Ficha Técnica Título: Bendito Maldito - Uma Biografia De Plínio Marcos Copyright © 2009, Oswaldo Mendes COORDENAÇÃO EDITORIAL: Pascoal Soto EDITOR ASSOCIADO: A. P. Quartim de Moraes CAPA E PROJETO GRÁFICO: João Baptista da Costa Aguiar DIAGRAMAÇÃO: Angela Mendes PREPARAÇÃO DE TEXTO: Luiz Carlos Cardoso REVISÃO: Márcia Duarte ÍNDICE ONOMÁSTICO: Ricardo Nakamiti IMAGEM DA CAPA: sobre foto de Marcos Muzi/Fator Z Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Mendes, Oswaldo Bendito maldito : uma biografia de Plínio Marcos / Oswaldo Mendes. São Paulo : Leya, 2009. Bibliografia. ISBN 9788580440089 1. Marcos, Plínio, 1935-1999 2. Teatro brasileiro 3. Teatrólogos brasileiros - Biografia I. Título. 09-10079 CDD-869.9209 LEYA Av. Angélica, 2163 - 17º Conjunto 175-178 01227-200 - São Paulo - Brasil Fone. + 55. 11 3129 5448 Fax.+ 55. 11 31295448 www.leya.com.br Para Walderez, Léo, Kiko, Aninha, Vera e Tiago PREFÁCIO Latência e ética Ilka Marinho Zanotto “O humanismo latente em Querô permeia toda a obra de Plínio Marcos, imprimindo-lhe ressonância ética ímpar.” IMZ Quinhentas páginas de um livro híbrido que vibra nas mãos de quem o lê, tal a vertiginosidade dos fatos encadeados, pesquisados à exaustão, que nos revelam seis décadas da trajetória do cometa Plínio Marcos. Plínio Marcos, ele mesmo, o tempo todo, como se autodefiniu. Cometa que arrebata no seu rastro seiscentas e tantas outras vidas citadas no índice onomástico, que, de algum modo, compartilham da epopeia pliniana, de seu tempo e vez, numa época de trevas do país Brasil. A Pátria vira truncada a esperança dos febricitantes anos JK — industrialização, 50 anos em 5, cinema novo, bossa nova, imprensa livre etc., etc. —, quando o futuro parecia nos pertencer e a nossa vã filosofia garantia não apenas a contemplação, mas a transformação do mundo... A obra ciclópica de Oswaldo Mendes é dividida em atos e cenas como se espetáculo teatral fosse, eivada de flashbacks e zooms próprios do cinema, esclarecidos nos seus vaivéns pela rigorosa Linha do tempo que situa historicamente fatos e datas de mais de meio século. Oswaldo mergulha no cipoal de relatos, memórias e emoções à flor da pele, esmiúça detalhes de uma vida vivida sofregamente, com o ímpeto de um trem em movimento. Ao fazê- lo, traz de volta a cidade que salta do passado em letra de forma, mas com tal arte evocada que “alguma coisa acontece” em nosso coração: “A cidade dos bondes começava a ficar no passado quando Plínio Marcos desembarcou em São Paulo. A garoa e o frio ainda resistiam. Na década de 1960, andava-se a pé com certa segurança pelas ruas e praças, olhos atentos apenas nos batedores de carteira, e as distâncias eram mínimas entre os pontos nos quais Plínio estabeleceu o mapa de suas descobertas profissionais e humanas”. Mas antes de São Paulo houve Santos, cidade mítica à beira-mar, berço de gerações de artistas e intelectuais “de primeiro time” com os quais Plínio travou conhecimento a partir de 1950; Santos e a efervescência da era Pagu, aos quais Plínio presta um preito de gratidão e orgulho em “Mestres do teatro”, crônica que escreveu no ano de sua morte. No livro são descritas as raízes da família e da infância do futuro dramaturgo, a adolescência e juventude rebeldes e já vocacionadas para suas paixões mais duradouras, o futebol e o teatro (paixões compartilhadas com Nelson Rodrigues a par do ineditismo do linguajar); acompanha-se o fugitivo da escola e das peias dos regulamentos, quaisquer fossem eles, o peregrino das docas e dos botecos do cais de Santos que, ao embrenhar-se na agitação daquelas vidas vividas perigosamente, nascia como autor. Radar precoce da miséria e do sofrimento humanos. A sensibilidade para o pulsar dos corações alheios, a solidariedade infinita revelada no episódio do Cobrinha, morador de rua, coberto pela capa nova de gabardine comprada à custa pela mãe, um dos tantos momentos vincados pelo espírito de doação, motor movente de uma longa história. A atração pela aventura forte e livre do circo que passa a se integrar nos panos arlequinados do palhaço Frajola. Ao picadeiro e ao povo circense dedica admiração irrestrita: “Quando escrevi Barrela eu tinha a escola do circo. Eu sabia andar no palco, o que facilita muito para quem é dramaturgo... e eu saí quase no mesmo nível de Molière que andava tão bem no palco como Guarnieri ...”. Boutade à parte, iniciara a fala com a definição paradigmática de sua conduta: “Escrever é uma arte solitária demais. Você só é respeitável e digno, como autor de teatro, se souber que tem de servir ao ator”. Aqui começa a história de Plínio Marcos. O resto não é silêncio. Há muito ainda para contar. * Na primeira frase deste prefácio falei em “livro híbrido”, porque salta aos olhos o intuito de Oswaldo Mendes de recolher-se atrás do pesquisador que sabe ter em mãos a biografia de um autor e de um ser humano absolutamente acima e além de qualquer definição. Oswaldo, ele mesmo jornalista, ator, dramaturgo, diretor, crítico, homem de teatro completo, realiza a proeza da objetividade jornalística, mas não consegue escapar à poesia das sínteses estupendas em momentos do Prólogo, na introdução do Segundo Ato (1967-1985), intitulada “Da navalha à luz de um abajur lilás”, e em inumeráveis trechos nos quais, graças ao seu dom de escritor, brota insopitável a comoção temperada pelo humor ácido do biografado — seu dileto amigo fielmente retratado e devidamente engrandecido neste livro. Leiam-se estas páginas para saber tudo sobre ele. Vale a pena. * É chegada a hora de posicionar-me como crítica de teatro e dar o testemunho que Oswaldo Mendes me pediu sobre o cruzamento de nossos destinos em momento crucial da vida de Plínio — por ocasião da truculenta proibição de O abajur lilás, à véspera da estreia, em maio de 1975, em São Paulo. Já em 1959, como segundanista da Escola de Arte Dramática de Alfredo Mesquita, eu participara do 20º Festival do Teatro do Estudante, em Santos, como atriz-aluna do espetáculo Pranto por Ignacio Sanchez Mejías, de García Lorca, quando o “sucesso de escândalo” causado pela estreia e proibição de Barrela no Clube Português, sem o sabermos à época, constituiu-se em turning point da temática teatral até então conhecida. Nos anos finais da década de 1960, enquanto cursava filosofia na USP, acompanhei as montagens que vinham à luz das peças de Plínio: Dois perdidos numa noite suja, Navalha na carne, com atores egressos da EAD, colegas meus. Quando, em 1968, a censura se tornou tão feroz que somente passavam pelo seu crivo os textos nebulosos, alegóricos, no mais das vezes incompreensíveis para o grande público, de linguagem cifrada para poucos entendedores detentores de senhas ocultas, Plínio Marcos jamais tergiversou. Como um touro indômito investiu ininterruptamente contra o paredão da arena à custa de não ser mais encenado, de ser escorraçado de qualquer lugar que lhe garantisse uma sobrevida como comunicador — imprensa, rádio, TV, cinema, circo. Era o “perigo”, aquele cujas palavras tinham o poder de abalar estruturas, costumes, regimes. Aspectos estéticos à parte — ninguém punha em dúvida o valor artístico de textos cujas personagens de carne e osso remetiam, entre outros, aos humilhados e ofendidos dostoievskianos, à ralé de Gorki, aos párias de Zola. Em 1972, concomitante ao início de minha atividade crítica no Suplemento Literário de O Estado de S. Paulo, no próprio jornal, na TV Cultura e nas revistas lsto É e Visão, assumi a presidência da Associação Paulista de Críticos de Arte, cujo estatuto reza no artigo 2º: “A APCA visa a defender a liberdade de expressão e os interesses coletivos, morais, culturais e profissionais dos que exercem a crítica de teatro, música, artes visuais, cinema, rádio, televisão, literatura, dança e circo, e visa, de um modo geral, a incentivar todas as atividades do espírito e o progresso da cultura brasileira”. Sendo a crítica uma reflexão sobre o trabalho dos artistas — sem ele não teria sentido a nossa profissão —, é evidente a necessidade de liberdade na atividade criativa. Por conseguinte, após a proibição de O abajur lilás à véspera da estreia, na quinta-feira, 15 de maio de 1975, consultados por telefone alguns membros da diretoria, fui ao Correio Central no sábado à tarde, dia 17, e enviei, em nome da associação que reunia 140 críticos e jornalistas representantes de 35 órgãos de comunicação, um telegrama assinado por mim, como presidente da APCA (e com o RG obrigatório, no caso), ao presidente da República, general Ernesto Geisel. O texto foi publicado na íntegra no Jornal da Tarde de 3115, ao qual Plínio respondeu na Última Hora com o artigo “Um manifesto comovente” — posteriormente incluído por ele como prefácio da 1ª edição de O abajur lilás. Entre um fato e outro, houve no Museu de Arte de São Paulo (MASP), no dia 26 de maio, segunda-feira à noite, a premiação anual que abrangia todos os setores de arte, com o auditório lotado até o saguão, gente extravasando pelas calçadas, com a presença maciça da classe artística e intelectual, além de familiares dos contemplados antecipadamente notificados, porque vindos de todo o Brasil. Era enorme a expectativa, inclusive dos jornalistas presentes, em relação ao esclarecimento dos prêmios às “obras conservadas inéditas”, eufemismo usado por nós da APCA para premiar obras proibidas e assim driblar uma eventual “censura prévia” à nossa festa. (Censura quase exercida quando, comparecendo à sede do MASP dias antes para acertar detalhes com Pinky Wainer e Roberto de Oliveira, que colaboraram nos preparativos de som e luz, fomos comunicados que a data de 26 de maio fora cedida ao Instituto Goethe para projeção de um filme. Corre-corre até o Consulado Alemão e ao Goethe que nos devolveu a data, desde que reimprimíssemos os convites deles para a projeção.) Também a certa altura, na noite de festa, quando a emoção e os aplausos tomaram conta do auditório em face do desfile de “malditos” premiados, cortou-se a energia e Elizeth Cardoso cantou sem microfone, à luz de lanternas, em substituição a Elis Regina que não conseguia cantar sem ele, tal era a confusão. A carga voltaica daquela noite inesquecível deixo a cargo de Plínio Marcos narrar-nos em sua belíssima crônica “Abajur lilás brilha nas trevas”, de 28 de maio, na Última Hora: “Se alguma mágoa eu tivesse da vida, ou do mundo, ou de gente, teria deixado de ir segunda-feira à noite na festa da Associação dos Críticos. Minha alma foi lavada pelo carinho dos artistas e intelectuais de São Paulo. Eram artistas plásticos, gente de música, de balé, escritores, artistas e técnicos de televisão, cinema e, naturalmente, teatro, respondendo presente, dizendo que sofrem junto toda a afronta que se faça à liberdade de expressão. E o Abajur lilás se acende cada vez mais forte. Permita Oxalá que essa luz pálida que quiseram apagar seja farol de muito brilho que nos guie no rumo certo do diálogo franco e democrático, que é condição necessária para a preservação plena dos direitos humanos, condição essa primordial para que se possa fazer do Brasil a grande nação. Segunda-feira à noite, a Ilka Zanotto me chamou no palco da Associação dos Críticos apenas para entregar um prêmio. E ao pronunciar meu nome, oAbajur lilás se acendeu. Os aplausos que me tiraram na violência, na força bruta, a minha gente, os artistas de São Paulo, me devolveram em dobro, em triplo, em quantidade maior do que eu mereço. E, creiam, os aplausos são a única recompensa do artista. E eu os ganhei dos artistas e críticos brasileiros na noite de segunda-feira. Não chorei. Quem tem recebido essa solidariedade toda não tem esse direito. Não tremi nas bases. Quem está junto com sua gente não tem esse direito. Recebi os aplausos. Agradeci a Deus por ter me concedido esse momento tão belo e pedi forças para que eu nunca traia a confiança dos que me aplaudiram com tanto afeto na noite dos críticos.” * Encontramo-nos muitas vezes nas ruas em frente aos teatros de São Paulo e lembro-me com gratidão da vez em que Plínio Marcos me presenteou com o inútil canto e inútil pranto pelos anjos caídos, nada querendo receber em troca, e com belíssima dedicatória. E quando nos honrou, a mim e ao Gian Paolo, meu marido, com sua presença na mesa do Gigetto, abandonando a sua “cativa” perto do caixa; dividindo conosco o jantar e deitando conversa fora, o modo santista chiado de falar, os olhos vivíssimos, o sorriso malandro, a simpatia cativante... Lembro-me da presença provocadora em inúmeros debates no Arena, no Galpão do Ruth Escobar, em palcos e plateias, provocando um cala-boca geral quando soltava as labaredas de uma indignação irrefreável. A última vez em que estivemos juntos foi numa mesa de calçada de um café na Place Vendôme, em Paris: não mais, ali, o saci- camelô de gorro e sandália de dedo, mas o bem-apessoado e mais bem trajado — parece-me que a sandália persistia — autor brasileiro homenageado no 18º Salão do Livro Parisiense, realizado de 20 a 25 de março de 1998. Neste ano em que se comemora no Brasil os quarenta anos da geração de 69, responsável pela eclosão de uma nova dramaturgia, cumpre registrar que a pedra angular desse edifício fora assentada em 1959, de 2 anos antes, pela Barrela seminal de Plínio Marcos. Transcrevo aqui palavras minhas sobre o tema para o verbete do Dicionário do teatro brasileiro[1] publicado pela Editora Perspectiva: “Ele por primeiro escavou fundo nas motivações de personagens verazes até a medula, que falavam a linguagem do desespero colhida nas ‘quebradas do mundaréu, os diálogos cola-dos à ação. E procedera sem a idealização dos operários urbanos das peças nacionais — populares à mesma época — que, embora fundamentais para a fixação de uma dramaturgia brasileira, seguiam uma vertente engajada deliberadamente realista que passava ao largo da arrebentação pliniana”. E transcrevo trechos do prefácio que escrevi para a coletânea Melhor Teatro. Plínio Marcos[2], que corrobora a influência ímpar de sua obra na eclosão da nova dramaturgia: “A lupa realista de um olhar contundente beira o expressionismo quando, após o crescendo das ações concretas, reiterantes, exaustivamente repetitivas, estala o conflito, encenado como uma dança macabra. Em Barrela, como em Dois perdidos, em Navalha na carne, em Abajur lilás ou em Querô, peças escolhidas para exemplificar a descida aos infernos, característica da obra de Plínio Marcos, mas não apenas nessas peças, o conflito existe agudíssimo desde a primeira cena, beirando o insuportável no desenlace que é sempre brutal e acelerado. [ ... 1 Nada discursivo, no entanto, sempre a partir de falas e ações concretas, resultando a compreensão daquele submundo da ação de personagens que se revelam sem explicar-se, numa característica pliniana de profundo insight das motivações do comportamento humano, dando à luz uma obra coesa, autêntica, que sofreu desde sempre as consequências de sua unicidade: ineditismo de personagens e de temas, enfocados sem mediação, flagrados na realidade com raiva e denúncia jamais vistas, à força de um linguajar absolutamente fel aos guetos de onde brotava; linguajar que é gemelar à virulência, crueldade e velocidade da ação que se desenrola em cena. Gíria mais verídica impossível, código exclusivo daqueles subterrâneos, mas também marca de um estilo único na dramaturgia brasileira”. Peço vênia para voltar ao verbete: “Em Exercício findo, Décio de Almeida
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