aqui um testemunho eloquente da em Bios destinam-se, assim, em última análise, a uma prope- realização desta mesma possibilidade. dêutica para novos e mais alargados sentidos da biopolítica A confrontação com o caráctel\.auto-imunitário (10 nazismo, contemporânea. ou seja, a confrontação co'inUüiã:(biopolítica da população» na qual o cuidado pela saúde, pela higiene e pela pureza se ALEXANDRE FRANCO DE SÁ Coimbra, Maio de 20]0 concretiza paradoxahnente como a exposição indeterminada de toda a população diante de um poder transformado numa pura possibilidade de matar, conduz as análises levadas a cabo em Bios para uma resposta ao segundo dos aspectos deixados indeterminados pelas considerações de Foucault em torno (5) Friedrich Nietzsche, ASSim/alava Zaratustm, trad. Paulo Osório de Castro, Lisboa, Relógio d'Água, 1998, p. 133. cu ,..... o 'J'j INTRODUÇAO l. França, Novembro de 2000. Uma decisão do Supremo Tri- bunal de Justiça abre um conflito dilacerante najurisprudên- cia francesa, invertendo duas sentenças proferidas em recurso, que por sua vez contrariavam outras tantas decisões emitidas em instâncias precedentes. Uma decisão que reconhece a uma criança, de nome Nicolas Perruche, nascido com graves lesões genéticas, o direito a interpor queixa contra o médico que não tinha devidamente diagnosticado a rubéola da mãe durante a gravidez, impedindo-a assim de abortar como era sua vontade expressa. O que aparece, nesta história, como objecto de con- trovérsia insolúvel no plano jurídico é a atribuição ao pequeno Nicolas do direito a não nascer. O que está em discussão não é tanto O erro comprovado do laboratório médico quanto o esta- tuto de sujeito de quem o contesta. Como pode um indivíduo recorrer juridicamente contra a própria circunstância - a do seu próprio nascimento - que lhe fornece subjectividade jurí- dica? A dificuldade é ao mesmo tempo de ordem lógica e on- tológica. Se já é problemático que um ser possa invocar o seu direito ao próprio não ser, ainda é mais difícil conceber que um não ser, como é o caso de quem ainda não nasceu, reclame o direito a continuar como tal e assim a não entrar na esfera do ser. O que parece impossível de decidir, em termos legais, é a relação entre realidade biológica e personalidade jurídica - entre vida natural e forma de vida. É certo que ao nascer naquelas condições a criança sofreu um dano. Mas quem, se 18 BIOS. UlOI'OLÍTlCA E FlLOSOFH INTRODUÇÃO 19 não ele mesmo, teria podido decidir evitá-lo, eliminando an- "nmente essa discriminação que é tendencialmente anulada tecipadamente o próprio ser sujeito de vida, a pópria vida do lia lógica dos bombardeamentos destinados a matar e a salvar sujeito? E não é só isso. Assim como a todo o direito subjectivo ,II{ mesmas pessoas. A raiz dessa indiferenciação não se deve corresponde a obrigação de não o obstaculizar por parte de procurar tanto, como é frequente fazer-se, numa mutação es- quem esteja em condições de o fazer, isto significa que a mãe Illlturàl da guerra, antes na transformação, bastante mais radi- teria sido forçada a abortar, prescindindo da sua liberdade de nd, da ideia de humanitas que lhe está subjacente. Entendida escolha. O direito do feto a não nascer configuraria, em suma, durante séculos como aquilo que põe os homens acima da um dever preventivo, por parte de quem o concebeu, de o su- vida vulgar das outras espécies viventes, e até porque primir, instituindo assim uma cesura eugenética, legalmente carregada também de valores políticos, tende cada vez mais a reconhecida, entre uma vida julgada vãlida e uma outra, como .Iderir à própria matéria biológica. Mas uma vez confundida se dizia na Alemanha nazi, «indigna de ser vivida), fom a sua pura substância vital, e assim subtraída a qualquer lormajurídico-política, a humanidade do homem fica neces- Afeganistão, Novembro de 2001. Dois meses antes do ataque .ariamente exposta àquilo que pode simultaneamente salvá-Ia terrorista do 11 de Setembro tomava forma nos céus do Me- " aniquilá-Ia. ganis tão um novo tipo de guerra «humanitária». O adjectivo já não se refere às intenções do conflito - como tinha aconte- Rússia, Outubro de 2002. Grupos especiais da polícia irrom- cido na Bósnia e no Kosovo, onde o objectivo era o de defen- pem no teatro Dubrovska de Moscovo, onde um comando che- der populações inteiras da ameaça de genocídio étnico - mas rheno mantém reféns quase mil pessoas, provocando a morte, ao seu próprio instrumento privilegiado, ou seja, por outras rom um gás paralisante de efeitos letais, de 128 reféns, além de palavras, os bombardeamentos. Foi assim que sobre o mesmo 'Iuase todos os terroristas. O episódio,justificado e até tomado território, e ao mesmo tempo, juntamente com bombas de ramo modelo de firmeza por outros governos, assinala a passa- elevado potencial destrutivo se despejaram também víveres e Kcm de mais um limiar em relação àquele quejá comentámos. medicamentos. Não se pode perder de vista o limiar que deste Mesmo que neste caso não se tenha feito uso do termo «huma- modo se cruza. O problema não está tão-só na duvidosa legi- nitário», a lógica de fundo não é diferente: a morte de dezenas timidade jurídica de guerras conduzidas em nome de direitos de pessoas nasce da mesma vontade de salvar o maior número universais na base das decisões arbitrárias, ou interessadas, de I) Ossível. Sem nos debruçarmos sobre outras circunstâncias in- quem tem força para as impor e as conduzir; está também na 'Iuietantes, como O uso de um gás proibido pelas convenções disparidade que muitas vezes se verifica entre a finalidade pro- Internacionais ou a impossibilidade de preparar antídotos posta e os resultados conseguidos. O paradoxo mais agudo do adequados mantendo em segredo a natureza dele, fiquemo- bombardeamento humanitário está sobretudo na sobreposi- nos pelo ponto que interessa aqui: a morte dos reféns não foi, ção que nele se manifesta entre a defesa da vida e a produção ('Orno pode acontecer em casos deste género, um efeito indi- efectiva da morte. As guerras do século xx já nos tinham habi- I ccto e acidental da actuação das forças da ordem. Não foram tuado à inversão da proporção entre vítimas militares - antes os chechenos, surpreendidos pelo assalto dos polícias, que os largamente predominantes - e vítimas civis, hoje superiores, t'liminaram, foram sim estes últÍlnos. É frequente falar-se de de longe, às primeiras. Desde sempre que as perseguições ra- que os métodos dos terroristas e os daqueles que os combatem ciais se baseiam no pressuposto de que a morte de uns forta- o espelho uns dos outros. Isto pode ser explicável e, dentro lece a vida dos outros. Mas exactamente por isto, entre morte de certos limites, até inevitável. Mas talvez nunca se tenha visto e vida - entre a vida a destruir e a vida a salvar - persiste, ngentes do governo, empregues para salvar os prisioneiros de e até se acentua, o sulco de uma nítida divisão. Ora é preci- lima possível morte, praticarem eles mesmos a matança que 20 UJOS. BIOPOLÍTICA E FILOSOFLt\ INTRODUÇÃO 21 os terroristas se limitavam a promeler. Nesta escolha do presi- 11,\0 só ignorados pelo governo como obrigados a manter em dente russo intervieram vários factores: a vontade de desenco- 'wgredo a sua história para não irem para à cadeia. A coisa foi rajar outras tentativas do género, a mensageln aos chechenos drnunciada por quem, sozinho depois de ter perdido todos de que a sua luta não tem esperança, uma exibição de poder II'J seus companheiros, preferiu ir morrer na prisão a morrer soberano num tempo em que este parece estar em crise. Mas, "" sua própria barraca. Basta apontar a nossa objectiva a um no fundo, há aqui qualquer coisa de diferente, que constitui Olltro fenómeno ainda lnais vasto para tomar consciência de o seu pressuposto tácito. O blilz sobre o teatro Dubrovska não ,!ue a selecção biológica, num país que ainda se define como aponta, embora isso se tenha chegado a dizer, ao recuo da po- r um unista, não é só de classe mas também de sexo: pelo menos lítica frente à pura força. E também não se pode reduzir à ma- desde que a política do «filho único», destinada a bloquear o nifestação de um nexo originário entre política e mal. É, sim, "rescimento demográfico, a par da utilização da técnica eco- a expressão extrema que a política pode assumir quando se vê leva ao aborto de grande parte daquelas que haveriam na contingência de afrontar sem mediação a questão da sobre- de ser futuras mulheres. Isto torna desnecessário o uso, tradi- vivência dos homens quando a vida e a morte estão na balança. danaI no campo, de afogar as crianças já nascidas, mas terá Para os manter vivos a qualquer custo pode chegar-se a decidir fomo efeito aumentar a desproporção numérica entre varões apressar-lhes a morte. I' fêmeas: calcula-se que dentro de menos de vinte anos será difícil para os hOlnens chineses encontrar uma mulher, a não China, Fevereiro 2003. A imprensa ocidental divulga a notí- .Icr arrancando-a à família ainda adolescente. Talvez se deva a cia, que o governo chinês lnanteve rigorosamente em segredo, n;la situação que na China a relação entre suicídios femininos de que só na província de Henan há mais de milhão e meio (' masculinos seja de cinco para um. de seropositivos, com percentagens nalgumas aldeias, como a de Dhongu, que chegam a oitenta por cento da população. Ruanda, Ab,i[ de 2004. Um relatório da ONU informa-nos Ao contrário do que se passa noutros países do terceiro mun- que cerca de dez mil crianças da nlesma idade constituem o do, O contágio não tem causas naturais ou sócio-culturais mas fruto biológico das violações étnicas levadas a cabo há dez anos directatnente económico-políticas. Na sua origem não estão no decurso do genocídio consumado pelos Hutus nos confron- relações sexuais sem protecção, nem sequer um sórdido uso lOS com os Tutsis. Como aconteceu depois na Bósnia e noutras de drogas, mas sim o comércio de sangue em grande escala, partes do mundo, tais práticas modificam de modo inédito a estimulado e gerido pelo governo central. O sangue, extraído relação en tre vida e morte conhecida nas guerras tradicionais de gente do campo precisada de dinheiro, é centrifugado em c até naquelas, chamadas assimétricas, que se travam contra os grandes contentores que separam o plasma dos glóbulos ver- lerroristas. Enquanto nestas a morte vem sempre da vida - e melhos. Enquanto o primeiro se destina a compradores ricos, mesmo através da vida, COIUO nos ataques suicidas dos kamikaze os glóbulos vermelhos são de novo nos dadores para - no acto da violação étnica é, no entanto, a vida que procede evitar a anemia e levá-los a repetir de imediato a operação. Mas da morte, da violência, do terror de mulheres tornadas grá- basta que um só dos dadores esteja infectado para contagiar vidas ainda inconscien tes em resultado dos golpes recebidos toda a reserva de sangue sem plasma que se encontra nesses aLI imobilizadas por uma faca no pescoço. É um exemplo de enormes caldeirões. Deste modo, há aldeias inteiras que ficam cugenética «positiva» que não se contrapõe àquela, «negati- repletas de seropositivos quase sempre votados a uma morte va», praticada na China ou onde quer que seja, mas constitui o certa por falta de medicamentos. É certo que a própria China seu resultado contrafactual. Enquanto os nazis e todos os seus põs recentemente à venda fármacos anti-sida produzidos local- érnulos realizavam o genocídio mediante a destruição anteci- mente a baixo custo. Mas não para os camponeses do Henan, pada dos nascimentos, o actual executa-se mediante o nasci-